A Galatea Salvador inaugura, no dia 4 de julho, sua segunda exposição: Bahia Afrofuturista: Bauer Sá e Gilberto Filho. A mostra conta com dois núcleos expositivos distintos: no primeiro, um conjunto de 30 fotografias de Bauer Sá, produzidas entre os anos 1990 e 2000, que exploram a ancestralidade afro-brasileira por meio de temáticas raciais e divindades africanas; no segundo, a primeira exposição individual de Gilberto Filho, apresentando cerca de 15 esculturas em madeira que datam desde 1992 até o presente e retratam cidades utópicas e modernas nascidas da imaginação do artista. Tanto Bauer Sá quanto Gilberto Filho fizeram parte da exposição Cais, que inaugurou a sede da Galatea em Salvador.
A abertura da exposição coincide com a semana de uma data significativa: a Independência da Bahia, comemorada em 2 de julho. O episódio histórico, curiosamente, se inicia em Cachoeira, cidade natal de Gilberto Filho e pioneira na luta pela independência, e termina em Salvador, capital baiana onde Bauer Sá nasceu e que se tornou símbolo de resistência da população negra.
O texto crítico é assinado pelo artista e curador Ayrson Heráclito, reconhecido por seu trabalho que aborda a cultura afro-brasileira e suas conexões históricas, e pelo escritor e historiador Beto Heráclito. Eles destacam que os trabalhos de Bauer e Gilberto, de naturezas distintas, dão a ver diferentes facetas do conceito de afrofuturismo: “A exposição Bahia Afrofuturista: Bauer Sá e Gilberto Filho, ao promover o diálogo entre dois artistas negros com poéticas distintas, busca apresentar diferentes abordagens dessa nova estética, comprometida com o ativismo negro. As linguagens eleitas pelos artistas — a fotografia e a escultura — servem como estratégia para experimentação de conceitos como a corporeidade e a espacialidade em perspectiva afirmativa e afrocentrada”.
Bauer Sá (1950) reforça a tradição dos negros baianos que se destacaram como fotógrafos ou fotojornalistas. O diferencial em sua obra é a inclusão de suas fotografias em um sofisticado circuito de instituições e coleções de artes visuais, que é predominantemente branco no Brasil. Explorando a as formas de representação do povo e do corpo negro, ele e Mário Cravo Neto, contemporâneos, integram uma geração que elevou a fotografia baiana ao status de arte, embora o racismo tenha interferido de maneiras diferentes na trajetória de cada um. Na nota biográfica que escreveu sobre o artista, Tomás Toledo, curador sócio-fundador da Galatea, comenta: “As fotografias de Bauer Sá são composições conceituais e poéticas que articulam em imagens a ancestralidade e a cultura afro-brasileira, com grande enfoque para as divindades africanas e para temas sociais incontornáveis entre as populações negras, como o racismo. São imagens meticulosamente construídas e moldadas por meio de cenas ensaiadas e dirigidas em que ora um homem, ora uma mulher, sempre negros, interagem com objetos e elementos da natureza, comunicando-se com o espectador por meio de olhares e poses dramatizadas pela luz e sombra da fotografia analógica branca e preta.”
Gilberto Filho (1953) iniciou sua carreira artística como aprendiz de marceneiro na oficina do pai em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, cidade histórica que foi sede da primeira aristocracia rural das Américas e um ponto de encontro de populações africanas escravizadas. Esta grande concentração de afrodescendentes fez da região uma referência importante na cultura afro-brasileira, abrigando inúmeros artistas negros que esculpem em madeira e são prestigiados por obras que retratam santos, deidades do candomblé e temas populares. Entretanto, Gilberto Filho se destaca por fugir dessas temáticas, desafiando a concepção tradicional de temporalidade e suspendendo a ideia linear do tempo com uma imaginação disruptiva que cria cidades futuristas. Ele redefine o futuro com uma modernidade ancestral, mesclando saberes e crenças do passado.
