A Beleza do Inusitado, exposição de José De Quadros, chega ao Sesc Santo André dia 28/02
Artista expõe trabalhos em galeria aérea que retrata detalhes do cotidiano na comunidade Tamarutaca. Obras prévias na Galeria da unidade completam a mostra
Do crescimento demográfico e urbanização mal planejada nasceram as favelas. A palavra “favela” propriamente dita – e escrita – foi inicialmente usada por Euclides da Cunha ao descrever os assentamentos do sertão baiano durante a Guerra de Canudos. Em Os Sertões (1902), o escritor compara as habitações na encosta dos morros com a faveleira, conhecida também como mandioca-brava, raiz típica do Nordeste. Favela: trata-se de um dos termos mais brasileiros e clássicos da literatura, e que sobrevive até hoje. A proximidade física e o cotidiano vivido em espaços densamente ocupados exaltam a vida comunitária, essência das favelas e conjuntos habitacionais. Todos fazem parte da comunidade, cultivam em si o significado de pertencimento, compartilham momentos, convivem com problemas, angústias e desejos de abrir olhos e ouvidos que se fecham às áreas periféricas da cidade.
Para quem está distante tudo pode parecer igual. Ruas estreitas, becos, vielas, fios da rede elétrica, campos de terra, casas sobrepostas que ocupam o vazio como rizomas, e – principalmente – seus habitantes, tudo reserva um encanto original e único em cada comunidade.
E foi atrás desta beleza particular que José De Quadros, pesquisador, artista plástico e pintor brasileiro mergulhou na comunidade Tamarutaca, vizinha ao Sesc Santo André, para integrar à unidade a exposição A Beleza do Inusitado. Com curadoria de Tereza de Arruda, a mostra é resultado de um processo de imersão do artista na comunidade, com encontros, palestras, workshops, ateliê aberto que abordaram processos
criativos do artista e técnicas utilizadas, estabelecendo convívio e troca de vivências com moradores. A experiência, iniciada em novembro de 2017, foi mediada pelo MDDF – Movimento de Defesa dos Direitos de Moradores em Favela, e se concretiza nos desenhos em grandes formatos sobre placas de acrílico que estarão expostos e suspensos em uma galeria aérea sob a Área de Convivência da unidade.
As obras protagonizam minúcias da Tamarutaca: detalhes arquitetônicos ganham vida e cor; retratos de moradores que falam através das superfícies e traços; sutilezas despercebidas da rotina tomam forma e importância. As pinturas suspensas transmitem com leveza novos prismas sobre a comunidade. José De Quadros refina seu olhar ao retratar ângulos com perspectivas diferenciadas, não lineares, que conduzem à continuidade do cenário na percepção de quem observa.
As cores que preenchem parcialmente as obras se inspiram no nome da comunidade. A tamarutaca, espécie de crustáceo marinho, possui uma das retinas mais impressionantes do reino animal. Sua visão alcança 16 pigmentos de cores primárias e espectros que vão do ultravioleta ao infravermelho. Invocando olhares multicoloridos, José De Quadros realça em seus desenhos apenas detalhes com cores primárias, responsáveis por criar todas as cores que enxergamos. Um convite a colorir de diversas formas o universo cromático da comunidade Tamarutaca.
Obras na Galeria
Em harmonia com as obras da galeria aérea, estarão expostas na Galeria da unidade obras prévias com recortes de séries já produzidas pelo artista. Entre elas estão a série “Maria Rosa encontra-se com Hans Staden”, conjunto de pinturas dípticas entre Maria Rosa, única remanescente da etnia indígena Oti-xavantes, e o pesquisador alemão Hans Staden, uma das principais fontes antropológicas acerca dos povos ameríndios. De um lado, José De Quadros expõe xilogravuras de pinturas baseadas nos relatos do viajante alemão. Em sua passagem pelo Brasil no século XVI, Hans Staden foi mantido em cativeiro durante oito meses pelos índios tupinambás, fato que lhe rendeu valiosos registros sobre costumes, modos de vida, rituais e organização da tribo. De outro lado do díptico, o artista retrata desenhos com Maria Rosa ornada em penas do pássaro Guará, usadas em rituais canibais dos tupinambás. Nas telas, a índia Oti-xavante transmite olhares alegres, tristes, acusativos. Em todas as obras da série, José De Quadros sobrepõe camadas de tinta com palavras em tupi-guarani que se referem à cabeça, rosto, face, mescladas com pinturas/tomografias do córtex cerebral humano, principal responsável por nossas memórias.
O artista traz também obras da série “Selk’Nam”, inspirada na etnia indígena natural da Isla Grande de La Tierra del Fuego, arquipélago na região sul da Patagônia. Nas pinturas e desenhos da série, José De Quadros retrata fases do ritual Hain, cerimônia de iniciação que representa a passagem da adolescência para a vida adulta. Neste rito, os Selk’Nam pintavam seus corpos com barro e ornavam-se com diferentes adornos em culto aos espíritos da tribo. Também conhecidos como ona (língua falada pela etnia) ou onawo, o povo Selk’Nam sofreu agressivo processo de extinção iniciado com a colonização europeia no século XVI, se estendendo à década de 1930, quando foi decretado oficialmente o desaparecimento da etnia. Em telas que unem honra e memória, José De Quadros expressa índios Selk’Nam em momentos marcantes do Hain, acompanhado de filetas douradas que figuram ouro e metais preciosos, grandes motivadores da exploração europeia e extinção de povos indígenas nas Américas.
