Arte no Mundo

O grafite pelos olhos de Hobsbawm e Bauman

Shamsia Hassani – créditos @shamsiahassani

De que maneira você olha um Grafite nos muros de sua cidade?

Em algum momento já passou por sua cabeça, a ideia de observar de forma analítica os impactos que  intervenções urbanas como o Grafite trazem ao nosso meio social? Você já pensou que, saltar um olhar analítico sobre estas manifestações pode te ajudar a entender qual comunicação visual e figuras de linguagens estão ali  presentes? E acima de tudo, entender a principal intenção do artista: a mensagem da arte?

A importância de estudarmos a linguagem que é expressa pelo Grafite, nos dias de hoje, se dá pela constante  manifestação popular que cresce nas grandes cidades e metrópoles. E saber compreender essa linguagem visual, é aprender a conhecer parte do nosso cotidiano e das questões sociais que nos cercam.

Poderíamos nos apoiar sobre diversos conceitos que circundam o cenário que configura a nossa Identidade e Cultura, e que poderiam nos auxiliar a aprofundar um pouco mais neste exercício interpretativo, que proponho aqui, da manifestação e significado do Grafite nas grandes cidades. Por exemplo: Cultura através do tempo; Teorias sociais sobre cultura; Cultura como conceito antropológico; Questão sobre diversidade cultural, assim como teorias que explicam o Evolucionismo, o Funcionalismo, o Culturalismo, a Difusão cultural, o Estruturalismo, e a Teoria interpretativa da cultura.

Ufa! Muitas  coisas não? Mas fiquem tranquilos, vou ajudá-los a entender melhor tudo isso. Porém? antes de tudo, com a finalidade de quebrar qualquer ideia pré-concebida que possa existir ainda a respeito deste tipo de arte, preciso explicar algo muito importante sobre o Gratife.

Considerado um tipo de arte que existe nas cidades, esta manifestação artística tem sua origem lá na antiguidade. Há quem pense que é apenas uma “pichação evoluída”, e há quem o considere como Arte Urbana. A palavra Grafite tem origem na  Itália e significa “escrita feita com carvão”. Os antigos romanos escreviam assim com carvão, suas manifestações de protesto, ou de qualquer outro cunho, nas paredes das construções. Alguns desses grafites ainda podem ser vistos em sítios arqueológicos espalhados pela Itália.

Criticados pela elite romana e vistos como a principal forma de expressão da plebe, os grafites e a pichações eram uma marca das grandes cidades do Império – Foto: Valdiney Pimenta

Esta semana o Arteref descobriu uma jovem iraniana, de família afegã chamada Shamsia Hassani. Hassani é uma Street Art e Digital Graffiti, que hoje atua como professora de artes plásticas e professora associada de escultura na Universidade de Cabul. Ela popularizou o Street Art nas ruas de Cabul, e seus trabalhos nos faz ir atrás de interpretações mais profundas sobre o Grafite, mas primeiro vamos conhecer um pouco sobre ela.

Hassani nasceu em 1988 em Teerã, no Irã, onde seus pais haviam migrado temporariamente de seu Kandahar nativo, no Afeganistão durante os anos de guerra. Hassani mostrava interesse em pintar desde muito pequena, no entanto não era permitido ensinar  artes para estudantes do Afeganistão. Bom, é isto mesmo que vocês leram… e estamos falando de um período no início dos anos 90, onde o mundo já vivia a quarta fase da Globalização, ou seja, o Muro de Berlim já estava no chão, a URSS não existia mais assim como a Guerra Fria, estávamos todos sob uma Nova Ordem Mundial, no entanto este desenvolvimento não acontecia de forma uniforme em todos os países.

Em 2005, estudou Arte tradicional na Universidade de Cabul, e mais tarde, ela se juntou à Universidade de Cabul como palestrante e depois como professora associada de escultura. Ao se inserir num coletivo de arte contemporânea começa a usar o colorido dos grafites para cobrir as lembranças negativas da guerra na mente da população local.

Para Hassani “a imagem tem mais efeito do que as palavras, e é uma maneira amigável de lutar“. Desta forma ela também usa sua arte para lutar pelos direitos das mulheres, lembrando as pessoas das tragédia enfrentadas pelas mulheres no Afeganistão.