Na paisagem colonial de Cachoeira, Gilberto provoca um estranhamento poético ao esculpir megalópoles afrofuturistas em madeiras nobres e de demolição, construindo o futuro sobre as ruínas do passado em obras que lembram cidades de ficção científica. Na nota biográfica que escreveu sobre o artista, Alana Silveira, diretora da Galatea Salvador, comenta: “Gilberto afirma que sempre teve a ‘tendência para fazer arte’, que seu pensamento movia um desejo de criação de algo que não existia. “Na realidade é como se fosse um sonho, eu já tinha as ideias, mas, para transformar em arte, precisou muito tempo”, conta Gilberto. Inicialmente inspirado pela arquitetura histórica e religiosa de Cachoeira e São Félix, fez suas primeiras obras esculpindo casarios em madeira quando tinha por volta de 27 anos. A partir desses primeiros experimentos foi desenvolvendo sua técnica para conseguir executar o que via ao fechar os olhos. (…) A partir da década de 1990, a obra de Gilberto Filho recria a ideia de arranha-céus, complexos urbanos e cidades do futuro.”
(Salvador, 1950)
Por dez anos, Bauer Sá trabalhou como assistente do seu pai, o também fotógrafo Armando Sá, em Salvador. Frequentou o curso de Técnicas Avançadas de Laboratório e Conservação de Filmes e Papeis da Funarte do Rio de Janeiro (1983-1985). Trabalhou como fotógrafo e chefe do Setor Fotográfico do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia entre os anos de 1982 e 1992, tendo, durante esse período, participado de diversos projetos que marcaram a sua carreira. Ao longo da década de 1990, colaborou com a BBC de Londres; atuou na revista norte-americana Callaloo, organizada por professores negros da Universidade da Virgínia; e expôs em diversas cidades no Brasil e no exterior.
Entre as exposições que participou, destacam-se: 17º Salão Nacional de Arte Contemporânea de Belo Horizonte (1985, Belo Horizonte); Os Herdeiros da Noite: fragmentos do imaginário negro (Pinacoteca de São Paulo, São Paulo, 1994; Espaço Cultural 508 Sul, Brasília, 1995); A Hidden View: Images of Bahia, Brazil (Concourse Gallery – Barbican Centre, Londres, 1994); Novas Travessias: New Directions in Brazilian Photography (The Photographer’s Gallery, Londres, 1996); Brasil + 500 — Mostra do Redescobrimento. Negro de Corpo e Alma. (Fundação Bienal, São Paulo, 2000; Casa França-Brasil, Rio de Janeiro, 2000); Réplica e Rebeldia: Artistas de Angola, Brasil, Cabo Verde e Moçambique (Museu Nacional de Arte de Maputo, Maputo, Moçambique, 2006; Centro Cultural Português, Luanda, Angola, 2006; Museu de Arte Moderna da Bahia — MAM Bahia, Salvador, 2006; Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro — Mam Rio, Rio de Janeiro, 2006; Centro Cultural Banco do Brasil — CCBB Brasília, Brasília, 2007; Palácio Cultura Ildo Lobo, Praia, Cabo Verde, 2007); Coleção Pirelli/MASP de Fotografia – 18ª edição (Museu de Arte de São Paulo — MASP, São Paulo, 2010), Axé Bahia: The Power Of Art In An Afro-Brazilian Metropolis (The Fowler Museum, Los Angeles, USA, 2018), Histórias afro-atlânticas (Museu de Arte de São Paulo — MASP, São Paulo, 2018), entre outras. Sua obra faz parte de diversas coleções permanentes, tais como: Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira — MUNCAB, Salvador; Museu de Arte Moderna da Bahia — MAM Bahia, Salvador; Museu Afro Brasil, São Paul; Coleção Pireli/MASP, São Paulo; Museu da Fotografia, Fortaleza.
(Cachoeira, 1953)
Nascido na cidade de Cachoeira, no Recôncavo da Bahia, em 12 de novembro de 1953, Gilberto Dias Barbosa Filho é filho de Elza Oliveira Barbosa e Gilberto Dias Barbosa. A sua mãe trabalhava na fabricação de charutos, enquanto seu pai era marceneiro. Ele é casado com Zilma Nascimento Pessoa, professora; a filha do casal, Jamile Pessoa Barbosa, também é professora.
Nos anos 1960, Gilberto (pai) inaugurou uma marcenaria na cidade de São Félix, posteriormente, a transferiu para Cachoeira. Aí trabalham Gilberto Filho e seus irmãos. Além de carpintaria e marcenaria de esquadrias, a família se especializou em móveis rústicos. Gilberto Filho é quem, normalmente, faz o design dos móveis.
