Marília Scarabello é artista visual e sua “Coleção Bandeira” ganhou a mídia nos últimos dias por ter irritado Arthur Lira (PP-AL). Uma das bandeiras que compõem a coleção traz uma imagem em que o presidente da Câmara dos Deputados aparece dentro de uma lata de lixo ao lado da senadora Damares Alves (Republicanos – DF) e Paulo Guedes, ex-ministro da Economia no governo Jair Bolsonaro.
A obra gerou tamanho desconforto na relação entre Arthur Lira e o presidente Lula que até mesmo a presidência da Caixa foi colocada em xeque, já que o cargo, presidido por Rita Serrano, já se mostrava instável desde setembro de 2023.
A coleção, que apresenta diversas versões da bandeira do Brasil coletadas na internet e transformadas em um grande mural de lambe-lambe, traz também outras imagens que incomodaram políticos conservadores, como o ex-presidente da república defecando sobre a bandeira do Brasil, uma bandeira com uma folha de maconha no centro e outra, em versão cor-de-rosa, com a frase “manda nudes”.
A equipe de redação do Arte Ref conversou com Marília Scarabello, com intuito de abrir espaço de fala à própria artista. Mas antes, vamos contextualizar.
A obra faz parte da exposição coletiva “O Grito!”, inaugurada em 17 de outubro de 2023 na Caixa Cultural Brasília. Seu período expositivo estava previsto para finalizar em dezembro, mas foi suspenso dia 24 de outubro, sete dias após sua inauguração, em decorrência da pressão do governo, o que foi interpretado como uma verdadeira ordem de censura.
Com curadoria de Sylvia Werneck, a exposição tinha como inspiração a famosa obra “Independência ou Morte” (1888), de Pedro Américo, e seu objetivo era levantar reflexões sobre os caminhos tomados pelo país durante seus 200 anos de independência. A curadora reuniu artistas que “examinam e problematizam as narrativas ufanistas eleitas como a história oficial perpetuada nos livros e nas mentes dos brasileiros, que a pintura de Pedro Américo pretendia eternizar”, como escreveu Werneck no texto de apresentação.
A mostra apresenta um conjunto de 30 obras produzidas por sete artistas: Élcio Miazaki, Evandro Prado, Gina Dinucci, Marília Scarabello, Moara Tupinambá, Paul Setúbal e Yara Dewachter.
Após a inauguração da exposição, não demorou muito para que Evandro Araújo, influenciador digital e presidente do partido Partido Liberal (PLJ-DF), fizesse um vídeo focado nas imagens que criticam políticos de direita, questionando o conteúdo da mostra e também acusando a própria Caixa por ser conivente com o uso de verba pública para manifestações políticas.
Nos perfis do antigo Twitter (atual X) da deputada federal Bia Kicis (PL-DF) e da senadora Damares Alves (Republicanos-DF), as críticas e pedidos de esclarecimento foram muitos. “Quero informações detalhadas sobre os valores de investimento de recursos públicos nesta exposição. Não podemos admitir dinheiro público em ações que visem ridicularizar a bandeira nacional e que afronte ao Estatuto da Criança e Adolescente”, escreveu Damares.
De acordo com Arthur Lira e seus aliados, a coleção apresenta manifestações com viés político, o que viola as diretrizes do Programa de Ocupação dos Espaços Culturais da Caixa lançado via edital para que iniciativas culturais tivessem espaço na instituição entre setembro de 2023 e março de 2024, com patrocínio da Caixa e do governo federal no valor de R$ 250 mil.
“Considerando que foi identificada na obra em questão manifestação com viés político, o que fere as diretrizes do programa, a Caixa decidiu suspender a referida exposição. A direção do banco informa ainda que determinou apuração de responsabilidade pelos órgãos internos”, disse a Caixa em nota.
