A TV Record, que dedica boa parte de sua produção audiovisual a novelas bíblicas, foi multada pelo o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) por depredação de patrimônio histórico. O caso aconteceu durante as gravações da novela “Rei Davi”, realizadas em 2011. As filmagens da minissérie aconteceram no interior do estado de Minas Gerais, no Rio Grande do Norte, em São Paulo e em desertos do Canadá.
A arte pré-histórica preservada durante séculos em uma parede na cidade de Diamantina, em Minas Gerais, já não existe mais. Foi apagada —ou melhor, pintada de branco. Quase dez anos depois da gravação de uma das minisséries que se tornaram um filão de sucesso na teledramaturgia e o segredo da emissora para alavancar a audiência, a emissora foi condenada em segunda instância a pagar dois milhões de reais por ter coberto com tinta a parede com arte rupestre.
O cenário natural da Serra do Pasmar, no Alto Jequitinhonha, à primeira vista, parecia ideal para as gravações. A rede de televisão investiu cerca de 30 milhões de reais na minissérie, inclusive com gravações nas áreas desérticas do Canadá. No Brasil, no entanto, a equipe optou por modificar a paisagem. Um relatório de análises químicas no sítio arqueológico mostrou a presença de tinta branca vinílica na área de patrimônio cultural utilizada para gravação.
Na sua defesa apresentada em Juízo, a Record nega que seja possível relacionar a tinta que existe no local à sua presença, uma vez que a prova pericial foi realizada dezenove meses após o encerramento das gravações de Rei Davi. Além disso, a empresa de comunicação afirmou que a gravação da minissérie gerou benefícios ao município de Diamantina, tais como o acréscimo no turismo e projeção nacional e que, por isso, não deveria pagar indenização por danos sociais. Destacou ainda que não havia registro de que o local utilizado para as gravações era sítio arqueológico ou área de preservação.
O centro histórico de Diamantina, uma cidade colonial encravada em meio a montanhas, é reconhecido pela Unesco como Patrimônio da Humanidade por manter preservada a memória dos garimpeiros de diamantes do século XVIII que exploraram a região. Mas pesquisas realizadas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) apontam que Diamantina e os municípios de entorno têm uma história muito mais antiga a ser explorada.
A Serra do Pasmar foi considerada de alto potencial arqueológico segundo trabalhos do professor Andrei Isnardis, da UFMG, realizados a partir de 2009. Escavações encontraram pinturas rupestres e vestígios líticos (local de retirada de ferramentas de pedras) dos grupos pré-históricos que habitaram a região há até 11.000 anos. Indícios mostram que a área pintada pela Record tem registros arqueológicos de até 4.000 anos, antes do início da invasão colonial. “Em toda região, temos cerca de 220 sítios arqueológicos registrados”, afirma o pesquisador.
Isnardis explica que comparada com outras áreas de Minas Gerais, a região de Diamantina é bastante preservada. “A população local intervém menos. Muitos sempre viveram como coletores e utilizam os abrigos rochosos [onde estão localizadas as pinturas rupestres], mas não são frequentes rabiscos”, afirma. Quando muito, são encontradas fuligens de fogueiras realizadas nas proximidades das pinturas. “O caso da Record é diferente, fruto de um profundo desconhecimento do valor das pinturas rupestres e do patrimônio arqueológico”, afirma.
Esse desconhecimento se reflete, inclusive, no impasse entre os desembargadores de segunda instância quanto ao preço a ser pago por quem destrói um patrimônio arqueológico. Na decisão em primeira instância, o juiz condenou a Record à recuperação dos danos ambientais, ao custeio de prova pericial realizada, ao pagamento de indenização a título de compensação ambiental no valor de um milhão de reais e à indenização por danos morais coletivos também no valor de um milhão de reais, pelos danos ao patrimônio cultural dos municípios de Gouveia e Diamantina. Também condenou a proprietária da área, por permitir o acesso ao local sem assegurar a reparação da área degradada.
Se é possível colocar um preço no que foi perdido? “É um exercício que não sou capaz de fazer… porque não tem preço. Estamos falando de outro tipo de valor. Um valor histórico, cultural, antropológico, humano, de pessoas que tinham um outro modo de vida. A pintura rupestre é o vestígio mais visível de outros povos. É inestimável”, lamenta Isnardis.
Com informações de El País.
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