Shamsia Hassani – créditos @shamsiahassani

Hassani aprendeu a arte do grafite em uma oficina em Cabul em dezembro de 2010 hospedada por Chu, um artista de grafite do Reino Unido. Após o workshop, começou a praticar Street Art nas paredes de casas nas ruas de Cabul.

Hassani declarou em uma entrevista à Art Radar Journal:

Eu quero dar cor às más lembranças da guerra, e se eu corro sobre essas más lembranças, então eu apago a guerra das mentes das pessoas. Quero fazer o Afeganistão famoso por sua arte, não por sua guerra”.

Hassani retrata imagens estilizadas e monumentais de mulheres que usam burcas. De acordo com a artista:

eu quero mostrar que as mulheres voltaram para a sociedade afegã com uma forma nova e mais forte. É uma mulher nova. Uma mulher cheia de energia, que quer começar de novo“.

Série Dreaming Graffitti

Em uma entrevista, Hassani explicou:

Eu acredito que há muitos que se esqueceram de todas as mulheres que enfrentaram  tragédias no Afeganistão, por isso uso minhas pinturas como um meio para lembrar as pessoas. Quero destacar o assunto na sociedade, com pinturas registrando  mulheres com burcas em todos os lugares. E tento mostrar-lhes maiores do que elas são na realidade, e nas formas modernas, em forma de felicidade, movimento, talvez mais forte. Tento fazer as pessoas olharem para elas de maneira diferente. “.

extraída de @shamsiahassani

Como artista de rua, Hassani é muitas vezes assediado:

É muito perigoso para uma menina pintar nas ruas em Cabul“, diz ela, “às vezes as pessoas vêm e me assediam, eles não pensam que é permitido no Islã  uma mulher  ficar na rua  fazendo grafite.”

Ela exibiu sua rua e arte digital em vários países, incluindo Índia, Irã, Alemanha, Itália e em missões diplomáticas em Cabul. Em 2014, Hassani foi nomeada uma das 100 melhores pensadoras globais da Foreign Policy. Hassani pinta graffiti em Cabul para trazer consciência aos anos de guerra.

Agora vocês devem estar se questionando, por que eu expus tanto da vida e da trajetória de Shamsia Hassani? E o que tudo isso tem a ver com arte de rua que ela produz?

TUDO!

A trajetória de vida, a construção pessoal, educacional e profissional de Hassani, assim como de todas as outras pessoas que fazem parte do  cenário no qual  está inserida  tem conexão direta como o exercício que sugeri que fizessem no início desta matéria, que era nada mais do que: aprender a observar de forma analítica os impactos e significados que  intervenções urbanas como o Grafite trazem ao nosso meio social.

É inegável que o trabalho de de Shamsia Hassani está enraizado dentros de todos estes conceitos seguintes:

  1. DIVERSIDADE CULTURAL, DIFUSÃO CULTURAL, ETNOGRAFIA COMO FORMA DE ENTENDER A CULTURA DE UM POVO
Série Dreaming Graffitti

2) IDENTIDADE SOCIAL, ACULTURAÇÃO, SOCIALIZAÇÃO

créditos @shamsiahassani

3) CULTURA E PERSONALIDADE, SOCIALIZAÇÃO E CULTURA, IDENTIDADE NA GLOBALIZAÇÃO.

Prestige, New York – USA

A identidade e a cultura da artista refletem diretamente na arte que ela faz.

O uso da comunicação visual nos muros da cidade de Cabul, e nos destroços dos prédio que foram atingidos por bombardeios traz a noção do  público que é atingido diretamente sua sua mensagem.

Os traços dos desenhos nos Grafites e a linguagem visual, permitem identificar um pouco da pessoa que faz estas artes. Hassani usa traços leves e sutis, mas ao mesmo tempo a dimensão de seus desenhos que retratam mulheres  dão à elas uma grande imponência e poder de que elas precisam, para intervir no espaço que se manifestam.

Dois autores que contribuiriam muito com suas teorias e concepções foram Eric Hobsbawm e Zygmunt Bauman, um historiador e um sociólogo, os quais nos permitem realizar uma reflexão  mais estruturada de todos estes elementos que podemos extrair do trabalho de Hassani.

