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De Outros Espaços por Michel Foucault

Como sabemos, a história é a obsessão do século dezanove. Da temática do desenvolvimento e da suspensão, da crise e do ciclo, o tema da pesada herança dos mortos e da ameaça da glaciação do mundo devido à incessante acumulação do passado, depreende-se que o século dezanove encontrou a fonte dos seus recursos mitológicos no segundo princípio da termodinâmica. A nossa época talvez seja, acima de tudo, a época do espaço. Nós vivemos na época da simultaneidade: nós vivemos na época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado-a-lado e do disperso. Julgo que ocupamos um tempo no qual a nossa experiência do mundo se assemelha mais a uma rede que vai ligando pontos e se intersecta com a sua própria meada do que propriamente a uma vivência que se vai enriquecendo com o tempo. Poderíamos dizer, talvez, que os conflitos ideológicos que se traduzem nas polémicas contemporâneas se opõem aos pios descendentes do tempo e aos estabelecidos habitantes do espaço. O estruturalismo, ou pelo menos aquilo que é agrupado sob este nome demasiadamente vago, não é mais do que um esforço para estabelecer, entre aqueles elementos que poderiam ter sido associados num eixo temporal, um conjunto de relações que os faz aparecer justapostos, contrapostos, implícitos uns pelos outros – em suma, o que faz aparecer esses elementos com uma determinada configuração. Na verdade, o estruturalismo não implica uma negação do tempo; mas acarreta uma certa maneira de lidar com aquilo a que chamamos tempo e com aquilo a que chamamos história.

É porém necessário notar que o espaço, o que nos surge como horizonte das preocupações, teorias e sistemas, não é uma inovação; o espaço em si tem uma história na experiência Ocidental e é impossível esquecer o nó profundo do tempo com o espaço. Podemos dizer, de uma forma muito simplista de traçar a história do espaço, que durante a Idade Média existia um conjunto hierárquico de lugares: numa primeira instância, os lugares imediatamente associados à vida real do homem, com as dicotomias entre lugares sagrados e lugares profanos, lugares protegidos e lugares expostos, lugares urbanos e lugares rurais; nas teorias cosmológicas, existiam os lugares supracelestiais, opondo-se aos celestes e estes, aos terrestres. E ainda havia também lugares onde certas coisas eram colocadas porque tinham sido deslocadas, por sua vez, de uma forma violenta, e, pelo contrário, lugares onde as coisas encontravam as suas base e estabilidade naturais. Estas oposições e intersecções de lugares formavam uma hierarquia acabada e é o que nós podemos indicar, ainda que muito imperfeitamente, como espaço medieval: o espaço em que cada coisa é colocada no seu sítio específico, o espaço da disposição.

Este espaço de disposição, de fixidez, foi aberto por Galileu. O escândalo profundo suscitado pelas suas investigações não foi o facto de ter descoberto, ou melhor, redescoberto que a Terra girava à volta do Sol, mas na constituição do conceito de infinito e, o que é implícito, de um espaço infinitamente aberto. Num espaço desses, os lugares da Idade Média acabam por se dissolver; um lugar de uma coisa não passava afinal de apenas um ponto do seu movimento, assim como a estabilidade dessa coisa não passava afinal da infinita desaceleração do seu movimento. Por outras palavras, Galileu e todo o século dezassete foram os primeiros de todo um movimento que substituiu a localização pela extensão.

Hoje o sítio substitui a extensão que, por sua vez, tinha substituído a disposição. O sítio define-se por relações de proximidade entre certos pontos e elementos; poderemos descrever formalmente essas relações como séries ou grelhas. Além disso, a importância do sítio como uma problemática no trabalho técnico contemporâneo é sobejamente conhecida: o armazenamento de dados ou de resultados intermédios de um cálculo numa memória; a circulação de elementos distintos com um output aleatório (exemplos simples: o tráfico automobilístico ou os sons da linha de telefone); a identificação de elementos assinalados e codificados que fazem parte de um todo, construído aleatoriamente ou segundo classificações, sejam elas simples ou múltiplas.

