A Baró Galeria Jardins apresenta a partir desta terça-feira, dia 10 de abril, a exposição – Dos meus comunistas, cuido eu. (Roberto Marinho), individual do artista Lourival Cuquinha. A exposição é composta por trabalhos inéditos em que o artista propõe reflexão acerca da estrutura fundiária brasileira, suas raízes e seus desdobramentos na política contemporânea. A mostra é a segunda de uma série de três exposições – a primeira foi OrdeMha, realizada na Baró Galeria, em 2016. O conexão entre as mostras realiza-se pela presença do trabalho Golpe Profundo, uma faixa pintada nas paredes da galeria em uma escala de cores; do verde bandeira ao preto petróleo.
Em Apólice do Apocalipse, um dos trabalhos presentes na mostra, Cuquinha expõe uma transcrição da carta de Pero Vaz de Caminha a grilos vivos e às substâncias expelidas pelos insetos. A esse procedimento, comumente empregado por latifundiários, chamamos de grilagem. A ação dos grilos dá aparência antiga a documentos de propriedade de terras apropriadas ilegalmente com o objetivo de legitimar a posse. A grilagem é reveladora da estrutura desigual de acesso à terra no Brasil, no qual o latifúndio e as elites se apoiam e se utilizam do Estado e dos mecanismos legais em seu benefício.
Na carta de Caminha transcrita por Cuquinha, o colonizador enuncia, em 1º de maio de 1500, suas primeiras impressões sobre aquele território que viria a ser chamado de Brasil. Em um mobiliário quase barroco – e que remete às extravagâncias da aristocracia portuguesa – feito de vidro e madeira, o texto da carta é exposto e, através do vidro, conseguimos ver os grilos vivos envelhecendo-o, alterando-o, devorando-o. Por meio de sua degradação, o documento é, ao mesmo tempo, legitimado, pois assume caráter de antigo, e destruído.
Esse trabalho nos remete ao que poderia ser a primeira grilagem ocorrida no território que daria origem ao país – o ‘descobrimento’ do território pelos portugueses. A carta de Caminha enuncia uma história de dominação e espoliação da população indígena que já habitava o território. Os portugueses aparecem na história oficial como heróis e desbravadores de mares, tal que a real chacina contra a população local é apagada da historiografia. Cuquinha aponta para o momento em que o conquistador europeu se apropria arbitrária e depois violentamente das terras brasileiras e, a partir daí, começa uma história brasileira, na qual se inscrevem relações de dominação, desigualdade e espoliação. Nos outros trabalhos presentes na mostra, na bandeira Brasil República Vendida Financial Art Project ou no vídeo Sócios (ou Chora Geddel), o artista parece nos colocar, como espectadores, diante dessas relações de espoliação que permeiam a política contemporânea.
O título escolhido por Cuquinha é ainda mais curioso: a frase de Roberto Marinho, dita em 1964 quando, logo após o golpe militar, um dos ministros de Castelo Branco pediu que ele entregasse uma lista de seus empregados que tivessem ligações com a esquerda e o comunismo, o editor-diretor-proprietário, Roberto Marinho, então enunciou tal frase: ‘dos meus comunistas, cuido eu’. Ao escolher essa frase, Lourival Cuquinha parece nos lembrar, mais uma vez que, na história do Brasil, o Estado e o poder público subordinam-se, muitas vezes, ao poder privado e às grandes corporações. O Estado Brasileiro, assim como quando foi responsável por promulgar a Lei de Terras, responde e atua em conjunto com as elites, mantendo a estrutura desigual de nosso país.
Além disso, a escolha dessa frase nos remete à história da luta pela terra no Brasil: a luta por uma mudança na estrutura fundiária é imediatamente identificada como uma luta comunista e, deste modo, algo que o status quo e o autoritarismo querem que seja execrado pela população em geral. Sob a ‘ameaça do comunismo’, ações militares e intervenções foram – e ainda são – justificadas e a luta de importantes movimentos sociais é desqualificada.
Assim, a história de violência com que se realiza a posse da terra no Brasil e os mecanismos legais que legitimam a desigualdade se inscrevem no trabalho de Lourival Cuquinha. A ficção narrativa sobre o ‘descobrimento do Brasil’ aliada à referência a métodos contemporâneos de expropriação tornam o trabalho do artista uma importante ponto de reflexão para pensar nossa situação nos dias atuais.
