Movimentos

Além do Canvas: seis movimentos emergentes na arte contemporânea


Entre algoritmos que pintam, tecidos que narram histórias e pinceladas que recusam a nitidez, a arte contemporânea vive um momento de virada. Novos movimentos surgem não apenas como respostas às crises ambientais, culturais e tecnológicas, mas como tentativas de reescrever a própria relação entre artista, obra e público. Neste panorama, seis correntes se destacam por expandirem fronteiras estéticas e questionarem os limites do que chamamos de arte.

Arte Híbrida (Hybrid Art)

No território da arte híbrida, a imaginação do artista e a lógica da ciência deixam de caminhar em trilhas paralelas para se fundirem numa mesma paisagem. Aqui, o laboratório é tão ateliê quanto a sala de exposição, e ferramentas como biotecnologia, robótica, inteligência artificial e visualização de dados não são apenas instrumentos, mas matéria-prima.

A origem dessa prática remonta às experiências artísticas e científicas dos anos 1990, quando coletivos e instituições começaram a explorar interfaces homem-máquina de forma mais colaborativa. Hoje, projetos de bioarte cultivam organismos vivos como parte de instalações, obras interativas usam sensores para responder a estímulos humanos e robôs programados por artistas assumem gestos criativos imprevisíveis.

Mais do que estética, a arte híbrida propõe um deslocamento de autoria: a criação passa a ser partilhada entre humanos e não-humanos, colocando o público diante de questões urgentes — desde a ética da manipulação genética até os limites do controle humano sobre sistemas inteligentes. É um campo que não apenas amplia a definição de arte, mas também reconfigura a própria noção de “processo criativo” em tempos de convergência tecnológica.

Um exemplo marcante é a obra “Bios (Torvalds)”, da artista francesa Orlan, que combina cultura digital e biotecnologia ao criar retratos híbridos de DNA humano e códigos computacionais. A instalação permite que visitantes interajam com algoritmos que traduzem dados genéticos em formas visuais, transformando ciência em narrativa estética e convidando o público a refletir sobre identidade, privacidade e a relação íntima entre corpo e tecnologia.

Mireille Suzanne Francette Porte, conhecida como Orlan (Saint-Étienne, 30 de maio de 1947), é uma artista francesa. Ela usa o corpo como suporte para suas artes

Metamodernismo

O metamodernismo emerge como uma espécie de ponte suspensa entre dois continentes culturais: o modernismo, com sua crença no progresso e na verdade universal, e o pós-modernismo, marcado pelo ceticismo e pela ironia. Ao invés de escolher um lado, essa estética prefere oscilar entre ambos, misturando idealismo e dúvida, sinceridade e autoconsciência.

A noção ganhou força no início dos anos 2010, quando críticos como Timotheus Vermeulen e Robin van den Akker definiram o termo para descrever uma sensibilidade de época que rejeitava o cinismo estéril, mas também não regressava à ingenuidade. No campo das artes visuais, isso se traduz em obras que combinam emoção genuína com consciência crítica, narrativas épicas com fragilidade pessoal, e experimentação formal com ressonâncias arquetípicas.

Essa oscilação contínua cria um espaço fértil para artistas que se recusam a ser categorizados por manifestos ou rótulos, permitindo que uma obra seja ao mesmo tempo poética e analítica, nostálgica e futurista. É uma postura que reflete a experiência contemporânea: uma constante negociação entre esperança e desencanto, pertencimento e alienação.

Um exemplo notável é o trabalho do artista islandês Ragnar Kjartansson, cuja instalação performática The Visitors (2012) reúne músicos tocando isoladamente em diferentes cômodos de uma casa, conectados apenas pela música. A obra é ao mesmo tempo profundamente emotiva e consciente de sua própria teatralidade, capturando o espírito metamoderno de unir o sublime e o autocomentário numa mesma experiência.

https://www.youtube.com/watch?v=DLsvKMpSLCE

Arte Protocolar (Protocol Art)

A arte protocolar nasce no ecossistema da Web3, onde blockchain, contratos inteligentes e sistemas descentralizados deixam de ser meros suportes para se tornarem parte da própria obra. Nesse contexto, o “protocolo” — conjunto de regras codificadas que define como algo funciona — é elevado a status de linguagem artística, determinando não só a estética, mas também a lógica de circulação e propriedade.

