Entrevista

João Miguel Barros: Fotógrafo para contar histórias


João Miguel Barros (JMB), 61 anos, é conhecido por alguns como o editor da revista literária Sema, que marcou o panorama das letras portuguesas entre 1979 e 1982. Por ali passaram dezenas de escritores, críticos e pensadores, alguns dos mais importantes da época. Os quatro volumes da Sema estão disponíveis em www.revistasema.pt, em formato digital. Mas JMB é homem de muitos projetos. 

Apaixonado pela fotografia acaba de lançar uma nova revista, a Zine Photo, editada em papel, mas também com um site (www.zine.photo). O primeiro número, com uma qualidade gráfica e fotográfica excelente, reflete em parte o trabalho que desenvolveu no Gana, país para onde partiu atrás de um pugilista que viu combater em Macau. Deveria ter chegado às bancas em março, mas a pandemia forçou o adiamento da edição. Acaba por sair agora, em simultâneo com o volume 2, com o seu olhar em concreto sobre Jamestown, um bairro da cidade de Acra.

Simultaneamente, tem sido curador de exposições, como aconteceu recentemente com a do do artista austríaco Andreas H. Bitesnich, sobre a cidade de Lisboa, patente no Museu Berardo (CCB).


Jornal de Letras, Artes e Ideias: Qual é o conceito e objetivo da Zine enquanto publicação e enquanto site?

Preferencialmente com uma dimensão humana. Histórias a preto e branco, por razões estéticas e opção artística. A Zine.Photo é um meio de as divulgar. E o site a forma de promover a publicação.

Poderá haver algo de pretensioso na escolha do nome “Zine” quando é sabido que o conceito das zines é o da informalidade e de alguma simplicidade na forma de produção. Ao contrário, esta Zine.Photo prima pela qualidade de impressão, em offset, e de acabamentos, e é editada em edição limitada, em grande formato, de modo a torná-la um objeto com valor acrescido para ser colecionado. Mas estou consciente que o seu valor maior terá de residir na qualidade dos meus trabalhos. Cada número tem uma história com alguma autonomia. 

No horizonte tenho a ambição de publicar uma revista com curadoria minha, outra das minhas atividades na área da fotografia, incluindo apenas trabalhos de outros fotógrafos com os quais tenho identificação pessoal ou artística. Vamos ver o que sou capaz de fazer. 


Jornal de Letras, Artes e Ideias: Segundo percebi, partiu para o Gana atrás de um pugilista, numa espécie de loucura artística ou quixotesca… O que é que havia de tão especial naquela figura que o tenho impelido para a aventura’?

Provavelmente não havia nada de especial, para além da humildade e da dignidade como o Emmanuel Danso perdeu um combate importante realizado em Macau, em outubro de 2017, contra um pugilista chinês. 

Ainda pensei fazer esse trabalho com o pugilista chinês, mas achei a ideia demasiado óbvia. A série de trabalhos que fiz no Gana acabaram por extravasar o Danso, que é o centro de uma história, ainda não publicada, de abnegação, trabalho e seriedade, e que envolve ainda outros jovens pugilistas que correm atrás do sonho de virem a ser reconhecidos como campeões. 


Jornal de Letras, Artes e Ideias: Interessa-se muito pelo boxe?

Não gosto especialmente, nem sou adepto. Mas o boxe tem um potencial imagético fantástico, em especial quando estão no ringue pugilistas de especial corpulência e densidade, como é o caso do Danso. O boxe permite obter imagens incríveis e é essa dimensão e potencialidade que me seduz, se bem que não seja fácil traduzir depois a dinâmica do combate em imagens de grande expressão artística. 

Em Acra tive oportunidade de começar a desenvolver outros trabalhos que originaram um projeto mais vasto a que chamei, genericamente, Ghana Stories. Um deles é especialmente marcante para mim: a vivência dentro de uma escola existente na zona velha da cidade, que é o tema do primeiro número da Zine.Photo. Essa escola é, aliás, uma razão que me levará a Acra mais vezes, de modo a tentar cumprir o propósito que assumi de ajudar a reconstruir a velha escola e a dar melhores condições de ensino às crianças que a frequentam. Devo-lhes isso!