Outra série presente na exposição é “Mãos para São Paulo”. Nela, José De Quadros faz referência à inesquecível campanha Ouro para o bem de São Paulo, mobilizada pelo governo de Getúlio Vargas no início dos anos 30. Em uma arrecadação para financiar a Revolução de 32, as forças getulistas convocavam a
população a doarem objetos de ouro para angariar recursos. Na falta de peças de ouro, famílias doavam alianças de casamento, joias de grande valor, entre outros objetos. Em troca, recebiam um certificado e um anel com a frase “doei ouro para o bem de São Paulo”, gravada no metal. Com o findar da Revolução de 32, grande parte dos recursos foi direcionada à construção do edifício Ouro para o bem de São Paulo, marco histórico da cidade. Restaurando memórias desta época, José De Quadros selecionou trabalhadores – muitos deles, vítimas de acidentes de trabalho – para gravar suas mãos em obras realizadas com técnicas de monotipia que levam seus nomes, sobrenomes e naturalidade em um registro que transfigura a mão-de- obra humana na construção de uma das maiores metrópoles do mundo.
Para completar as obras da Galeria do Sesc Santo André, José De Quadros expõe trabalhos da série “Ex- Votos”. As obras são compostas por ex-votos, objetos que simbolizam promessas de fiéis a seus santos de devoção. As peças foram coletadas pelo artista em suas andanças por Juazeiro do Norte (BA), terra devota a Padre Cícero; São Cristóvão (SE), fundada por Cristóvão de Barros em 1590; e Salvador (BA), local da histórica Igreja de Nosso Senhor do Bonfim. Nestas obras, José De Quadros envolve os ex-votos com lâminas douradas em simples embalagens de plástico, traçando um paralelo entre a riqueza e a simplicidade de vidas humanas. Desenhos com objetos representando partes do corpo curadas de enfermidades compõem os quadros da série.
A Galeria também reserva espaço para um recorte da série “Calango”, telas que revelam o futebol brasileiro longe do glamour esportivo, jogado por diversão nos campinhos de terra do Brasil.
Os trabalhos expostos na Galeria e as inéditas pinturas suspensas na Área de Convivência revelam a essência da produção artística de José De Quadros. Criam uma atmosfera que enaltece as vivências do artista, constantemente imerso, como define, no “treino do olhar, para encontrar beleza no inesperado”.
A Beleza do Inusitado revela o universo pessoal e artístico de José De Quadros, resultado da fina percepção de seu entorno, sua observação apurada e aguda sensibilidade ao lançar novos olhares à comunidade Tamarutaca. A abertura da exposição acontece dia 28 de fevereiro, quarta-feira às 20h, na Galeria. Visitação de 01 de março a 27 de maio, de terça à sexta-feira, das 10h às 21h30. E aos sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h30. Visitas em grupos com mediação devem ser agendadas em [email protected].
Sobre José De Quadros e Tereza de Arruda
A sensibilidade é uma constante no trabalho de José De Quadros. Nascido em 1958, em Barretos, começou sua carreira artística como autodidata em meados dos anos 1980. Um caminho que o levou a mudar para Alemanha e ingressar na Faculdade de Artes Plásticas de Kassel, onde se formou em 1998 com especialização em pintura. Acompanhada pelo desenho, esta linguagem artística é retratada por José De Quadros em suas vivências do cotidiano, repleto de histórias onde filtra imagens para compor um universo de detalhes e recortes que permeiam sua maneira curiosa de enxergar o mundo que o cerca.
José De Quadros trabalha tanto em São Paulo quanto em Kassel, onde vive há mais de vinte anos. Por sua presença ativa no contexto das artes plásticas no Brasil, convive com estadias intercaladas entre as duas cidades, com mostras contínuas em São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Florianópolis, João Pessoa entre outras (confira anexo com a linha do tempo do artista).
A vivência multicultural e simultânea faz com que José de Quadros se readapte a cada temporada. Esta vida bilateral lhe permite visualizar ambos os contextos tanto como protagonista atuante quanto observador distante, percorrendo diversas camadas de vivências e observação crítica social, pessoal e artística.
Tereza de Arruda, curadora da exposição, é historiadora de arte formada na Universidade Livre de Berlim, Alemanha, e curadora independente. É colaboradora da Bienal de Havana desde 1997 e foi co-curadora da Bienal Internacional de Curitiba em 2009, 2013 e 2015. Fez a curadoria de diversas exposições, entre elas “No seu coração/na sua cidade”, na Køs Dinamarca e a exposição “Clemens Krauss, Pequenos Emperadores”, no MOCA – Museu de Arte Contemporânea Chengdu, ambas em 2016; a mostra “Geração Transterritorial”, no Paço das Artes- São Paulo em parceria com a Kunsthochschule für Medien. Coordenou a mostra “Interconnect@ between attention and immersion”, no Museu ZKM/Zentrum für Kunst und Medientechnologie Karlsruhe, e a mostra “Iimagem do Som”, na St. Elisabeth Kirche, assim como “Intervenções e Tropicária”, todas em parceria com a Casa das Culturas do Mundo em Berlim. Foi também curadora das mostras “sobreVIVER”, de José De Quadros, no Sesc Pompéia em 2010, e da “Em busca do destino de Chiharu Shiota”, no Sesc Pinheiros em 2015.
Serviço
A Beleza do Inusitado
Livre para todos os públicos. Grátis
Abertura
28/02, quarta-feira, às 20h na Galeria
Visitação
De 01/03 a 27/05, de terça à sexta-feira, das 10h às 21h30. Sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h30.