A obra de Marília Scarabello “Coleção Bandeira” é um apanhado de imagens de bandeiras do Brasil manipuladas desde 2016. Desta coleção, a artista retira material para alimentar a composição, que cresce à medida em que Marília encontra um novo lema inserido dentro da bandeira do Brasil. A Coleção ganhou um perfil no Instagram, fruto deste processo de pesquisa. As imagens não são exclusivamente de críticas ao governo de Jair Bolsonaro e seus aliados. A composição critica diversas figuras políticas, de diferentes partidos.
“Pra mim era um trabalho que representava milhares de vozes falando, ao mesmo tempo, coisas divergentes, como exemplo “Fora Dilma”, “Fora Temer”, “Fora Bolsonaro”, entre outras que nem são políticas. Foi quando eu percebi que estava criando um banco de imagens muito interessante e fui publicando no Instagram com o crédito das pessoas.” diz Marília.
Para a exposição “O Grito!”, Marília compôs um mural dessas imagens utilizando o lambe-lambe: uma técnica que surgiu na publicidade e que na segunda guerra mundial ganhou espaço para manifestações políticas. Posteriormente, foi aderida também pela arte urbana como forma de protesto. A aplicação repetida dos cartazes numa superfície grande cria um efeito visual peculiar e, é claro, amplia a mensagem.
“Fui acusada de roubar imagens, por não creditar as pessoas. Mas no Instagram, as imagens isoladas estão, sim, creditadas. No caso da colagem, não me interessa a imagem isolada, e sim, a soma delas.” comenta a artista.
Sobre a censura, Marília se diz perplexa. Embora soubesse que seu corpo de obras já havia incomodado algumas pessoas, a artista não esperava que uma exposição causasse uma repercussão tão grande, em tamanha velocidade.
“Como uma exposição coletiva sobre os 200 anos de independência do Brasil pode não ser política? Como podemos falar sobre independência do Brasil sem incomodar alguém? A gente sabia que o trabalho poderia incomodar. E acho que faz parte de um estado democrático de direito e da própria esfera pública um trabalho de arte incomodar. Ele está cumprindo a função dele. Social, inclusive. Agora, imaginar que isso poderia causar uma censura em 2023, na velocidade que foi, é inacreditável.” diz Marília Scarabello.
O olhar crítico sobre o Brasil, sua bandeira e seus simbolismos é narrativa presente em outras coleções de Marília, desenvolvida sob múltiplas técnicas como fotografia, vídeo e instalação.
É o caso da obra “Sem título [Brasil]” (2020- 2021), em que a artista registrou a degradação de um sabonete amarelo com a gravação da palavra “Brasil” durante o seu uso diário.
A produção aconteceu durante os meses de isolamento social e foi selecionada pela curadoria do The Covid Art Museum, o primeiro museu de artes visuais dedicado exclusivamente à Covid-19 e que nasceu logo no começo da pandemia. O acervo é exposto de forma virtual em um site. O trabalho também foi selecionado pela curadoria da Mostra Museu: Arte na Quarentena. e foi instalado na Avenida Pedroso de Moraes, em São Paulo, e em estações de metrô.
Essa instalação apresenta a bandeira do Brasil em forma de um tapete artesanal de tecido, daqueles colocados do lado de fora da porta de entrada das casas, conhecido como capacho.
“Pra mim é um assombro que pessoas que se consideram tão nacionalistas tenham coragem de comprar um tapete com a bandeira do Brasil para colocar na porta, pisar em cima e limpar os pés.” comenta Marília. “Eu encontrei esse capacho em um restaurante de Tiradentes-MG, negociei com o dono do lugar, depois comprei um mastro pela internet, em uma loja super patriota. Essa obra, atualmente, faz parte de uma coleção pública do Museu de Arte de Ribeirão Preto.” afirma Marília.
O trabalho faz parte das reflexões da coleção “Bandeira”, que surge da apropriação das intervenções realizadas pela população na bandeira do Brasil, onde o lema original positivista “Ordem e Progresso” é substituído por outras frases. Para a instalação da obra, uma frase é impressa em milhares de fitinhas. A cada exposição, uma frase diferente é aplicada.