De uma forma ainda mais concreta, o problema da disposição das coisas surge à Humanidade na forma da demografia. Este problema do sítio humano ou do lugar vivo não se reduz apenas a saber se existirá ou não espaço para todas as pessoas no mundo – que é decerto importante – mas também saber que relações de propinquidade, que tipos de armazenamento, circulação, marcação e classificação de elementos humanos devem ser adoptadas em determinadas situações para atingir determinados fins. A nossa época é tal que os sítios se tornam, para nós, uma forma de relação entre vários sítios.

Em todos os casos, acredito que a ansiedade da nossa época tem a ver fundamentalmente com o espaço, muito mais do que com o tempo. O tempo aparece-nos como apenas uma das várias operações distributivas que são possíveis entre os elementos que estão espalhados pelo espaço.

Agora, apesar de toda a técnica desenvolvida de apropriação do espaço, apesar de toda uma rede de relações entre saberes que nos ajuda a delimitá-lo ou formalizá-lo, o espaço contemporâneo não foi ainda totalmente dessacralizado (pelo que parece, uma atitude aparentemente diferente da que foi tomada perante o tempo, arrancado da esfera do sagrado no século dezanove). Na verdade, uma certa dessacralização do espaço ocorreu (sublinhada pela obra de Galileu), mas ainda não atingimos o ponto óptimo dessa dessacralização. A nossa vida ainda se regra por certas dicotomias inultrapassáveis, invioláveis, dicotomias as quais as nossas instituições ainda não tiveram coragem de dissipar. Estas dicotomias são oposições que tomamos como dadas à partida: por exemplo, entre espaço público e espaço privado, entre espaço familiar e espaço social, entre espaço cultural e espaço útil, entre espaço de lazer e espaço de trabalho. Todas estas oposições se mantêm devido à presença oculta do sagrado.

A obra monumental de Bachelard e as descrições dos fenomenologistas demonstraram-nos que não habitamos um espaço homogéneo e vazio mas, bem pelo contrário, um espaço que está totalmente imerso em quantidades e é ao mesmo tempo fantasmático. O espaço da nossa percepção primária, o espaço dos nossos sonhos e o espaço das nossas paixões encerram em si próprios qualidades à primeira vista intrínsecas: há um espaço luminoso, etéreo e transparente, ou um espaço tenebroso, imperfeito e que inibe os movimentos; um espaço do cimo, dos píncaros, e um espaço do baixo, da lama; há ainda um espaço flutuante como água espargindo e um espaço que é fixo como uma pedra, congelado como cristal. No entanto, todas estas análises, ainda que fundamentais para uma certa reflexão do nosso tempo, dizem respeito, logo à partida, ao espaço interno. Eu preferiria debruçar-me sobre o espaço externo.

O espaço no qual vivemos, que nos leva para fora de nós mesmos, no qual a erosão das nossas vidas, do nosso tempo e da nossa história se processa num contínuo, o espaço que nos mói, é também, em si próprio, um espaço heterogéneo. Por outras palavras, não vivemos numa espécie de vácuo, no qual se colocam indivíduos e coisas, num vácuo que pode ser preenchido por vários tons de luz. Vivemos, sim, numa série de relações que delineiam sítios decididamente irredutíveis uns aos outros e que não se podem sobre-impôr.

É evidente que podemos tentar descrever estes diferentes sítios apenas pela série de relações que definem cada um destes determinados sítios. Por exemplo, descrevendo a série de relações que definem os sítios de transporte, ruas, comboios (um comboio é uma amálgama extraordinária de relações porque é algo que atravessamos, é também algo que nos leva de um ponto a outro, e por fim é também algo que passa por nós). Poderíamos ainda descrever, através dos aglomerados de relações que permitem a sua definição, os sítios de relaxe temporário – cafés, cinemas, praias. Da mesma forma, poderíamos descrever, através da sua rede de relações, os sítios fechados ou semi-fechados de descanso – a casa, o quarto, a cama, etc.

