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Ferreira Gullar e a Arte Contemporânea

Leia a entrevista feita pelo jornalista Ivan Cláudio com o crítico e curador de arte Ferreira Gullar publicada pela revista “Isto É”. Ferreira Gullar é amplamente conhecido no campo das artes e já publicou importantes textos sobre arte, principalmente sobre arte moderna e a vanguarda artística brasileira, porém tem uma forte posição quanto a produção de arte contemporânea. Vale a pena saber mais sobre o seu posicionamento nesta entrevista:

O senhor diz que a arte tem que emocionar, caso contrário não é ar­te. No entanto, hoje em dia as pes­soas teorizam tanto a arte…

Ferreira Gullar: existe uma tese da arte conceitual, da arte feita só por idéias. Isso não tem cabimento. Para refletir, preciso ler filosofia, não vou me ocupar do estilo de pintar do Cildo Meirelles para fazer isso. Ele é um excelente pintor, mas por que ele não pinta em vez de fazer o que está fazendo? Coloca escrito na obra “Urinóis – cocô artificial com planta natural”. É para pensarmos sobre isso? O que vamos pensar sobre cocôs e plantas artificiais? Isso é muito pobre. Se ele fizesse os guaches que fazia antes, se comunicaria e transmitiria coisas que as pessoas poderiam sentir por meio da arte. Estive agora em Paris e fui ao Museu de Arte Moderna. Só vale pelo acervo de obras realizadas até a dé­cada de 40. Depois disso, nada vale a pena. O museu está vazio, ninguém vai lá. Tinha até uma exposição da Yoko Ono, que só faz besteira também, mas mesmo assim estava vazio. Só está lá porque ficou famosa depois que casou (com o ex-beatle John Lennon). É inacreditável ver os diretores do museu convidando esse tipo de gente para expor. O resultado disso é que ninguém vai lá ver a exposição. Já o Louvre recebe multidões de pessoas, assim como o Museu Picasso.

E quanto aos críticos que escrevem páginas e páginas sobre essa arte conceitual? As vezes, ao terminarmos de ler uma dessas críticas, nos sentimos péssimos, pois não entendemos nada.

Ferreira Gullar: Nem eles entendem, porque não há o que dizer sobre isso. A Jac Lemer fez uma exposição no Rio de Janeiro com umas maletas de viagem e teve um crítico que citou Heiddeger e Marx para apresentar a exposição. Não tem nada a ver com nada. É um texto indecifrável que, na verdade, não significa nada. O crítico não tem o que dizer e fica inventando. Vai di­zer o quê? Que as maletas estão bem arrumadas no espaço? Realmente não há o que dizer, pois ela nem fez as maletas, as comprou prontas. A rigor, não pode haver crítica sobre essa besteirada. O difícil é explicar como isso se mantém há décadas. A Bienal de Veneza acabou de ser inaugurada com as mesmas bobagens. Antes de ser aberta ao público, um cara mandou uma proposta de instalação que é um absurdo, e foi obedecida pela direção do evento. A idéia propunha a criação de um muro que fechava a entrada do pavilhão espanhol. Para que a entrada fosse permitida, seria necessária a apresentação do passaporte espa­nhol. Ou seja, ninguém conseguia entrar. E o incrível é que a Bienal topou isso! Na verdade, o artista estava era fazendo uma grande gozação com a Bienal, gozando a instituição. Essas pessoas são niilistas. Destruíram a ar­te, são pessoas que não têm o que fa­zer na vida e, com razão, gozam uma instituição que quer instituir algo que não existe. Essa instituição tanto vive um impasse que aceita a sugestão de um cara que manda fechar a porta da sua própria exposição. Afinal, se ne­gasse o pedido, ela não seria uma instituição de vanguarda, seria conservadora. e como é de vanguarda tem que dizer sim. Só que isso acaba com ela. O que acontece então? Acontece que a Bienal praticamente não tem mais expressão alguma. É moribunda, está se autodestruindo. Aceitar esse tipo de coisa é autodestruição. (…) A última Bienal foi um fracasso. Todos os vídeos eram chatérrimos e cheios de bobagens. Em Paris, assisti recentemente a um vídeo que só mostrava um cara berrando sem parar. Interna esse ca­ra! Vídeo bom é aquele que narra al­guma coisa.

Qual é exatamente a diferença entre expressão e obra de arte?