“Eu comecei a recolher imagens da internet e carimbar essas imagens em fitas virgens do Senhor do Bonfim e isso foi dando corpo ao trabalho. Um varal simples com fitinhas e essas frases ecoando, como se fossem pedidos ou mantras.” diz Scarabello
O principal interesse do Arte Ref é ouvir o que a artista tem a dizer, por isso abrimos o espaço para que Marília expusesse sua perspectiva dos acontecimentos.
“A alegação da instituição é que o trabalho tinha um viés político partidário. Mas a alegação da artista – que sou eu – e da curadoria é que não é uma obra com viés político partidário, afinal, ele abarcava todas as manifestações. Havia, também, bandeiras bolsonaristas naquela parede. Esse entendimento de que ele é político partidário é muito pautado no ponto de vista de uma pessoa que visitou a exposição, observou imagens que o ofendiam e fez um vídeo sobre essas imagens. Até aí, ele está no direito dele. Mas essa narrativa é exclusivamente sobre o ponto de vista dele sobre a obra, e não sobre a obra em si.”
“Eu e a curadora vivemos uma semana infernal, com a repercussão da exposição apresentada à mídia nessa narrativa, mas mesmo assim, estamos recebendo apoio de pessoas próximas e também de pessoas que nunca imaginamos. Então eu quero, aqui, agradecer a todos e todas que estão estabelecendo essa rede de apoio.
Pedimos para que as pessoas observem com muita atenção o que está acontecendo, porque foi muito sério e abre precedentes. Já vivemos isso em 2017 e em outros momentos, então fica o meu pedido para que as pessoas olhem atentamente pra isso. A partir do momento em que eu sou censurada, com um trabalho que tem múltiplas vozes, a própria direita está se censurando. Peço que dêem atenção a isso com um olhar mais amplo, para além de mim, e nos ajudem a desfazer essa narrativa. Precisamos de apoio e espaço aberto para podermos debater essa narrativa” conclui Marília Scarabello.
Nascida em Jundiaí- SP (1982), Marília Scarabello é artista visual, vive e trabalha entre Jundiaí e São Paulo. Mestra em Artes Visuais pela Unicamp, especializada em Cenografia Teatral pelo Espaço Cenográfico e graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, iniciou sua produção artística em meados de 2013. Seu trabalho transita entre múltiplas linguagens, incluindo procedimentos frequentes de apropriação, com uma pesquisa direcionada às questões que envolvem a ideia de território e sua representação física e metafórica.
Selecionada pelo edital OMA de Curadoria em 2020 com um trabalho realizado em parceria com Manuela Costa Lima. Participou de diversas exposições coletivas, dentre elas: Ninguém vai tombar nossa bandeira -com curadoria de Julia Lima, São Paulo; Meios e Processos 2019- FAMA- Fábrica de Arte Marcos Amaro, Itu- SP.; 50º e 51º SAC de Piracicaba, Arte Londrina 7; SAV- Salão de Artes Visuais de Vinhedo; Projeção WALL — Fotohaus 2019 — Les Rencontres de la photographie, Arles, França; 25º Salão de Artes Plásticas da Praia Grande; Valongo Festival Internacional da Imagem, Santos- SP. Possui obras premiadas em acervos públicos tais como Funesc- Galeria Archidy Picado- João Pessoa, Prefeitura Municipal de Jundiaí, Prefeitura Municipal de Vinhedo e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Integrou entre os anos de 2020 – 2022 o grupo de mulheres GOMAGRUPA. Atualmente é representada pela galeria THE HOUSE OF ARTS no estado da Flórida- EUA.
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Desrespeito com o símbolo nacional! Não podemos permitir qualquer alteração de nosso símbolo, independente de ideologia política! A artista errou ao tentar provocar esse tipo de sentimento em seus espectadores. Lamentável!
Nada a ver utilizar símbolos nacionais em situações claramente depreciativas. Ela não é obrigada a viver no Brasil. Se não gosto que se mude. Isso não é arte, é de mal gosto e ofensivo.