Mas, de todos estes sítios, interessam-me mais os que se relacionam com todos os outros sítios, de uma forma que neutraliza, secunda, ou inverte a rede de relações por si designadas, espelhadas e reflectidas. Espaços que se encadeiam uns nos outros, mas entretanto contradizem todos os outros. São de dois tipos principais.

Em primeiro lugar, existem as utopias. As utopias são sítios sem lugar real. São sítios que têm uma relação analógica directa ou invertida com o espaço real da Sociedade. Apresentam a sociedade numa forma aperfeiçoada, ou totalmente virada ao contrário. Seja como for, as utopias são espaços fundamentalmente irreais.

Há também, provavelmente em todas as culturas, em todas as civilizações, espaços reais – espaços que existem e que são formados na própria fundação da sociedade – que são algo como contra-sítios, espécies de utopias realizadas nas quais todos os outros sítios reais dessa dada cultura podem ser encontrados, e nas quais são, simultaneamente, representados, contestados e invertidos. Este tipo de lugares está fora de todos os lugares, apesar de se poder obviamente apontar a sua posição geográfica na realidade. Devido a estes lugares serem totalmente diferentes de quaisquer outros sítios, que eles reflectem e discutem, chamá-los-ei, por contraste às utopias, heterotopias. Julgo que entre as utopias e este tipo de sítios, estas heterotopias, poderá existir uma espécie de experiência de união ou mistura análoga à do espelho. O espelho é, afinal de contas, uma utopia, uma vez que é um lugar sem lugar algum. No espelho, vejo-me ali onde não estou, num espaço irreal, virtual, que está aberto do lado de lá da superfície; estou além, ali onde não estou, sou uma sombra que me dá visibilidade de mim mesmo, que me permite ver-me ali onde sou ausente. Assim é a utopia do espelho. Mas é também uma heterotopia, uma vez que o espelho existe na realidade, e exerce um tipo de contra-acção à posição que eu ocupo. Do sítio em que me encontro no espelho apercebo-me da ausência no sítio onde estou, uma vez que eu posso ver-me ali. A partir deste olhar dirigido a mim próprio, da base desse espaço virtual que se encontra do outro lado do espelho, eu volto a mim mesmo: dirijo o olhar a mim mesmo e começo a reconstituir-me a mim próprio ali onde estou. O espelho funciona como uma heterotopia neste momentum: transforma este lugar, o que ocupo no momento em que me vejo no espelho, num espaço a um só tempo absolutamente real, associado a todo o espaço que o circunda, e absolutamente irreal, uma vez que para nos apercebermos desse espaço real, tem de se atravessar esse ponto virtual que está do lado de lá.

Sendo assim as heterotopias, como é que podem ser descritas e que sentido assumem elas? Poderemos apelar para uma descrição sistemática – não diria uma «ciência», pois esse é um termo demasiado em voga nos dias de hoje – uma descrição que numa dada sociedade tomará como objecto o estudo, a análise, a descrição e a «leitura» (como alguns gostariam de dizer) destes espaços diferentes, destes lugares-outros. Sendo uma contestação do espaço que vivemos simultaneamente mítica e real, esta descrição poderá ser intitulada de heterotopologia. O seu primeiro princípio é o de que não há nenhuma cultura no mundo que não deixe de criar as suas heterotopias. É uma constante de qualquer e todo o grupo humano. Mas é evidente que as heterotopias assumem variadíssimas formas e, provavelmente, não se poderá encontrar uma única forma universal de heterotopia. Poderemos, no entanto, classificá-las em duas categorias.

