MASP — Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand apresenta, de 14 de dezembro de 2022 a 26 de fevereiro de 2023, a mostra individual Cinthia Marcelle: por via das dúvidas, que ocupa o espaço expositivo do 2º subsolo do museu. Com curadoria de Isabella Rjeille, a exposição é a primeira panorâmica dedicada à obra da artista no Brasil.
O conjunto de obras selecionadas cobre quase duas décadas da produção da artista, considerada uma figura central no cenário da arte contemporânea brasileira. A mostra também conta com trabalhos produzidos em parceria com o cineasta Tiago Mata Machado e o artista sul-africano Jean Meeran, importantes colaboradores de Marcelle.
Por meio de instalações, fotografias, vídeos, pinturas, colagens e desenhos que fazem uso de elementos do cotidiano, Cinthia Marcelle (1974 – Belo Horizonte, MG) estuda a maneira como os objetos, as ideias e os conceitos são ordenados no mundo, bem como as estruturas de poder e as hierarquias que sustentam esses sistemas de organização – sejam eles políticos, sociais ou culturais. Ora por meio de instalações de grande escala ou ações orquestradas que envolvem diversos colaboradores (como telhadistas, performers, trabalhadores da limpeza ou malabaristas), Marcelle cria situações e intervenções que questionam a ordem das coisas e nos convidam a imaginar outras formas de organização coletiva.
A exposição Cinthia Marcelle: por via das dúvidas traz 49 trabalhos de diferentes momentos da trajetória da artista, de 1998 até os dias atuais, sendo 10 deles concebidos especialmente para a exposição e em diálogo com o contexto em que se inserem, seja o eixo temático anual ou a arquitetura do próprio museu. “As obras da artista funcionam de modo relacional umas com as outras e com o espaço em que estão inseridas, como numa constelação na qual o sentido é criado, transformado e friccionado pela conjunção desses fatores. Dessa maneira, a mostra não busca encaixar ou categorizar a produção de Marcelle dentro de uma lógica que lhe é alheia, mas seguir o raciocínio da artista”, pontua a curadora Isabella Rjeille.
O título da exposição – Por via das dúvidas – se refere a um trabalho da artista que consiste em desenhar um muro de tijolos com um rolo de fita-crepe e uma folha de papel. Esse trabalho estabelece relação com outro, também apresentado na exposição, intitulado Explicação (2014). Em ambos, percebe-se o gesto simples da artista de interromper o comprimento da fita com um corte manual e cuidadosamente remontá-la no formato de um muro sobre uma folha. O que os distingue é a representação do muro: enquanto Explicação designa um muro intacto, Por via das dúvidas (2014) o representa em ruínas.
As duas obras abrigam um microcosmo da produção de Marcelle por reunirem três aspectos nela recorrentes – os materiais, o tempo e a cor – em torno de dois assuntos principais: a educação e o trabalho. As figuras do estudante e do trabalhador aparecem com frequência em suas obras, como protagonistas de ações e performances que partem de seus próprios ofícios. Eventos como confrontos, revoltas e levantes aparecem no trabalho da artista por sua capacidade de desestabilizar e reorganizar as estruturas nas quais se inserem. Materiais provenientes de ambientes escolares ou da construção civil também aparecem em seus trabalhos, aludindo à força de transformação social que existe nesses contextos.
Em R=0 (Homenagem aos secundaristas) (2022), um desdobramento do trabalho R=0 (homenagem a M.A.) (2009), realizado especialmente para esta exposição, fica evidente o primeiro aspecto: a importância dos materiais. Nela, a artista incorporou uma cadeira escolar usada pelos estudantes secundaristas durante as ocupações das escolas públicas em 2016, contra as medidas governamentais que afetariam negativamente a educação pública brasileira. O trabalho consiste em equilibrar este mobiliário sobre um punhado de giz de lousa – técnica ensinada pelo professor Michael Asbury, que, quando era estudante, fazia o mesmo em sala de aula, na ausência do docente. O resultado é uma instalação que desafia a ordem das coisas para permanecer de pé.
Outro exemplo é a nova obra reconfigurada para o MASP a partir de Educação pela pedra (2016), inicialmente exibida em Projects 105: Cinthia Marcelle (2016-17), na Duplex Gallery do MoMA PS1, em Nova York. No MASP, blocos de concreto empilhados tem as frestas ocupadas por giz de lousa, posicionados cuidadosamente, formando uma estrutura que remete a um muro. Ao invés do rejunte aparente, que vaza por entre as frestas – algo recorrente nos edifícios de Lina Bo Bardi, arquiteta que projetou o MASP –, é o giz de lousa o material que vaza por entre esses espaços.
“Penso que alguns dos meus procedimentos de trabalho dialogam com as práticas de trabalho de Lina Bo Bardi, sobretudo no que se refere à abertura dos processos de criação/execução para a participação da equipe de trabalhadores. Especialistas são fundamentais para a construção de um projeto à cargo da sociedade e o envolvimento dessas pessoas é peça-chave quando se pretende alcançar uma proposta diversa e plural”, pontua Cinthia Marcelle.