Gilberto Filho lembra que, aos 27 anos de idade, começou a fazer esculturas, usando madeira e prego, representando edifícios arquitetônicos, sobretudo prédios religiosos. Nos anos 1990, Gilberto Filho foi experimentando composições com caixas de fósforo, cubos e paralelepípedos de madeira, o que resultou em formas da arquitetura moderna, que chamam a atenção pelo caráter experimental. Foi na mesma década que ele começou a mostrar as suas esculturas em exposições de arte locais.
Gilberto comumente utiliza em suas esculturas madeiras como pau d’arco, sucupira, angelim e louro, que são cortadas, entalhadas e montadas, com o auxílio de formões, serrotes e martelos. Os blocos resultantes harmonizam formas, cores e tamanhos que chegam a 2,5 m de altura.
Para o escultor, “a madeira conduz o processo de criação, ela revela como a obra será realizada, é um gatilho para desenvolver a criatividade.” Ele faz questão de enfatizar o papel da imaginação na construção de sua arte: “Não faço cópias de prédios, mas utilizo a imaginação e a beleza da madeira para esculpir as minhas peças”. Diz também que seu processo é lento, dura meses até finalizar uma escultura (Entrevista, 9 mar. 2022).
Gilberto Filho compreende que a marcenaria abriu espaço para a sua prática artística (Entrevista, 9 mar. 2022). Ele traz uma contribuição significativa às artes visuais, por seu processo de ideação das estruturas e volumes a partir de seu olhar sobre o imaginário das grandes cidades, o que resulta em arte construtivista de qualidade. Assim, procede à metalinguagem, ao empregar a linguagem escultórica para evocar a estética futurista na arquitetura.
O escultor participou de várias mostras locais, algumas bienais do Recôncavo na cidade de São Félix, assim como das recentes coletivas Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro (Sesc Belenzinho, São Paulo, 2023; Sesc Quitandinha, Petrópolis, RJ, 2024) e Cais (Galatea, Salvador, 2024).
A Galatea é uma galeria que surge a partir das diferentes e complementares trajetórias e vivências de seus sócios-fundadores: Antonia Bergamin esteve à frente por quase uma década como sócia-diretora de uma galeria de grande porte em São Paulo; Conrado Mesquita é marchand e colecionador, especializado em descobrir grandes obras em lugares improváveis; e Tomás Toledo é curador e contribuiu ativamente para a histórica renovação institucional do MASP, de onde saiu em 2022 como curador-chefe.
Tendo a arte brasileira moderna e contemporânea como foco principal, a Galatea trabalha e comercializa tanto nomes já consagrados do cenário artístico nacional quanto novos talentos da arte contemporânea, além de promover o resgate de artistas históricos. Tal amplitude temporal reflete e articula os pilares conceituais do programa da galeria: ser um ponto de fomento e convergência entre culturas, temporalidades, estilos e gêneros distintos, gerando uma rica fricção entre o antigo e o novo, o canônico e o não-canônico, o erudito e o informal.
Além dessas conexões propostas, a galeria também aposta na relação entre artistas, colecionadores, instituições e galeristas. De um lado, o cuidado no processo de pesquisa, o respeito ao tempo criativo e o incentivo do desenvolvimento profissional do artista com acompanhamento curatorial. Do outro, a escuta e a transparência constante nas relações comerciais. Ao estreitar laços, com um olhar sensível ao que é importante para cada um, Galatea enaltece as relações que se criam em torno da arte — porque acredita que fazer isso também é enaltecer a arte em si.
Nesse sentido, partindo da ideia de relação é que surge o nome da galeria, tomado emprestado do mito grego de Pigmaleão e Galatea. Este mito narra a história do artista Pigmaleão, que ao esculpir em marfim Galatea, uma figura feminina, apaixona-se por sua própria obra e passa a adorá-la. A deusa Afrodite, comovida por tal devoção, transforma a estátua em uma mulher de carne e osso para que criador e criatura possam, enfim, viver uma relação verdadeira.
Exposição: Bahia Afrofuturista: Bauer Sá e Gilberto Filho
Local: Galatea Salvador
Endereço: R. Chile, 22 – Centro, Salvador – BA
Abertura: 4 de julho
Período expositivo: 4 de julho a 28 de setembro
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