Hobsbawn:

Há um processo de desenraizamento, uma quebra de fronteiras e paradigmas, quando a arte urbana, o Grafite em si, ganha a cena dentro das grandes metrópoles. Antes tão marginalizado, hoje adquire seu espaço, a partir do reconhecimento da arte urbana por estudiosos de artes, história, antropologia e sociologia.

O uso das cores, na comunicação visual nas ruas, no meio público também rompe paradigmas do conceito de arte erudita apreciada somente em museus e galerias de artes consagradas.

série sketches – kabul, afghanistan

A identidade cultural da modernidade é líquida, deixa de ser homogênea e  concisa. A identidade na modernidade se tornou mais rápida, devido a fragmentação de tempo e espaço.

Os grafiteiros em si, identificam-se com pontos de comportamentos e com os meios que se utilizam para a comunicação: a arte. E esse elemento os identificam e os representam e fazem com que tenham essa noção de pertencimento à um grupo também.

Todas essas mudanças, vindas da ação da própria globalização iniciam-se  desde o século XVII e nos influi  até os dias atuais,  o que coincide com o fenômeno da  migração também. Tudo isso esta associado à comunicação.

As informações podem viajar, assim como Hobsbawn mesmo propõe, uma pessoa pode chegar em um lugar em cerca de segundos devido à modernização dos meios de comunicação, o que é possível para a arte urbana também, um exemplo vivo disto é poder acompanhar diariamente as novas arte de Shamsia Hassani que vem estampando os muros de Cabul,e de outros países também,  através da tela de um pequeno celular. Se ela postar agora um novo registro de uma nova arte em qualquer parte do mundo em seu instagram, nós teremos o registo da data, e a estimativa do horário em que  isto foi feito.

Zygmunt Bauman:

Ele faz uma análise sobre os guetos, e sobre as pessoas que se sentem à margem da sociedade, explicando como elas se agrupam e porque se agrupam. Esse efeito se dá em razão de se sentirem à parte por critérios de exclusão da sociedade capitalista como pobreza e expropriação.

No Brasil, por exemplo, o grafite surge em comunidades pobres  como os guetos, citados por Bauman, por ter um caráter crítico e de expressão social de protesto. As pessoas utilizavam o grafite como forma de expressar seu descontentamento com a posição marginal que se encontravam na sociedade. Se não os permitiam o poder de voz para o manifestar, eles optaram pela arte urbana.

Como já relatado em entrevistas, Hassani traz em sua arte o ideal de a tornar um instrumento que transmuta uma realidade cercada de traumas e transtornos bélicos, assim como, dar voz a uma categoria socialmente impotente nos aspectos políticos, sociais e culturais, que é a figura da mulher. O intuito de sua arte é acima de tudo, estimular  uma reflexão crítica sobre os impactos que a mesma traz ao ambiente em que esta inserida.


FONTES DE CONSULTA

https://atrasdosaciurbano.wordpress.com/

http://www.kabulartproject.com/artists/shamsia-hassani/

www.studiochu.tv

http://www2.uol.com.br/guiadolitoral/materias/grafite_uma_arte_milenar_que_teve_inicio_na_roma_antiga_veja_fotos-3988-2017.shtml

http://shamsiahassani.com/

BAUMAN, Zygmunt, Identidade. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 2005 disponível em http://identidadesculturas.files.wordpress.com/2011/05/bauman-zygmunt-identidade.pdf

COLOMBO, Sylvia, “Superioridade é fenômeno temporário” diz Eric Hobsbawn. Folha de S. Paulo. 2004. Disponível em https://docs.google.com/file/d/0BzVyWDJ5mZBRbG91N05yc25yd0E/edit

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Paula

Amante das belezas da vida, Paula sempre está por dentro do que está acontecendo no cenário cultural na cidade de São Paulo. Bacharel em Ciências e Humanidades e Técnica em Gestão Pública com foco em políticas culturais, Paula vem colecionando uma bagagem de conhecimentos nas áreas de Gestão Cultural e Jornalismo Cultural. Hoje Trabalha no programa de incentivo cultural Pro-MAC da Prefeitura de São Paulo

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