Conto

A composição

Por Erika Pessanha - maio 27, 2017
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Ele a esperava na penumbra da sala, deitado descontraidamente na chaise longue que estava encostada na parede com papéis de estampa florida, de vermelhos diversos amenizados por liláses.

Cores e linhas bem distribuídas, móveis dispostos formando proporção áurea. À princípio um cenário apolíneo, necessitando de um elemento que quebrasse a dinâmica que beirava o tédio.

Ele ali de camisa entreaberta, barba por fazer, cabelo liso um pouco colado pelos resquícios de calor, a gravata pendia sobre a mesa de centro, tudo começou a mudar quando ele largou o copo de whisky por que a viu chegar, amassou o cigarro no cinzeiro.

Ela chegou abanando a fumaça, revelando mais cores, cortando simetrias sentou numa banqueta e ficaram separados pela mesa de centro. Olhou um pouco fixamente para ele seguindo seus pontos de fuga, tirou delicadamente cada uma de suas sandálias, esfregou seus pés no chão para sentir a textura do tapete.

Olhou para os quadros na parede branca lateral tentando contabilizar o quanto valiam, ignorou as assinaturas, pegou um estilete sobre a mesa, se levantou e retalhou os quadros que considerava sem vida… Na verdade não sobrou nenhum.

Ele olhava para o chão tentando encontrar vestígios de assinaturas pra avaliar o
prejuízo, estava sem distorção alguma em sua face, tentou não ignorar o fato mas acabou por ignorar.

Em vingança ele se levantou, abriu a cristaleira, pegou a coleção mais bonita e
estilhaçou de um a um no chão.

Ele Pisoteava lps enquanto ela rasgava livros.

Degradaram o ambiente e voltaram cada qual ao seu lugar, em meio aos destroços.

Era hora de começar os acordos e partilhas:

– Minha maquiagem borrada por sua barba por fazer.

– Aceito.

Ela estava sentada comportadamente e com seus joelhos juntos.

– Abre as pernas, deixa eu ver o que sobrou.
– Vá à merda, eu fico com meu útero vazio e te deixo seus fracassos sexuais.

Ele sorriu sarcasticamente e ela abriu as pernas, puxou a calcinha para os lados,
segurou de cada lado um de seus grandes lábios.

– Veja como ela está bem, bem mais feliz do que a sua boca…
– Para de merda, vamos acelerar e dividir o que restou?

Ela abriu a blusa rasgando os botões de cima à baixo.

– Um corpo gasto, uma alma faminta, uma vontade de morrer que me faz viver sem medo. Você quer?

Os olhos dele a observavam como um curador artístico.

– Deixa eu ver, vira de costas. Anda… vira logo.

Ela se levantou, virou de costas, levantou a saia, abaixou a calcinha, apontou suas
estrias para convencer que deveriam ficar com ela.

Timidamente ela se virou de frente, olhando pra ele segurando os próprios restos.

– Deixa eu ver o que te sobrou.

Ele abriu a braguilha, abriu as calças e …

Ela gargalhou em meio a toda a tragédia ambientada.

Ele sentou em cacos e disse que esses eram os seus restos.

Ela despetalou tulipas e esfregou em seus seios e entre as pernas.

Cataram fragmentos das telas, mergulharam no resto do whisky misturado com as cinzas, enfiaram seus dedos nos copos, arranhavam um ao outro misturando sangue, tintas e restos de tecido pendiam em pelos mal cuidados.

Não conseguiram dividir valores. Deixaram o suor caído em cada canto da sala.

Dores escorriam pela mesa, o tempo se perdia nas paredes desgastadas, ficaram soterrados nas trincheiras conjugais.

Se arrastaram um para cada lado, ele saiu pela janela e ela pela porta.

Do lado de fora, a galeria de artes estava cheia, uma tela em destaque mostrava a mesma sala em destroços, um casal inexperiente pagou uma fortuna para pendurá-lo em sua sala.

Eles?

Ela parou anestesiada na frente de uma tela em branco.

Ele foi na livraria do museu, sentou, pediu um café enquanto lia o seu livro.

Um casal estranho que contemplou a tragédia deles, comprando o quadro da vida dos dois, seguiu o seu caminho, chegaram em casa, penduraram a tela caótica na tentativa de se libertarem do
tédio, não tomaram whisky, não tiraram a roupa, não quebraram vidros, não vasculharam
seus corpos como bicho, não criaram e nem viveram nada.

Dizem às más línguas, que veio destes últimos e não dos primeiros, a inspiração da a tela em branco e para o livro encalhado no fundo da livraria.

O que restou nos outros dois?

Nada nela além da vontade profunda de pintar novas paisagens.

Nada nele além da coragem de escrever sobre seus universos.

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Uma das 5 participantes do Atelier Noite Estrelada, iniciado na cidade de Maricá- RJ e adota o estilo Co-working, integrando artistas, os direcionando para aulas, palestras e produção tanto para área artística quanto publicitária. Auto-didata, a vida e as paixões levaram à estudos solitários de artes, design, cultura, cinema, escrita, filosofia e arte terapia. Ministra uma oficina de escrita criativa em sua cidade com foco na produção autoral digital (ebooks e áudio livros). Escreve, produz e distribui contos e poesias de sua autoria e de outros autores.

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