Nas ditas sociedades primitivas, há um tipo de heterotopia que eu chamaria de heterotopia de crise, id est, lugares privilegiados ou sagrados ou proibidos, reservados a indivíduos que estão, em relação à sociedade e ao ambiente humano que ocupam, numa situação de crise: adolescentes, mulheres menstruadas ou grávidas, idosos, etc. Na nossa sociedade, estas heterotopias de crise têm desaparecido progressivamente, apesar de ainda se puderem encontrar algumas reminiscências dos mesmos. Por exemplo, o colégio interno, na sua forma novecentista, ou o serviço militar para os jovens rapazes, são algo que desempenham esse papel, visto que as primeiras manifestações de virilidade sexual devem ocorrer “algures” que não o lar ou lugar de origem. E até meados do século vinte, existia para as raparigas a «viagem de lua-de-mel», que é uma tradição de temática antiga. A desfloração das jovens raparigas deveria ocorrer “nenhures” e, quando isso acontecia no comboio ou no hotel da «lua-de-mel», acontecia de facto nesse lugar de “nenhures”, nessa heterotopia sem limites geográficos.

Mas estas heterotopias de crise têm desaparecido dos nossos dias e sido substituídas, parece-me, pelo que poderíamos chamar heterotopias de desvio: aquelas nas quais os indivíduos, cujos comportamentos são desviantes em relação às norma ou média necessárias, são colocados. Exemplos disto serão as casas de repouso ou os hospitais psiquiátricos, e, claro está, as prisões. Talvez devêssemos acrescentar as casas de terceira idade, que se encontram numa fronteira diáfana entre a heterotopia de crise e heterotopia de desvio: afinal de contas, a terceira idade é uma crise mas também um desvio, visto que na nossa sociedade, sendo o lazer a regra, a ociosidade é uma espécie de desvio.

O segundo princípio desta descrição das heterotopias é que uma sociedade, à medida que a sua história se desenvolve, pode atribuir a uma heterotopia existente uma função diversa da original; cada heterotopia tem uma função determinada e precisa na sua sociedade, e essa mesma heterotopia pode, de acordo sincrónico com a cultura em que se insere, assumir uma outra função qualquer.

Exemplificarei com a estranha heterotopia que é o cemitério. Um cemitério é, em absoluto, um lugar diverso dos espaços culturais comuns. É, porém, um espaço intimamente relacionado com todos os outros sítios da cidade ou estado ou sociedade, etc., uma vez que cada indivíduo e cada família tem familiares no cemitério. Na cultura ocidental o cemitério sempre existiu, apesar de ter atravessado mudanças radicais. Até ao fim do século dezoito, o cemitério encontrava-se no centro da cidade, geminado com a igreja. Existia uma hierarquização dos possíveis túmulos: em primeiro lugar, existia a casa mortuária na qual os corpos perdiam os seus traços particulares, depois, alguns túmulos individuais e, no fim, os que se encontravam dentro da igreja. Estes últimos dividiam-se em dois grupos: as simples lápides inscritas e os mausoléus com estátuas. Este cemitério, que se abrigava no espaço sagrado da igreja, tomou uma direcção bastante diferente nas civilizações modernas. Curiosamente, numa época em que essas civilizações se assumem como – e digo-o de uma forma franca – «ateístas», a cultura ocidental desenvolveu aquilo a que se chamará culto dos mortos.

Vejamos: era natural que, num tempo em que se cria realmente na ressurreição dos corpos e na imortalidade da alma, não se preocupassem em demasia com os despojos do cadáver. Contrariamente, no momento em que já não se crê com tanta segurança que se tem uma alma ou que o corpo alguma vez recupere a vida, é talvez importante assegurar maior atenção ao corpo morto, que é, em última instância, o único traço da nossa existência, quer no mundo quer na linguagem. Em todos os casos, é a partir dos inícios do século dezanove que todos começam a ganhar o direito de ter a sua própria caixinha para a sua própria decadência pessoal. Entretanto, e num movimento oposto, é também a partir dos inícios do século dezanove que os cemitérios começam a ser construídos nas linhas exteriores das cidades. Correlativamente à individualização da morte e à apropriação burguesa do cemitério, emerge uma obsessão pela morte como uma «doença». Os mortos trazem supostamente doenças, e é a proximidade, a presença dos mortos ao lado da igreja, ao lado das casas, quase no meio das ruas, é esta proximidade que propaga a própria morte. Este tema maior da doença espalhada pelo contágio nos cemitérios manteve-se até ao fim do século dezoito, quando, e ao longo do século seguinte, os cemitérios foram deslocados em direcção aos subúrbios. Os cemitérios tornaram-se assim, não já no imortal e sagrado coração da cidade, mas na «cidade-outra», em que cada família possui o seu tenebroso cantinho de descanso.