Ferreira Gullar: A obra de arte, ao contrário da expressão pura, necessita da elaboração de uma linguagem. É o que eu digo: tudo isso chega a um ponto tal que um pintor como Joseph Bueys – que levou suas experiências a um radicalismo extremo – afirma que todo mundo pode fazer arte. Claro! Se arte é pegar, como ele faz, um pedaço de trilho, cortar e pendurar na parede, qualquer pessoa pode fazer. Mas eu duvido que qualquer pessoa escreva uma sinfonia como Stravinsky, ou pinte uma Guernica como Picasso. Por isso eu afirmo: não é uma empulhação, mas uma confusão que vai surgindo de um processo de desintegração da linguagem.

De modo que, para mim, a crise baseia-se, por um lado, na confusão entre expressão e arte, que são coisas diferentes; por outro lado, há também o problema da busca obsessiva do novo. Buscar o novo, do ponto de vista da arte, é uma futilidade. Você faz o novo – e não existe arte que não implique no novo. Eu não vou escrever um poema que já foi escrito, nem vou repetir o meu próprio poema. Qualquer poema que eu escreva, para ser poema, deve ter algo de novo dentro dele. Mas não precisa ser um paletó de três mangas. Isso é um outro dado.

Antigamente, Leonardo da Vinci sentia-se orgulhoso por ter mestres, e quando, em Milão, encomendaram a escultura de um cavalo, ele saiu atrás de cada obra dos escultores anteriores a ele, para aprender e só então se aventurar a fazer a sua escultura. Na época moderna, ao contrário, ninguém quer ter mestres, todo mundo quer inventar a arte por si mesmo, todo mundo quer ser pai e mãe de si mesmo. Hoje, se você disser para qualquer pessoa que ela aprendeu alguma coisa com alguém, ela te dá um tiro, ela não aprendeu nada com ninguém, ela inventou tudo. Quer dizer: isso é o que essa pessoa pensa.

Podemos dizer então que a crise da arte é uma crise de pressupostos, de princípios, de concepções do que seja a arte?

Ferreira Gullar: Basicamente é isso. A origem, como eu falei, está em um processo verdadeiro, que não é embromação, mas resultou nisso: na desintegração desses valores, desses princípios. Então hoje não há valor algum. Mas, ao dizer isso, eu me refiro apenas ao setor radical, porque os verdadeiros artistas continuam fazendo arte. Há muitos bons pintores, no Brasil e lá fora, que têm noção do que estão fazendo e que não embarcaram nessa canoa furada. Mas o grande problema é que a crítica e as instituições – Bienal de São Paulo, museus de arte – todas embarcaram nessa loucura.

Hoje em dia – como o senhor próprio afirma – existe uma forte tendência a se pensar que tudo é arte, que qualquer um é artista. Esse tipo de pressuposto não contribuiria para um esvaziamento da reflexão do papel do sujeito e do trabalho no ato estético?

Ferreira Gullar: Evidente, evidente. Essa afirmação a que eu me referi, segundo a qual arte todo mundo pode fazer, isso é uma mentira e desvaloriza o artista. É um democratismo, uma falsa liberalidade que não tem valor algum, porque é mentirosa. De fato, se você admite que qualquer um pode fazer arte, pode parecer que sua visão é igualitária. Mas as pessoas não são iguais, elas têm direitos iguais. Nem todo mundo é Zico. Qualquer um pode jogar futebol como Zico? Isso é uma mentira, o que não quer dizer que o Zico seja superior a ninguém. Mas no futebol ele é melhor do que a maioria das pessoas, incluindo as que também jogam futebol. Qualquer um pode sentar no piano e tocar o Noturno n° 2 de Chopin? Não é verdade. Mas hoje se afirma isso e todos aplaudem. Agora, a consagração disso só continua nas artes plásticas. Porque nas artes plásticas amarram-se três pedras num arame e aquilo é “arte”. Como qualquer um pode fazer isso, tem até sentido dizer que qualquer um faz arte essa arte que não é arte. Mas, saindo do terreno das artes plásticas, qualquer um faz cinema? Qualquer um compõe as tocatas e fugas de Bach? Evidente que não.

Em seu livro Argumentação contra a Morte da Arte o Sr. afirma que “a transmutação do material em espiritual no ato poético não se faz por milagre. Cria-se com trabalho, domínio dos meios de expressão, acumulação gradativa da experiência “. A arte contemporânea não estaria profundamente influenciada por uma visão negativa do trabalho como fardo, sacrifício?

