Um manto sagrado tupinambá que está em Copenhague desde pelo menos 1699 deverá ser devolvido pela Dinamarca ao Brasil. A peça, considerada extremamente rara, será doada para o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, pelo Museu Nacional da Dinamarca.
O manto é feito de penas vermelhas de guará costuradas em uma malha por meio de uma técnica ancestral do povo tupinambá. Mede cerca de 1,80 metro e tem 80 centímetros de largura.
Trata-se de um dos exemplares conhecidos que está mais bem preservado — existem apenas outros dez desse tipo no mundo, produzidos entre os séculos 16 e 17. Todos estão atualmente em museus localizados em países europeus.
Segundo o museu dinamarquês, o manto poderá ser transferido de volta para o Brasil a partir de maio de 2024. Mas o diretor do Museu Nacional Alexander Kellner disse que gostaria — e está trabalhando para — um retorno antes disso.
A doação da peça pela instituição dinamarquesa só foi possível graças ao envolvimento do embaixador brasileiro na Dinamarca, Rodrigo de Azeredo Santos, do Museu Nacional e da comunidade tupinambá da Serra do Padeiro, localizada na ainda não demarcada Terra Indígena Tupinambá Olivença (Bahia).
“A gente acredita que seja um ancestral. Não se trata de uma obra de arte, de um mero objeto”, disse em entrevista, Glicéria Tupinambá. Artista, Glicéria está completando sua formação em antropologia no Museu Nacional e vem realizando um trabalho de encontro e pesquisa dos mantos e outros artefatos de seus ancestrais junto às instituições europeias.
Paleontólogo, o diretor do Museu Nacional, Alexander Kellner, afirma que desconhece uma peça que esteja fora do Brasil mais importante do que o manto sagrado Tupinambá. “Não tem mineral, não tem fóssil, não tem artefato que consiga ser mais importante que esse manto. Ele representa as primeiras populações brasileiras, é um artefato de uma das primeiras populações brasileiras. E, diferentemente por exemplo das múmias dos egípcios, que são muitas, os mantos são poucos”, afirma Kellner.
Os Tupinambá foram um dos primeiros povos indígenas a ter contato com os europeus, após o início da invasão do território pelos portugueses em 1500. Eles habitavam várias aldeias ao longo de uma larga faixa do litoral atlântico e enfrentaram guerras de extermínio, tomada do território, escravização, conversão religiosa e a imposição da língua portuguesa. Mesmo assim, resistiram e, ainda hoje, lutam para manter sua identidade.
Registros europeus do século 16 e 17 mostram que os mantos eram usados pelos Tupinambá em importantes rituais. Muitos foram enviados à Europa por missionários jesuítas, outros foram roubados como espólio de guerra ou trocados num comércio desigual que favorecia os colonizadores.
Tratados como itens de valor em coleções reais, algumas peças chegaram a ser usados por nobres europeus. Uma grafia de 1599 mostra um integrante da corte de um duque alemão vestido com um manto vermelho numa procissão intitulada “Rainha da América”. Outro aparece vestindo a princesa Sophie von Hannover, filha de um rei da Boêmia, em um retrato pintado à óleo em 1644.
“Eu vejo a nossa cultura como um pote que foi quebrado, espalhando vários caquinhos, vários fragmentos por todo o canto. Agora é o momento de a gente recolher esses fragmentos e recompor esse pote”, afirma Glicéria Tupinambá. Para ela, encontrar os mantos e outros artefatos é uma oportunidade para que a cultura tupinambá seja vista em seu todo — e não apenas em partes.
“A doação do manto Tupinambá configura algo radicalmente novo e que merece ser celebrado: é a primeira peça de incomensurável valor simbólico e artístico, um ícone da história do Brasil e de sua Antropologia, que regressa para o país e para a guarda das instituições nacionais”, afirma, em nota, o Museu Nacional.
“Estamos muito honrados de poder contar essa preciosidade no nosso acervo. Temos compreensão da responsabilidade que temos não só de valorizar, mas de cuidar muito bem desse material, ainda mais depois da tragédia que nos aconteceu”, diz o diretor da instituição. “Por isso, apelamos ao Ministério da Educação para que haja uma determinação específica no orçamento da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) para manutenção do Museu”.
Para o cacique Babau Tupinambá, de Olivença, o retorno do manto é histórico e pode fazer o Brasil repensar sua relação com os povos indígenas. “Enquanto na Europa peças milenares são armazenadas, no Brasil destroem tudo, nossos sítios arqueológicos, e ainda querem criar um marco temporal para que a gente não possa acessar nossos direitos, especialmente nós indígenas do Nordeste”, disse ele em entrevista.
O marco temporal está em discussão no Congresso Nacional e já foi aprovado em um projeto de lei pela Câmara dos Deputados. Ele estabelece que territórios só podem ser demarcados caso seja comprovado que já eram ocupados por indígenas na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.
Segundo a Constituição, os indígenas possuem direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam e cabe à União demarcá-las. Não há, no texto constitucional, nenhuma exigência temporal de comprovação de ocupação.
Para Letícia Haertel, especialista em direito internacional do patrimônio cultural, o retorno de um dos mantos tupinambás se insere em um contexto maior de devolução e restituição de itens históricos de importância etnográfica, arqueológica e paleontológica.
“É imprescindível que autoridades e instituições públicas inaugurem canais de diálogo para receber este tipo de demanda e consolidem procedimentos para levá-los à esfera internacional”, disse ela.
Haertel faz parte de uma rede interdisciplinar de especialistas que apresentou uma proposta pela “conservação, proteção e restituição do patrimônio cultural brasileiro” no portal Brasil Participativo, plataforma do governo federal para a elaboração do Plano Plurianual 2024-2027.
Recentemente, a Alemanha devolveu ao Brasil um fóssil de dinossauro que havia sido retirado ilegalmente do Ceará. A peça é considerada um holótipo, ou seja, tem importância ímpar para a paleontologia brasileira por servir de base para toda a descrição e identificação da espécie do dinossauro Ubirajara jubatus, que viveu há cerca de 110 milhões de anos na região do Cariri.
Poucas semanas depois da confirmação do retorno do fóssil, a Funai anunciou a devolução de 611 artefatos indígenas que estavam irregularmente no Museu de Lille, na França. As peças deveriam ter sido devolvidas ao Museu do Índio em 2009, o que não ocorreu. Agora, devem voltar a ser expostas pelo museu quando chegarem ao Brasil.
Para o Museu Nacional, o retorno do manto tupinambá é parte de um grande trabalho de recomposição da coleção etnográfica, depois do incêndio que atingiu o prédio em 2018.
Com curadoria de João Pacheco de Oliveira, a recomposição do acervo vem sendo realizada com participação ativa de povos indígenas e comunidades quilombolas.
“Nós vamos trabalhar com os Tupinambá para que eles nos ensinem como devemos tratar e exibir essa peça tão importante”, diz Kellner.
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