O segundo aspecto, o tempo, um dos elementos que organiza nossas vidas, seja contabilizado na forma de calendários, relógios e agendas, ganha forma em na série Calendário (2018-20). Nela, o tempo é contado a partir do trabalho manual da artista e de seus colaboradores, com os materiais que compõem a obra: tecido, tinta, sarrafo e cadarço. “Calendário é uma série de pinturas que torna visível em seu produto final a relação entre tempo e trabalho mobilizados para a execução de cada peça”, explica Isabella Rjeille.
Já a cor, um elemento capaz de inscrever e apagar, tornar visível ou invisível determinados aspectos da realidade e carregado de significados históricos e sociais é, no trabalho de Marcelle, uma escolha estética, ética e política. Tal complexidade fica evidente na série de fotografias Capa morada (2003), realizada em parceria com o artista sul-africano Jean Meeran durante uma residência artística na Cidade do Cabo, na África do Sul. Dividida em quatro partes (tecidos, roupas, coisas e pessoas), essa série registra a artista em processo de se localizar em contexto alheio ao seu. No conjunto de fotografias, Marcelle tem seu corpo totalmente coberto por tecidos, misturando-se à paisagem ou perdendo-se em meio ao acúmulo de objetos em uma feira de rua.
“Passar um tempo na África do Sul acabou sendo, dentro da minha localidade, enquanto uma pessoa não branca, um movimento natural na minha trajetória artística. Ali, em um processo de deslocamento e reconhecimento, desenvolvi com Jean Meeran, a série Capa Morada, em que eu me misturava à cidade, me perdia e depois me achava no mundo sul-africano, ao mesmo tempo próximo e distante do meu”, reflete Marcelle. “Então, de certa forma, esse meu gradual processo de desvelamento e familiarização com a parte ‘mestiça’ da Cidade do Cabo, teve algo de um gesto naturalmente político para a época, mesmo porque essa mesma segregação acontecia e ainda acontece, de forma mais velada, em meu próprio país”, conclui.
Cinthia Marcelle: por via das dúvidas integra a programação bienal do MASP dedicada às Histórias brasileiras (2021-22), por ocasião do bicentenário da independência do Brasil, em 2022. Este ano, a programação também incluiu mostras de Alfredo Volpi, Abdias Nascimento, Luiz Zerbini, Joseca Yanomami, Madalena dos Santos Reinbolt (1919-1977) e Judith Lauand, além da coletiva Histórias brasileiras.
Cinthia Marcelle nasceu em 1974 em Belo Horizonte (MG), e vive e trabalha em São Paulo desde 2010 (SP). Graduou-se em Belas-Artes na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Entre suas exposições individuais recentes, destacam-se A Conjunction of Factors, no MACBA, em Barcelona (2022) A Morta, no Wattis Institute, em São Francisco, (2018); Family in Disorder: Truth or Dare, no Modern Art Oxford (2017); Project 105: Cinthia Marcelle, no MoMA PS1, em Nova York (2016) e Dust Never Sleeps, no Secession, em Viena (2014). Dentre as coletivas que participou recentemente, destacam-se A Clearing in the Forest, no Tate Modern, em Londres (2022); Língua Solta, no Museu da Língua Portuguesa, São Paulo (2021); Soft Power, no SFMoMA, em São Francisco (2019); Push the Limits, no Fondazione Merz, em Torino (2019); La Panacée, no MoCo, em Montpellier (2019); e Still Here, no MOAD – Museum of the African Diaspora, em São Francisco, (2019). Cinthia Marcelle foi a artista selecionada para ocupar o Pavilhão do Brasil na 57ª Bienal de Veneza (2017) com a instalação Chão de Caça, que recebeu Menção Especial do júri da mostra. Seu trabalho integra o acervo de diversas instituições nacionais e internacionais incluindo Instituto Inhotim (Brumadinho), Instituto Itaú Cultural (São Paulo), MAM (São Paulo), KADIST (São Francisco), MASP (São Paulo), Pinacoteca do Estado de São Paulo, MoMA (Nova York), Pinault Collection (Paris), The Royal Library of Denmark (Copenhague), SFMoMA (São Francisco), Tate Modern (Londres) e Vebhi Koç Foundation (Istambul).
A artista também realiza com frequência trabalhos em parceria com outros artistas e participação em projetos coletivos.
Na ocasião da mostra, será publicado o primeiro e mais extenso livro monográfico sobre a produção da artista. A publicação é ilustrada com imagens de trabalhos que abarcam toda a trajetória de Marcelle, além de ensaios inéditos de autoria de Ana Raylander Mártis dos Anjos, Eungie Joo, Isabella Rjeille e Leandro Muniz. A publicação tem apoio do Museum Marta Herford – instituição que abrigará uma panorâmica da artista em 2023 – organização editorial e curadoria de Isabella Rjeille e design assinado por Elisa von Randow.
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