Ferreira Gullar: Sim, claro. Totalmente negativa. Quando você adota essa atitude de que basta dependurar uma quantidade de corda no teto de uma galeria para ter uma expressão artística, então isso está implícito. Primeiro, porque não é ele (o artista) quem sobe no teto; ele não fez as cordas; ele não amarrou as cordas. Um artista, há alguns anos atrás, expôs em uma galeria no Rio uma grande quantidade de bronze desfiado, isto é, uma massaroca de fios de bronze que pesava duas toneladas e ocupava toda a galeria. Quando eu vi aquilo fiquei me perguntando por que ele fez aquilo e por que a galeria expôs. Ninguém vai comprar duas toneladas de fios de bronze, porque é uma coisa feia, pesada, cara e também uma bobagem. Então por que a galeria estava expondo aquilo? A galeria é uma casa comercial. Vai expor o que não vende? Qual a razão disso? Eu me perguntei e fui lá. E, como quem não quer nada, encostei em uma mocinha e falei assim: vem cá, eu estou achando estranho isto aqui. Ninguém compra… o artista está vendendo o quê? Aí ela abriu uma gaveta que estava cheia de desenhos do artista: guaches, aquarelas, etc. Ele vendia desenhos. Veja bem: no fundo, ele fazia desenhos iguais aos de qualquer outro artista, mas sucede que aquela obra ali, supostamente de vanguarda, era simplesmente marketing para chamar a atenção das pessoas. Então o artista vive de se fazer famoso ficando nu no museu, colocando duas toneladas de bronze na galeria e o que ele vende é até ruim, de baixa qualidade, convencional, igual ao que um outro qualquer faria. Mas esse outro não tem a esperteza de colocar duas toneladas de bronze na galeria. É um jogo de natureza meramente comercial.

A arte está hoje submetida aos princípios que regem as relações de mercado, o que faz com que a maioria das obras artísticas se tornem mercadorias comuns, objetos industriais como outros quaisquer. Essa submissão não toma a arte muito vulnerável a determinações estranhas aos princípios da liberdade e da criatividade do artista?

Ferreira Gullar: Claro. Esse exemplo que eu dei é típico dessa visão comercial. O problema da comercialização nasce com a sociedade contemporânea, com o capitalismo nasce isso. Quando Manet, junto ao grupo impressionista, cria o Salão dos Recusados – que é o início da revolução moderna da Arte -, o que era aquilo? É que no Salão Oficial, na França – um grande Salão de Arte anual – havia um júri composto de professores da Escola de Belas Artes. Aquele júri era a bolsa que estabelecia o valor das obras de arte. Quem ganhava prêmios naquele salão imediatamente passava a ter clientes para comprar suas obras. Só que, em vez de ser o mercado que determinava o seu valor, era um grupo de professores, acadêmicos. Então quando Manet manda para o salão oficial um quadro que retratava uma mulher nua, sensual, aquilo causou um escândalo tal que o júri não aceitou o quadro. A obra não foi aceita nem para ser exposta, conseqüentemente não poderia ser premiada. Daí criou-se o Salão dos Recusados, isto é, daqueles que não tinham sido sequer aceitos pelo júri. Mas, na verdade, tudo isso refletia a necessidade de que o valor da obra de arte não fosse mais determinado – no capitalismo, isso era um absurdo – por um júri. Tinha que ser determinado pelo mercado. De fato é isso. E eu não o digo para desmoralizar a experiência impressionista, porque, independente disso, é uma arte de grande valor, de grande qualidade e que merecia ter o seu lugar na sociedade, não podia ser discriminada por aquele grupo de professores. Mas também, junto com isso, estava essa necessidade de fazer com que o mercado determinasse o valor, e não um júri.