Terceiro princípio. A heterotopia consegue sobrepor, num só espaço real, vários espaços, vários sítios que por si só seriam incompatíveis. Assim é o que acontece num teatro, no rectângulo do palco, em que uma série de lugares se sucedem, um atrás do outro, um estranho ao outro; assim é o que acontece no cinema, essa divisão rectangular tão peculiar, no fundo da qual, num ecrã bidimensional se podem ver projecções de espaços tridimensionais. Mas talvez o exemplo mais antigo deste tipo de heterotopias, destes sítios contraditórios, seja o do jardim. Devemos ter em conta que, no Oriente, o jardim era uma impressionante criação de tradições milenares, e que assumia significados profundos e sobrepostos. Na tradição persa, o jardim era um espaço sagrado que reiterava nos seus quatro cantos os quatro cantos do mundo, com um espaço supra-sagrado no centro, um umbigo do mundo (ocupado pela fonte de água) . Toda a vegetação deveria encontrar-se ali reunida, formando como que um microcosmo. Relativamente aos tapetes persas, estes eram nada mais nada menos do que reproduções dos jardins (o jardim é um tapete no qual todo o mundo atinge a sua perfeição simbólica; e o tapete um jardim que se pode deslocar no espaço). O jardim é a mais pequena parcela do mundo e é também a totalidade do mundo; tem sido uma espécie de heterotopia feliz e universalizante desde os princípios da antiguidade (os nossos modernos jardins zoológicos partem desta matriz).

Quarto princípio. Na maior parte dos casos, as heterotopias estão ligadas a pequenos momentos, pequenas parcelas do tempo – estão intimamente ligadas àquilo que chamarei, a bem da simetria, heterocronias. O auge funcional de uma dada heterotopia só é alcançado aquando uma certa ruptura do homem com a sua tradição temporal. Assim, e ainda com o exemplo do cemitério, verificamos que esta é uma heterotopia particularmente significativa; repare-se: é uma heterotopia que para o indivíduo tem o seu início na peculiar heterocronia que é a perda da vida, e na entrada dessa quasi-eternidade cujo permanente fado é a dissolução, o desaparecimento até.

De modo geral, na nossa sociedade as heterocronias e heterotopias são distribuídas e estruturadas de uma forma relativamente complexa. Em primeiro lugar, surgem as heterotopias acumulativas do tempo, como os museus e as bibliotecas. Estes tornaram-se heterotopias em que o tempo não pára de se acumular e empilhar-se sobre si próprio. No século dezassete, porém, um museu e uma biblioteca traduziam uma expressiva escolha pessoal. Por contraste, a ideia de conseguir acumular tudo, de criar uma espécie de arquivo geral, o fechar num só lugar todos os tempos, épocas, formas e gostos, a ideia de construir um lugar de todos os tempos fora do tempo e inacessível ao desgaste que acarreta, o projecto de organizar desta forma uma espécie de acumulação perpétua e indefinida de tempo num lugar imóvel, enfim, todo este conceito pertence à nossa modernidade. O museu e a biblioteca são heterotopias típicas da cultura ocidental do século dezanove.