Ao contrário das artes digitais tradicionais, em que a obra é apenas armazenada ou registrada online, aqui o protocolo é o núcleo criativo. Ele pode definir, por exemplo, que uma obra se modifique automaticamente com base em dados externos, que sua propriedade seja compartilhada por uma comunidade ou que a imagem se fragmente em múltiplos tokens que só revelam sentido quando reunidos.

Essa abordagem desloca o papel do artista: mais do que criador de formas visuais, ele se torna designer de ecossistemas e arquiteturas de interação. O valor simbólico da obra está tanto no código que a rege quanto na experiência que proporciona, levantando questões sobre autoria, colecionismo e as novas formas de economia cultural.

Um exemplo marcante é o projeto Autoglyphs (2019), criado pelo coletivo Larva Labs. Trata-se de uma série de obras geradas inteiramente on-chain — o código que as produz está gravado permanentemente na blockchain, sem depender de arquivos externos. Cada peça é única, autossuficiente e aberta à consulta pública, transformando a própria lógica do registro digital em um gesto estético.

Autoglyphs (2019), criado pelo coletivo Larva Labs

Pintura Turva e Fragmentada

Em um mundo saturado por imagens nítidas e polidas, a pintura turva e fragmentada se apresenta como uma recusa deliberada à clareza. Ao desfocar contornos, quebrar composições e deixar zonas de ambiguidade, esses trabalhos instauram uma pausa no fluxo visual acelerado, convidando o olhar a desacelerar e a habitar o incerto.

Essa tendência dialoga com a lógica dos sonhos e da memória, onde as imagens raramente são lineares ou completas. O borrão, a sobreposição e a interrupção formal não são “defeitos” a corrigir, mas recursos que instauram atmosferas emocionais e narrativas fragmentadas, resistindo à estética hiperdefinida das telas digitais.

Além de um gesto estético, essa escolha carrega uma dimensão política: questiona a demanda por transparência e eficiência visual, tão presente na cultura de consumo rápido de imagens, e propõe um retorno à experiência lenta, interpretativa e subjetiva.

Um exemplo notável é o trabalho da pintora britânica Caroline Walker, cujas obras capturam cenas domésticas e urbanas a partir de janelas, reflexos e véus de luz. A nitidez parcial e os enquadramentos fragmentados criam uma sensação de voyeurismo contemplativo, onde o espectador é convidado a reconstruir mentalmente o que vê, completando as lacunas deixadas pela artista.

caroline walker

Arte Sustentável

A arte sustentável não se limita ao uso de materiais ecológicos; ela repensa todo o ciclo de vida da obra — da extração de recursos à sua circulação e descarte. Nessa perspectiva, o artista atua como um agente ecológico, consciente de que cada escolha estética carrega implicações ambientais e sociais.

O movimento dialoga com heranças do minimalismo e da “desmaterialização” da arte conceitual dos anos 1960 e 1970, mas com um foco renovado na urgência climática. Isso significa adotar práticas como a reutilização de resíduos, a incorporação de elementos naturais, a produção em pequena escala e a priorização de processos que não gerem poluição ou dependam de cadeias extrativistas predatórias.

Mais do que estética, trata-se de uma ética que integra arte, ativismo e ciência. As obras podem funcionar como instrumentos de conscientização, plataformas de debate ou até mesmo como habitats para outras formas de vida, dissolvendo as fronteiras entre objeto artístico e intervenção ecológica.

Um exemplo emblemático é o projeto “Ice Watch” (2014–2018), do artista dinamarquês Olafur Eliasson, que transportou blocos de gelo da Groenlândia para praças públicas em cidades como Copenhague, Paris e Londres. Ao permitir que o gelo derretesse diante dos transeuntes, a instalação transformou o fenômeno distante do degelo polar numa experiência sensorial e urgente, conectando estética e ação ambiental.

Ice Watch” (2014–2018), do artista dinamarquês Olafur Eliasson

Arte Indígena em Ascensão

O reconhecimento da arte indígena no circuito contemporâneo internacional não é apenas uma tendência estética, mas também um movimento político e cultural. Ele rompe com décadas de marginalização, nas quais essas produções eram vistas como “artesanato” ou “etnografia” e não como arte em pleno sentido. Hoje, curadores, museus e bienais começam a reconhecer a complexidade conceitual, a sofisticação técnica e a potência simbólica dessas obras.