Esse é o processo. Inclusive essas performances e outras formas de Arte que não criam um objeto de arte são, no fundo, também uma fuga ao capitalismo, uma rejeição do artista em criar objetos vendáveis. Quando o artista cria uma performance, aquilo não pode ser vendido. Só que o processo da sociedade capitalista é tão infernal que transforma aquilo em valor comercial. Quer dizer: o artista não pode vender o objeto mas ele vira espetáculo. Não tem saída. Ele não resolve o problema e ainda destrói a arte. Então é preferível tentar – já que vive dentro do sistema – impedir que o sistema determine a tua expressão. É isso o que os grandes artistas fazem. Por exemplo: Samico, um importante gravador brasileiro radicado no Recife, faz apenas uma gravura por ano. É um exemplo de artista que resiste a esse processo. Um outro exemplo está na poesia. Como ela não vale nada, ela não entrou nessa paranóia. Ela se mantém, na literatura brasileira como na literatura mundial, muito mais independente, autônoma e criativa do que esse tipo de arte, em que o artista, querendo ou não, está envolvido com o mercado, e é arrastado por ele.

A indústria cultural está hoje cada vez mais concentrada. Alguns dados apontam que o setor farmacêutico e o cultural são os que passam pelo maior número de fusões e aquisições. Grandes conglomerados como a ABC-Disney, a Time- Warner, a Hearst Corp. e a Globo concentram cada vez fatias maiores do mercado cultural. Até que ponto isso pode contribuir para o processo de padronização e esterilização da produção cultural?

Ferreira Gullar: Eu distingüo arte de verdade de entretenimento. Eu acho que televisão é entretenimento, não é arte. É evidente que, se você escreve uma novela e uma peça de teatro, tudo é dramaturgia. A novela de televisão também exige destreza, domínio, imaginação, etc. É uma diferença de grau. Na peça de teatro o ator também faz dramaturgia, ele também tem imaginação, etc.

Qual a relação entre Arte e História? Podemos encontrar na História da Arte os determinantes do formato atual da experiência artística?

Ferreira Gullar: Não podemos compreender a arte de hoje sem conhecer a história da arte e a história da sociedade. É impossível compreender o que aconteceu, sem isso. Existe uma relação entre o processo histórico e o processo artístico e cultural. Mas a relação do artístico e do cultural com O econômico – que é a base, o processo fundamental da sociedade – é uma relação distante. O econômico não determina sempre, de uma mesma maneira e num mesmo grau, o cultural e o artístico.

Notas extras de Ferreira:

Outro ponto a se discutir é que um artista conceitual afirma que quem ainda leva em conta valores estético é ultrapassado, já que a nova arte não liga mais para isso. Mas pode haver arte sem valor estético? Arte sem arte? Estas são as perguntas de Ferreira Gullar sobre o assunto.

Descartando assim a expressão estética, como quer a arte conceitual, concluíram que se negar a realizar a obra é reencontrar as fontes genuínas da arte. E, se o que se chama de arte é o resultado de uma expressão surgida na linguagem da pintura, da gravura ou da escultura, buscar se expressar sem se valer dessa linguagem seria fazer arte sem arte ou, melhor dizendo, ir à origem mesma da expressão.

Só que isso nos leva, inevitavelmente, a perguntar se toda expressão é arte. Exemplo: se amasso uma folha de papel, o que daí resulta é uma forma expressiva; pode-se dizer que se trata de uma obra de arte? Se admito que sim, todo mundo é artista e tudo o que se faça é arte.

Ferreira Gullar diz que, ”em resumo, o principal problema da arte contemporânea é que se confundiu expressão com arte. Perdeu-se a noção de que uma coisa pode ser expressiva sem ser arte. Por exemplo: se eu dou um grito, isso é expressão, mas não é arte. Para que esse grito se torne arte, é preciso que eu o transforme num poema, ou que um pintor como E. Münch faça um quadro como “O Grito”, em que aquilo vira uma obra plástica. Se eu me sentar no chão em cima de terra, mesmo que seja no museu, não é obra de arte. Pode ser uma atitude, uma performance adotada como protesto, como manifestação, mas não é obra de arte.”

Nesse caso, onde todo mundo pode fazer arte, acaba se resumindo na questão de uma falsa liberalidade que não tem valor algum, porque é mentirosa. De fato, se você admite que qualquer um pode fazer arte, pode parecer que sua visão é igualitária. Mas as pessoas não são iguais, elas têm direitos iguais.

Por exemplo, Ferreira diz: nem todo mundo é Zico. Qualquer um pode jogar futebol como Zico? Isso é uma mentira, o que não quer dizer que o Zico seja superior a ninguém. Mas no futebol ele é melhor do que a maioria das pessoas, incluindo as que também jogam futebol.

Entrevista extraída do site Obvious.

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