Literatura

Conto – Transformação

Por Rafael Poffo - maio 25, 2016
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O crepúsculo se aproximava em passo acelerado, o pálido céu cinzento começava a ser manchado pelo avermelhado intenso do entardecer. As escassas nuvens perdiam o foco quando o manto negro da noite cobria o horizonte e sua escuridão penetrava na mente do homem como uma faca limpa e brilhante, que refletia com seu aço frio todos os medos que se aproximavam.

Lá, para onde os pássaros não voavam, onde as mães não deixavam seus filhos se aproximarem e onde o vento soprava mais vagarosamente. Lá era onde ele morava, na pequena casa de tijolos gris mal pintados.

Havia feito calor durante o dia inteiro, o sol lhe deu uma falsa sensação de esperança, mas, com aproximação da noite, ventos frios traziam arrepios ao homem constantemente e com eles, a certeza dos males que o assombrariam.

Seus braços cheios de cortes e rasgos profundos estavam apoiados na borda da janela, onde placas de madeira estavam pregadas e a luz invadia o aposento entre suas frestas. Muitas cicatrizes clareavam a pele pouco bronzeada e mais dores do que podia suportar eram trazidas a sua mente cada vez que as fitava.

– Ela já deve estar longe. – Resmungou o homem a si mesmo com sua voz cansada.

Falar sozinho foi um costume que cresceu dentro dele quando as coisas começaram a ficar fora de controle e quase não podia controlar isso mais. As palavras apenas saíam de sua boca em vez de ficarem presas em sua cabeça.

Caminhou em passos lentos e arrastados até o banheiro no outro lado do aposento, abriu a porta, que rangeu alto preenchendo o silencio que inundava o local.

Vários cacos de espelho estavam caídos no chão em diversos formatos, o resto do objeto, ainda pendurado na parede, estava com varias rachaduras e marcas de sangue. O homem parou frente ao resto do espelho e fitou-o. Fez uma careta de indignação.

– Eu nunca fui bonito, mas… tô um lixo! – comentou consigo mesmo passando a mão calejada pelo rosto e dando uma boa olhada em sua barba que crescia como grama no verão. – preciso voltar a me cuidar, não sei como a Laura ainda gosta de mim. – terminou.

Virou-se para a porta e caminhou até a velha cama de casal que praticamente se estendia de uma parede a outra do quarto.

Tudo ia desmoronar novamente, os sentimentos, as lembranças. Era assim sempre que a lua cheia subia. Sempre o medo crescia e o maldito cão prevalecia. O único pensamento que o mantinha firme era que Laura estava a salvo e era isso que importava, ela havia estado com ele e o dava forças para continuar em frente, independente de seus problemas, ambos eram felizes, por isso, perde-la era o seu maior medo, era como perder o único pilar que o sustentava.

– Juntos na saúde e na doença, na alegria e na tristeza. – disse pra si mesmo olhando para os restos da lâmpada no teto que um dia já iluminara o local. – quem ia acreditar nisso? Em um voto tão maluco?

Após um riso seco e irônico, voltou os olhos para a janela. A noite chegou. A lua cheia emergiu, alva e terrível.

O velho ciclo estava pronto para recomeçar, todo o medo havia ido embora durante os primeiros anos, e claro, a ilusão de que um dia poderia ser o homem que fora, já estava enterrada há muito tempo. Os pesadelos dançavam na escuridão como demônios, trazendo lembranças horríveis ao homem, como medos escondidos sob uma fina camada de insegurança.

Começa assim, com a dor se alastrando por todas as células do seu corpo queimando como gelo, ardendo como brasa, fazendo seus membros se contorcerem em formas estranhas e irregulares. Seus olhos reviraram-se para cima tornando tudo mais escuro do que deveria estar e suas mãos agarravam o lençol, rasgando-o com força soltando-o das bordas do colchão.

Aos poucos, sua forma humana era alterada e seus traços tornavam-se animalescos. Seu nariz começa a se esticar e tornar-se um comprido e largo focinho enquanto sua boca sofria do mesmo mal. Seus dentes caiam rapidamente, enquanto por baixo deles cresciam outros, novos, afiados e pontiagudos. Suas unhas caiam e da carne exposta, afiadas garras negras, cresciam e penetraram fundo no colchão. Suas pernas dobravam-se para trás e esticavam afinando-se, o mesmo acontecia com seus braços e aos poucos, pelos cinzentos começaram a crescer por todo o seu corpo em uma velocidade absurda… como grama no verão.

 

Laura sabia que devia estar longe. Sabia que o que acontecia naquele quarto em noites de lua cheia não deveria ser visto por ninguém, mas a curiosidade é o maior dos gatilhos e naquela noite, a garota sabia que a arma estaria apontando para ela, mas não conseguiu conter aquele sentimento.

Sabia que a porta do quarto era fechada com diversos cadeados e correntes para que David não pudesse sair quando estivesse transformado, então, para a garota, não parecia uma péssima ideia dar uma espiada pelo buraco da fechadura.

Sempre foi fascinada pelo universo do terror, tanto em livros quanto no cinema, e estar vivendo uma coisa tão próxima das historias que sempre amou era no mínimo, excitante. Sempre se lembrava de Lawrence Talbot quando precisava sair de casa por causa da transformação de David.