Sobre o artista
Lourival Cuquinha é artista visual e trabalha com várias mídias. Seu trabalho atinge o campo político geralmente partindo de impressões estritas e pessoais. Não chegou a concluir nenhum curso acadêmico, mas cursou engenharia química, filosofia, direito e historia, passou dez anos na Universidade Federal de Pernambuco (1993 – 2002). Atua em artes visuais, nas áreas de artes plásticas, audiovisual (fotografia, cinema e vídeo) e intervenção urbana. Participou de exposições nacionais e internacionais, com trabalhos caracterizados pela interatividade e pelo diálogo com o público e com o meio urbano.
Em sua obra estão constantemente refletidos pensamentos sobre a liberdade do indivíduo e o controle que a sociedade e a cultura exercem sobre este; assim como sobre a liberdade da arte, e o controle exercido sobre ela pelas instituições. Ao atuar tanto na cidade quanto na instituição, questionando o estatuto sobre o que é “obra de arte” e verificando os limites das instituições na hora de absorverem investidas artísticas transgressoras, sua obra nos leva a pensar nas formas pelas quais os artistas de hoje vêm se posicionando frente ao sistema da arte, além de criticar tais instituições, fazer uso delas, negociar permanentemente seu lugar, numa deriva contínua entre a crítica e a adesão. Percorrendo um arco que possui inflexões políticas e força poética, a obra de Lourival surge como local de provocação e nos leva a pensar sobre o lugar que a arte pode ocupar nessas negociações pelo exercício da liberdade, experimentando, assim, o seu alcance de intervenção no próprio sistema da arte e na realidade que o circunda.
“Dos meus comunistas cuido eu.” – Roberto Marinho @ Baró Galeria
Abertura: 10 de abril (terça-feira), a partir das 18h.
Período expositivo: de 10 de Abril a 09 de Junho
Horário de funcionamento: segundas das 14h00 as 19h00; de terça-feira a sábado, das 10h00 às 19h00; sábado, das 11h às 19h
Rua da Consolação, 3417 – Jardins – São Paulo – SP
Entrada livre/ franca
Mais informações: www.barogaleria.com
Sobre a galeria
Baró galeria fundada em 2010, trouxe uma nova proposta ao público brasileiro e está fazendo o mesmo na Europa com sua presença no circuito de feiras internacionais, expondo artistas de diferentes gerações e continentes em um constante fluxo de ideias e trabalhos que proporcionam um maior intercâmbio entre o velho e o novo mundo.
A galeria nos últimos anos deu ênfase aos artistas dos anos 1970 e 1980, como o mexicano Felipe Ehrenberg e o argentino Roberto Jacoby, o artista filipino David Medalla e o artista paquistanês Rasheed Araeen, os dois últimos apresentados na Bienal de Veneza de 2017 e Documenta Kassel e Atenas (Araaen), possibilitando a coexistência desses com um time de artistas brasileiros como Almandrade, Mônica Nador, Lourival Cuquinha, Túlio Pinto, Paulo Nenflídio, Maria Nepomuceno, entre outros.
O proposito da galeria é ir além de um modelo de representação restrito, com uma seleção eclética de artista que se embasa na qualidade da suas pesquisas. A galeria também representa artistas europeus e americanos de destaque na cena internacional como o artista emergente americano Daniel Arsham e o consagrado pintor alemão Jirí Georg Dokoupil.
[1] José de Souza Martins, importante sociólogo brasileiro, sintetiza o regime e a distribuição de terras em nosso país: enquanto havia trabalho escravo no Brasil, não havia uma Lei de Terras que a inserisse como um bem no mercado. A partir do momento em que o trabalho se torna ‘livre’ – com a proibição inicial do tráfico de escravos e posterior abolição deste – o acesso a terra se vê mediada pela propriedade da mesma, regulada pelo Estado. Assim, todas as terras brasileiras, que antes eram propriedade da Coroa e exploradas em regime de concessão, passam a fazer parte de um mercado imobiliário ainda incipiente, mas que já beneficia uma parcela pequena da população. A partir da Lei de Terras, teoricamente, todas as aquisições de terra no Brasil devem ser datadas inicialmente de um documento de 1850.