Esse avanço tem sido impulsionado por eventos de grande visibilidade, como a Bienal de Veneza de 2024, que ampliou significativamente a presença de artistas indígenas, e por políticas institucionais que buscam reparar a exclusão histórica. Ao entrar no espaço da arte contemporânea, a produção indígena questiona noções de autoria, território, tempo e memória, integrando narrativas ancestrais a linguagens experimentais.

Mais do que uma inclusão formal, essa ascensão reposiciona o papel das culturas originárias como protagonistas de debates urgentes sobre ecologia, direitos coletivos e decolonialidade. É uma arte que, mesmo quando dialoga com tecnologias digitais, mantém vínculos com rituais, cosmologias e formas de conhecimento comunitário.

Um exemplo expressivo é o trabalho da artista maia-quiché Regina José Galindo, que, embora transite pela performance e pela instalação, mantém em sua obra um diálogo profundo com questões de território, violência e memória coletiva. Em Quiebrantahuesos (2022), Galindo usa o próprio corpo como metáfora de resistência e denúncia, evocando a força de narrativas ancestrais em contextos contemporâneos de opressão.

Regina José Galindo

A paisagem da arte contemporânea, cada vez mais fragmentada e interconectada, encontra nesses seis movimentos um mapa provisório — não para fixar fronteiras, mas para mostrar onde elas estão sendo desfeitas. Da fusão entre ciência e estética na arte híbrida ao diálogo entre tradição e tecnologia na arte indígena em ascensão, o que se vê é uma abertura radical para formas de criação que atravessam disciplinas, temporalidades e geografias.

Essas correntes não apenas refletem o espírito de um tempo marcado por crises ambientais, tensões políticas e revoluções tecnológicas, mas também oferecem novas ferramentas para imaginar futuros possíveis. São práticas que se recusam a ser neutras: questionam, provocam, cuidam e, acima de tudo, propõem outras maneiras de estar no mundo.

Para o público e para os artistas, acompanhar esses movimentos é mais do que um exercício de atualização; é uma oportunidade de se engajar com formas de pensar e sentir que podem redefinir a própria ideia de arte nas próximas décadas. Afinal, como mostram essas experiências, o canvas já não basta — é preciso habitar o espaço onde linguagem, matéria e memória se encontram para inventar novos horizontes.

Não foi possível salvar sua inscrição. Por favor, tente novamente.
Sua inscrição foi bem sucedida.
Paulo Varella

Estudou cinema na NFTS (UK), administração na FGV e química na USP. Trabalhou com fotografia, cinema autoral e publicitário em Londres nos anos 90 e no Brasil nos anos seguintes. Sua formação lhe conferiu entre muitas qualidades, uma expertise em estética da imagem, habilidade na administração de conteúdo, pessoas e conhecimento profundo sobre materiais. Por muito tempo Paulo participou do cenário da produção artística em Londres, Paris e Hamburgo de onde veio a inspiração para iniciar o Arteref no Brasil. Paulo dirigiu 3 galerias de arte e hoje se dedica a ajudar artistas, galeristas e colecionadores a melhorarem o acesso no mercado internacional.

Recent Posts

Pinacoteca de São Paulo celebra 120 anos com livro inédito

A Pinacoteca de São Paulo celebra 120 anos de história com o lançamento de publicação…

21 horas ago

Cecília Maraújos apresenta ‘Autoficções’ no Ateliê 31 – Rio de Janeiro

O Ateliê 31 apresenta Autoficções, exposição individual de Cecília Maraújos com curadoria de Martha Werneck,…

21 horas ago

Damien Hirst | Reflexões polêmicas sobre a mortalidade

Damien Hirst (1965) é um artista contemporâneo inglês nascido em Bristol. Trabalhando com instalações, esculturas,…

3 dias ago

Diversidade na arte contemporânea: como ela evoluiu nos últimos 50 anos?

A representatividade e diversidade na arte contemporânea global referem-se à inclusão de artistas de diferentes…

3 dias ago

“Not Vital – Tirando onda”, no MAC Niterói com obras recentes e inéditas

O MAC Niterói (Museu de Arte Contemporânea de Niterói) recebe a exposição “Tirando Onda”, do…

3 dias ago

MASP exibe exposição de artista-xamã que retrata cosmologia Yanomami

O MASP – Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand exibe, de 5 de…

3 dias ago