Quando a luz do sol foi totalmente dissipada e a noite adentrou as janelas de vidro, o silêncio mórbido que pairava na casa foi rapidamente preenchido por um gemido alto e esganiçado. Não se parecia em nada com o uivo de um lobo, como as histórias sempre contavam. Era um som fraco, coberto de dor e agonia, quase como um choro. Laura pôde sentir, naquele som vindo do quarto, uma sensação de solidão muito grande.

Laura subiu os próximos degraus rapidamente e parou em frente a porta. David parecia estar sofrendo.

Onde deveria estar o marido de Laura, havia uma enorme e magra criatura cinzenta. Poderia ser confundida com um cão ou lobo por algum desavisado, mas ali, iluminado pela luz pálida que vinha das frestas da janela, a garota via que era algo totalmente diferente. Parecia um animal doente, magro, com os pelos ralos e sem brilho. Seus membros compridos pareciam apenas osso coberto por pelos e seus olhos eram duas esferas negras.

Estava em uma posição curvada, abaixado, apoiado na cama. Não era um lobo grande, forte e feroz. Era um ser fraco, cansado, repleto de dor e tristeza.

– David?

Sua voz soou fraca. Ela sabia que não devia ter o chamado. Sabia que aquilo que estava fazendo era errado, mas não conseguia suportar. Não havia nada de belo naquilo e ela havia prometido que cuidaria de David e naquele momento, ele parecia precisar de ajuda.

– David? – chamou novamente e dessa vez a criatura ouviu.

Lentamente o animal começou a se mexer, como se cada movimento lhe causasse uma dor profunda. Logo, estava de quadro, caminhando com seus membros compridos em direção da porta. Seu olhar era calmo e tranquilo, enquanto se aproximava vagarosamente.

– Você está bem, David?

O animal se sentou na frente da porta. Sua barriga, a única parte em que não havia pelo algum, estava cheia de feridas e lacerações. Seu choro baixo começou novamente. Suas orelhas, estavam para baixo, caídas e machucadas enquanto o rabo, comprido e magro como os outros membros, jazia caído sobre o assoalho.

A garota fitava David com dó. Queria chorar ao ver seu marido daquele jeito, mas foi forte e não deixou que as lágrimas caíssem. Não havia nada de aterrorizante naquilo. Era como um cão de rua, machucado, cansado e sozinho. Triste. Laura sentia que era seu marido, que ele estava tentando se comunicar com ela.

Tudo o que mais queria, era abrir a porta e abraça-lo. Dizer que tudo ficaria bem e que, ao amanhecer, ele estaria de volta ao normal. A garota sabia que não deveria abrir a porta. Ela tinha todas as chaves dos cadeados em um pequeno molho em seu bolso. Era fácil, mas ela não deveria. David ficaria bravo como nunca havia ficado antes.

O animal aproximou o focinho no buraco da fechadura e cheirou e em seguida, ergueu o focinho e uivou. Aquilo sim foi um uivo, parecido com o uivo dos cães e lobos, mas ainda assim, apenas parecido. O som era como um lamento e Laura sentiu seu coração se despedaçar. Não aguentou, puxou o molho de chaves do bolso e começou a abrir os cadeados. Um a um, eles foram se soltando e as correntes caindo sobre o assoalho. Havia agora apenas a fechadura da porta. Laura respirou fundo e também o abriu.

Colocou a mão sobre a fechadura e a abriu. Ali, parado a sua frente, estava um ser totalmente diferente do anterior, que ela via pela fechadura. Era um enorme lobo cinza, com pelos compridos e olhos ameaçadores. Seus dentes à mostra tremiam, revelando largos e compridos caninos pontiagudos.

Laura, horrorizada, perdeu o fôlego e tentou fechar a porta novamente, mas o monstro jogou-se contra a garota em um piscar de olhos. A porta bateu em seu corpo gigantesco, mas ele avançou e derrubou Laura escada abaixo. Ela rolou os degraus, desajeitada, e sua visão se escureceu durante um breve momento. Talvez tivesse batido a cabeça.

Quando levantou os olhos, viu a criatura no alto da escada, a encarando com um olhar repleto de ódio. Um olhar maligno como ela nunca havia visto antes. Nem em homens nem em animais. Aquilo era diferente. Não pertencia aquele mundo. Não deveria estar ali e ela finalmente compreendeu o que estava a sua frente. Era um demônio. Era feito de maldade e fúria, de escuridão e sangue e ela o havia libertado.

Tentou se levantar, mas sentiu o calcanhar fraquejar e desabou novamente sobre o chão. O monstro começou a descer os degraus vagarosamente, com a boca aberta e a língua para fora, cercada pelos seus dentes pontudos. Ele salivava e encarava Laura com um olhar lupino, repleto de cólera.

– Me desculpe, David.

 

Foto: Darlene Bushue

 

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Estudou desenvolvimento de jogos e design gráfico focado em 3d e animação. Atualmente preso nas aulas de marketing, é um amante de livros de horror, ficção e história, assim como adorador apaixonado de toda a sorte de animações. Maníaco por ideais hiperrealísticos de cybercultura, ramificações do expressionismo alternativo pós-moderon e (quase) pai de um cachorro.

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