Figura de singular trajetória nas artes plásticas brasileiras, Farnese de Andrade é autor de uma obra potente, que toma o observador por sua força e fragilidade, ao mesmo tempo em que o perturba com certa morbidez. As dualidades que marcam sua produção estão em cartaz em Farnese de Andrade – Memórias Imaginadas, mostra realizada pela galeria Almeida e Dale, em São Paulo, em cartaz até 15 de junho.
Com curadoria de Denise Mattar, a exposição reúne cerca de 70 obras, lançando nova luz à obra do artista de origem mineira ao incluir pinturas, desenhos e gravuras e colocá-las ao lado de sua inquietante produção tridimensional, sem paralelo na arte brasileira. Do conjunto apresentado, cerca de 35 trabalhos são bidimensionais, criações de diferentes períodos da vida do artista.
Ganham destaque as enigmáticas figuras femininas, para as quais o artista usava rapazes como modelos. Há ainda uma amostragem de gravuras e desenhos na qual se destaca Censura, obra responsável pela premiação de Farnese em 1970, no Salão Nacional de Arte Moderna (SNAM) – exposição organizada pelo então Ministério da Educação e Saúde e o Museu Nacional de Belas Artes.
“Sua gravura é plena de texturas, cortes abruptos e contrastes de luz e sombra. Sem tirar a pena do papel realizava compulsivamente os nanquins intitulados Obsessivos, de quase inacreditável precisão”, afirma Denise Mattar. Para realizar seus desenhos a cores, Farnese desenvolveu ainda uma técnica refinada que chamava de “tinta transformada”, com um resultado que os aproxima da pintura. “São trabalhos densos, ambíguos, permeados por uma sensualidade perversa e imersos numa sufocante ourivesaria visual”, completa a curadora.
Em 1964, o artista, que já era reconhecido e premiado pela qualidade de seus desenhos e gravuras, passa a desenvolver trabalhos aos quais chama de “impressão manual de formas”, técnica que consistia na criação de carimbos confeccionados a partir de madeiras carcomidas, sandálias velhas e apetrechos curtidos pelo sol e sal, devolvidos pelo mar. A pesquisa desses materiais, até então utilizados como matrizes para a criação de gravuras singulares, acaba por conduzir Farnese a seus objetos.
O artista passa então a coletar fragmentos vários, encontrados num primeiro momento na praia e, posteriormente, comprados numa espécie de compulsão. Arrebatado por uma ânsia por capturar sua própria história e mergulhar em suas memórias imaginadas, aprisiona tudo aquilo que é coletado em caixas, gavetas, oratórios e semelhantes, criando assemblages que nunca são dadas por terminadas – processo interrompido apenas com venda das peças, o que o artista fazia a contragosto, recomprando-as por vezes.
A exposição organizada pela Galeria Almeida e Dale reúne 35 objetos de Farnese, explicitando as várias facetas desta produção singular, comparável à de artistas surrealistas como o alemão Hans Bellmer e o americano Joseph Cornell. São trabalhos de séries emblemáticas, realizadas entre 1966 e 1995, entre as quais Viemos do Mar, O Anjo Anunciador, Anunciação, São Jorge e Cosme e Damião.
As assemblages de Farnese tratam de questões como a memória, o tempo, a vida e a morte, o masculino e o feminino, o pecado e o castigo. São combinações antagônicas de segredos e revelações, medo e malícia, delicadeza e crueldade. Ao mesmo tempo em que a finitude humana é escancarada por bonecas fragmentadas e cabeças suspensas no ar, a religião é questionada quando faz uso de ex-votos e santos paralisados, cortados, virados de ponta cabeça.
“[Farnese] usa oratórios, caixas e gamelas como continentes de uma turbulência mental mórbida, cujo grito sai abafado. São trabalhos potentes, mas claustrofóbicos, que remexem sem dó nas entranhas do inconsciente, e por isso fascinam, encantam, assustam e incomodam”, afirma Denise Mattar.
Quase fazendo eco à sua produção incomum, o trabalho de Farnese tem uma ressonância ambígua junto à crítica de arte. Apreciada por críticos contemporâneos como Tadeu Chiarelli, Helouise Costa, Ana Paula Nascimento, Rodrigo Naves, Charles Cosac, entre outros, ele é, quase sempre, excluído das grandes retrospectivas da arte brasileira. “Em parte, isso ocorre porque grande parcela da crítica atribui apenas às tendências construtivas o encontro de um caminho próprio para a arte brasileira, mas pesa também uma questão mais antiga: a rejeição à matriz surrealista, que acontece desde de Mário de Andrade”, pontua a curadora.
Reunindo obras de coleções particulares do Rio de Janeiro, Bahia, Minas Gerais e Pernambuco, a exposição Farnese de Andrade – Memórias Imaginadas oferece ao público uma rara oportunidade para a apreciação de um conjunto integral da obra do artista, possibilitando um mergulho em seu mundo de fantasias construídas.