Psicologia

Autoestima artística: como rir de si mesmo salva a criatividade

A seriedade como armadilha

A arte carrega uma maldição antiga: a de parecer sempre importante. Desde o romantismo, espera-se do artista um ar grave, uma expressão introspectiva, como se cada pincelada fosse um ato de sofrimento existencial. Essa pose, cultivada por séculos, ainda ronda os ateliês contemporâneos — e muitos criadores se sentem culpados quando algo dá certo com leveza. Há uma espécie de superstição estética: se não doeu, não valeu.

O problema é que essa solenidade excessiva acaba transformando a arte em território de culpa. O medo de parecer superficial, de não ser “intelectualmente legítimo”, paralisa. Quantos projetos promissores não ficaram engavetados porque o artista os julgou “bobos demais”? Quantas obras deixaram de nascer por falta de permissão interna para brincar? No fundo, boa parte da chamada crise criativa nasce dessa incapacidade de rir da própria pompa.

Mas a história mostra que a seriedade nunca foi sinônimo de profundidade. Duchamp, com seu urinol de 1917, ridicularizou toda a solenidade do sistema artístico. Picasso dizia que “é preciso muito tempo para se tornar jovem”. O próprio Cildo Meireles — mestre da densidade conceitual — nunca perdeu o humor de quem sabe que, às vezes, a arte é só uma boa pergunta sem resposta.

Erwin Wurm (nascido em 1954) é um artista austríaco. Ele vive e trabalha em Viena e Limberg, na Áustria; em Hydra , na Grécia; e na cidade de Nova York

O poder libertador do riso

O riso tem algo de desobediência. Ele quebra a tensão, derruba hierarquias e devolve o corpo à leveza. Na arte, rir é desafiar a aura do sagrado. Freud dizia que o humor é uma forma civilizada de agressão; Bergson o via como mecanismo de inteligência. Ambos concordariam que rir é pensar com o corpo. E quando o artista ri — de si, do sistema, das próprias pretensões — ele escapa da armadilha da perfeição.

Há um efeito quase físico nisso: rir relaxa os músculos e desarma o cérebro. A neurociência confirma o que os artistas sempre souberam intuitivamente — o riso amplia o pensamento divergente, aquele que conecta ideias distantes, experimenta, erra, inventa. É o oposto da rigidez criativa. Não é à toa que muitos dos grandes artistas cômicos — de Maurizio Cattelan a Hélio Oiticica — tinham uma seriedade por trás da piada. Eles riam para sobreviver à própria intensidade.

O humor, quando bem usado, não banaliza a arte — aprofunda-a. Ele permite que a obra respire, que o público se reconheça, que o artista se reconcilie com o erro. A ironia, nesse contexto, é ferramenta de lucidez: o riso não é fuga, é diagnóstico. Rir de si mesmo é admitir o absurdo do ofício artístico — essa tentativa constante de capturar o invisível com as mãos sujas de tinta.

Quando o artista desaprende a rir

Em algum ponto entre a crítica de arte e o feed do Instagram, o artista desaprendeu a rir. Hoje, cada obra parece nascer sob vigilância: a dos curadores, dos seguidores, dos algoritmos e, sobretudo, da própria consciência crítica. O que antes era brincadeira virou performance de coerência. E coerência, como se sabe, é o jeito mais eficiente de sufocar a imaginação.

Nas redes, o medo de parecer “pouco sério” produz uma espécie de autocensura estética. O artista passa mais tempo editando legendas do que experimentando ideias. O humor, que antes servia de escudo contra o ridículo, virou suspeito — como se o riso diminuísse a densidade de uma proposta. Mas talvez seja o contrário: o riso é o último sinal de vitalidade num sistema que se leva demais a sério.

Em consultórios de psicólogos e bastidores de exposições, repete-se o mesmo refrão: a comparação é o novo inimigo da criação. O artista se mede pela visibilidade alheia e, aos poucos, passa a rir menos — como se o sorriso denunciasse amadorismo. O problema é que sem humor, a arte perde o frescor, e o artista, o prazer. A criação vira burocracia emocional.

