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Conto – A Jogadora

Nos meus tempos de meninice, fui um exímio jogador de cartas. Todos sempre contam vantagens sobre suas façanhas em jogos, mas eu era realmente bom naquilo. Era acostumado a jogar tranca, mas minhas habilidades iam muito além. Vinte e um, truco, paciência. Era como um talento nato, pois nunca tive que estudar os jogos ou descobrir algum truque para enganar meus oponentes.

Ainda me recordo do início de tudo, em um dia das férias de verão. Eu estava na casa de praia com meus avós e meus pais. Meu avô tinha ido dormir mais cedo, pois tinha passado mal da doença que anos mais tarde o mataria e eu havia tomado seu lugar na mesa ao lado da minha avó.

Ela rapidamente me ensinou as regras e apesar de eu ser café-com-leite, como se dizia na época, nós ganhamos dos meus pais. A partir desse dia, eu realmente me apaixonei pelos jogos de cartas. Não de um modo viciado ou competitivo real. Eu apenas jogava quando podia e dificilmente perdia. E quando perdia, convencia a mim mesmo que foi pura falta de sorte.

Na escola eu sempre era escolhido como dupla para jogar truco. Crianças como éramos, não tínhamos dinheiro para apostar, então apostávamos tazos ou cartinhas colecionáveis e logo eu me tornei dono de uma maravilhosa fortuna dessas bugigangas.

Quando fiquei mais velho, acabei abandonando o antigo hábito, mas sempre que havia uma oportunidade de demonstrar meus dons com as cartas, eu o fazia. Era o ego falando mais alto.

Eu já tinha meus vinte e poucos anos quando viajava com alguns amigos para a praia. Paramos o carro em um bar na beira da estrada para descansar e após alguns minutos lá, ouvi uma discussão ao longe.

Uma mulher de aproximadamente quarenta anos estava sentada em uma mesa, jogando cartas com um homem e aparentemente, estava vencendo. Aproximei-me e perguntei para o sujeito mais próximo o motivo daquele barulho todo e descobri que a mulher nunca havia perdido uma partida de truco.

Uma pequena chama cresceu no meu interior. Não pude suportar a energia que cresceu em mim e rapidamente disse que seria o próximo. Estava na hora de brilhar.

Não demorou a chegar a minha vez. Eu estava confiante e ela nem sequer olhava pra mim. Peguei as cartas como se segurasse um tesouro e ela as segurava com desdém. Em poucos minutos eu fui derrotado e pedi revanche. Minha derrota havia sido muito rápida e aquilo, aos meus olhos, pareceu um absurdo. Perdi novamente. Senti minhas bochechas esquentarem quando ela riu.

– Quer jogar mais uma? – Ela perguntou. Claro que eu aceitei.

Apostei cem reais. Talvez fosse isso. Eu não estava me empenhando totalmente. Precisava de um incentivo ou pelo menos achava que precisava. Queria acreditar que precisava.

Perdi outra vez.

Antes de ir embora, ela me chamou para um canto. Emburrado e de cara fechada, fui em sua direção. Ela sorriu e disse que eu jogava bem, mas aquilo me pareceu apenas um leve consolo.

– Meu pai bebia muito. – disse ela, enquanto voltava seus olhos para a janela e observava a estrada lá fora. – eu não me importava que ele me batesse, mas me doía muito quando o via batendo na minha mãe.

– Por que está me contando isso? – perguntei um pouco menos irritado. Havia muita tristeza em suas palavras, mas eu estava confuso demais pra sentir pena.

– Você pareceu perplexo quando perdeu e eu achei que merecia pelo menos uma explicação.

– Tá, ele bebia e?

– E Ele gostava muito de jogar cartas, mas era muito ruim. Ruim e bêbado. Descobri que se ele estivesse jogando, ele não estaria pensando em bater em ninguém. Se eu ganhasse todas, ele ia me bater. Se eu perdesse todas, ele não ia querer jogar mais e consequentemente, ia fazer merda. Era um jeito de deixar ele ocupado. Uma partida eu ganhava e a outra eu perdia. Era meio chato me segurar, mas não durou muito.

– Não durou? – questionei.

– Ele foi preso. – respondeu ela, agora se virando para mim e abrindo um sorriso tímido. – Agressão, sabe.

Eu nunca me esqueci dela. Sempre arrumei uma desculpa para ir à praia e parar naquele bar, onde ela sempre estava. Sempre a desafiava e ela sempre ganhava de mim. Nunca venci uma única partida e até hoje não faço a mínima ideia de seu nome.

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Rafael Poffo

Estudou desenvolvimento de jogos e design gráfico focado em 3d e animação. Atualmente preso nas aulas de marketing, é um amante de livros de horror, ficção e história, assim como adorador apaixonado de toda a sorte de animações. Maníaco por ideais hiperrealísticos de cybercultura, ramificações do expressionismo alternativo pós-moderon e (quase) pai de um cachorro.

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