Jornal de Letras, Artes e Ideias: Em tempos de audiovisuais, com a fotografia digital e proliferação de smartphone, como é que um fotógrafo faz valer o seu olhar? 

A massificação da fotografia alterou completamente as regras do jogo. É um facto. E os meios técnicos desenvolveram-se tanto que as câmaras fotográficas mais sofisticadas perderam qualquer das vantagens que pudessem ter, salvo no caso de trabalhos profissionais. Tem razão na pergunta: é o olhar que conta, e é através do olhar que se pode fazer a diferença. 

Mas também no modo como esse olhar é mostrado. No meu caso, tenho duas preocupações. Uma, a de procurar contar histórias, preferencialmente humanas, que possam ser significativas, sem me preocupar com questões técnicas ou regras rígidas, como as do enquadramento, nitidez e outras equivalentes. A fotografia deve ser sempre um exercício de liberdade tal como o nosso olhar que, quando vê, não tem outro limite que não seja o da condição humana. E, depois, tento criar uma identidade no modo de as mostrar, sempre a preto e branco, e apostando na densidade e na pureza desses pretos e brancos, reduzindo intencionalmente a gama intermédia de cinzentos. 

 A fotografia deve ser sempre um exercício de liberdade tal como o nosso olhar que, quando vê, não tem outro limite que não seja o da condição humana.

Manuel Halpern

Jornal de Letras, Artes e Ideias: O que leva um bem sucedido advogado a ter esta ‘segunda vida’? O que procura na fotografia (e nas artes e letras) que não encontramos noutros lugares?

Ao fim de mais de 30 anos na profissão, com alguns intervalos para o serviço público na área da justiça, a advocacia começa a ser uma forma de servidão, pesada de cumprir plenamente. Mas a advocacia é a minha profissão, e não posso deixar de a exercer, sob pena de não haver “zines” nem projetos de fotografia… Ao longo de toda a minha vida, desde o tempo da faculdade, sempre me envolvi em atividades culturais como forma de compensar a aridez das leis. Tem sido uma condição de sobrevivência. Essa “segunda via” foi importante em alturas que tive alguma dificuldade em perceber o sistema e de lidar com injustiças clamorosas.


Jornal de Letras, Artes e Ideias: O sistema de justiça nem sempre é capaz de garantir a justiça...

Queremos todos acreditar que é, mas não é, por mais apurado que ele seja. 
E os advogados, muitas vezes, acabam enrolados nessa máquina trituradora, quer como autores quer como vítimas indiretas de um sistema que nem sempre atende às questões materiais e se contenta com o formalismo dos códigos.

Ao contrário, a fotografia, como outras formas de manifestações artísticas, é um exercício de pura liberdade e de independência. A única injustiça de que nos poderemos queixar na prática fotográfica é a de não sermos suficientemente capazes de mostrar algo que não seja banal. Mas isso depende apenas de nós próprios. 


Jornal de Letras, Artes e Ideias: Macau é um posto privilegiado para ver o mundo? O que a longa experiência asiática traz ao seu olhar?

Todos os lugares são postos privilegiados se conseguirmos olhar à nossa volta. Mas admito que de tanto olhar os mesmos lugares se perca um pouco o discernimento sobre o que se vê. 

Estou a impor a mim próprio, aliás, um desafio novo, que é o de fazer, finalmente, um projeto fotográfico sobre Macau e a sua gente, para uma exposição pensada para o ano que vem, mas tentando fugir aos clichés das fotografias dos turistas e das banalizações das redes sociais.

Viver em Macau há mais de 30 anos proporcionou-me a possibilidade de incontáveis viagens. E são essas viagens e o contacto com outras pessoas, culturas e modos de viver, que podem dar uma enorme riqueza à vida. Torna-nos mais sensíveis à diferença. E é pela diferença que podemos ser reconhecidos. 


Veja as fotografias de João Miguel de Barros aqui


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Equipe Editorial

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