Banksy: I love London

Exemplos inspiradores

Maurizio Cattelan construiu sua carreira rindo — dos outros, de si mesmo e, sobretudo, do próprio sistema da arte. Sua escultura La Nona Ora, em que o Papa é atingido por um meteorito, é um golpe de humor teológico e institucional. Já a famosa banana colada na parede, vendida por US$ 120 mil, é o tipo de piada que só um artista profundamente consciente do absurdo poderia fazer. Por trás da gargalhada, há um diagnóstico: o mercado se leva mais a sério do que a arte.

“Cattelan América” ​​refere-se à obra de arte de 2016 do artista italiano Maurizio Cattelan intitulada América, um vaso sanitário totalmente funcional feito de ouro maciço 18 quilates. Instalado no Museu Guggenheim, pretendia ser um comentário sobre riqueza, excesso e o “sonho americano”. A peça foi roubada do Palácio de Blenheim em 2019, com as autoridades acreditando que ela foi derretida para obter o ouro.

No Brasil, o riso também tem história. Cildo Meireles, em Inserções em Circuitos Ideológicos, usou ironia como forma de infiltração política — imprimir “Yankees Go Home” em notas de cruzeiro era rir com inteligência. Ernesto Neto, com suas instalações sensoriais, transforma o humor em experiência corporal: o visitante entra, tateia, se perde, sorri. Já Tunga, com seus cabelos trançados e rituais enigmáticos, ria da própria gravidade: fazia da confusão uma estética.

Cildo Meireles, em Inserções em Circuitos Ideológicos

Esses artistas ensinam que o humor não é leveza gratuita, mas método de crítica. Rir de si mesmo não é desistir da profundidade — é impedir que ela apodreça em pompa. A ironia, quando honesta, é uma forma de afeto: é o artista dizendo ao público “estamos juntos nesse constrangimento”.

Rir como método

Há artistas que começam o dia com alongamentos; outros, com culpa. Talvez fosse mais produtivo começar com uma risada. O humor, longe de ser mero adorno, pode funcionar como disciplina criativa. Rir é desarmar o medo de errar — e a arte, no fundo, é feita de erros bem administrados.

Exercitar o humor no processo criativo é um modo de reeducar o olhar. Pode começar com algo simples: desenhar com a mão não dominante, escrever títulos absurdos, inventar obras que jamais serão feitas. O riso surge quando o controle cede espaço à surpresa — e é nesse intervalo que a imaginação se infiltra. Rir, nesse sentido, é um ato técnico: dissolve o julgamento interno, aquela voz que diz “isso não é bom o bastante”.

O artista que aprende a rir de si mesmo cria com mais liberdade e menos autopiedade. Ele entende que a arte não precisa provar nada — basta existir com honestidade. Como dizia o poeta Manoel de Barros, “desimportância é uma forma de beleza”. E talvez seja esse o segredo: transformar a desimportância em método, e o riso em combustível.

Fountain, Marcel Duchamp

Conclusão

A arte sempre flertou com o abismo — e talvez por isso o humor seja tão necessário: é a corda que impede a queda. Rir de si mesmo não diminui o artista; humaniza. É um lembrete de que o sublime e o ridículo convivem no mesmo ateliê, e que toda grande obra começa como um esboço desajeitado.

Num tempo em que tudo parece exigir importância, rir é um ato de resistência estética. É escolher o prazer em vez do peso, o jogo em vez do julgamento. O riso é, afinal, o primeiro gesto de liberdade: aquele que antecede a criação.

E talvez seja isso o que separa o artista que sofre do artista que vive — o primeiro busca aprovação, o segundo se diverte com o próprio erro. No fim, a arte que sobrevive não é a mais séria, mas a mais sincera.

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Paulo Varella

Estudou cinema na NFTS (UK), administração na FGV e química na USP. Trabalhou com fotografia, cinema autoral e publicitário em Londres nos anos 90 e no Brasil nos anos seguintes. Sua formação lhe conferiu entre muitas qualidades, uma expertise em estética da imagem, habilidade na administração de conteúdo, pessoas e conhecimento profundo sobre materiais. Por muito tempo Paulo participou do cenário da produção artística em Londres, Paris e Hamburgo de onde veio a inspiração para iniciar o Arteref no Brasil. Paulo dirigiu 3 galerias de arte e hoje se dedica a ajudar artistas, galeristas e colecionadores a melhorarem o acesso no mercado internacional.

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