Do outro lado do espectro estão as heterotopias que estão associadas ao tempo na sua vertente mais fugaz, transitória, passageira. Refiro-me ao que assume o modo do festival. Estas heterotopias não estão orientadas para o eterno; bem pelo contrário, são de uma absoluta cronicidade, são temporais. É o que encontramos nas feiras e nos circos, sítios vazios colocados nos limites das cidades que, duas vezes por ano, pululam com barraquinhas, montras, objectos heteróclitos, lutadores, mulheres-serpente, pessoas que lêem o futuro nas mãos, entre muitos outros. E um novo tipo de heterotopia temporal surgiu ainda há pouco tempo: as aldeias de férias. Como aquelas aldeias polinésias que oferecem um pacote completo de três semanas de eterna e primitiva nudez ao citadino. Repare-se que, no fundo, esta última reúne as duas formas de heterotopias de que acabei de falar, a heterotopia de festival e a heterotopia acumulativa: as cabanas de Djerba são em alguns aspectos aparentadas com os museus e as bibliotecas. A redescoberta da vida na Polinésia leva à abolição do tempo; mas é ao mesmo tempo uma experiência em que se redescobre o próprio tempo: é como se toda a história da humanidade pudesse rever as suas origens de uma maneira imediata, experienciada.

Quinto princípio. As heterotopias pressupõem um sistema de abertura e encerramento que as torna tanto herméticas como penetráveis. Geralmente, uma heterotopia não é acessível tal qual um lugar público. A entrada pode ser ou compulsória, o que é exemplificável pelas prisões e casernas, ou através de um rol de rituais e purificações, em que o indivíduo tem de obter permissão e repetir certos gestos. Além disso, há heterotopias que são exclusivamente dedicadas a estas actividades de purificação, ritos que são parcialmente religiosos e parcialmente higiénicos como nos hammans dos muçulmanos, ou ritos que são só aparentemente higiénicos, como nas saunas dos escandinavos.

Há ainda outras heterotopias que, ainda que à primeira vista pareçam ser aberturas, servem de forma velada a curiosas exclusões. Todos podem entrar nestes sítios heterotópicos, mas essa é apenas uma ilusão: pensamos que entrámos ali onde somos, simplesmente pelo facto de ali termos entrado, excluídos. Estou a pensar naqueles quartos que existiam nos casarões do Brasil, e um pouco por toda a América do Sul: a entrada para esses quartos de dormir não era a entrada para a casa em si, a entrada da família; qualquer viajante que por ali passasse poderia abrir a porta e ocupar uma cama e dormir uma noite. Mas esses quartos estavam construídos de uma tal forma que esse indivíduo passageiro nunca tinha acesso livre às partes da casa da família; o visitante era portanto um verdadeiro convidado transitório, não era convidado sequer. Apesar deste modo ter quase desaparecido, poderemos ainda apontar alguns móteis norte-americanos como reminiscências dessa heterotopia. Qualquer homem pode ir no seu carro com a sua amante a esses motéis, em que o sexo ilícito é abrigado mas, ao mesmo tempo, também escondido e isolado. Seja como for, nunca aceite publicamente.

O último traço das heterotopias é que elas têm também uma função específica ligada ao espaço que sobra. Mais uma vez, uma função que se desdobra em dois pólos extremos. O seu papel será ou o de criar um espaço ilusório que espelha todos os outros espaços reais, todos os sítios em que a vida é repartida, e expondo-os como ainda mais ilusórios (parece-me ter sido esse o papel desenvolvido pelos famosos bordéis dos quais fomos privados). Ou então o de criar um espaço outro, real, tão perfeito, meticuloso e organizado em desconformidade com os nossos espaços desarrumados e mal construídos. Este último tipo de heterotopia seria não de ilusão, mas de compensação. Pergunto-me se certas colónias não terão funcionado segundo essa lógica. Em alguns casos, a organização que preconizavam do espaço terrestre desempenhava a função das heterotopias: por exemplo, na primeira leva de colonizadores do século dezassete, das sociedades puritanas fundadas pelos ingleses na América do Norte, e que eram a perfeição do lugar-outro. Também estou a considerar as extraordinárias colónias jesuítas fundadas na América do Sul, maravilhosa e absolutamente organizadas, nas quais a perfeição humana era de facto atingida. Os jesuítas, no Paraguai, conseguiram formar colónias nas quais todo e qualquer aspecto da existência era regulado. A própria aldeia era fundada segundo um plano rigoroso: a matriz seria um lugar rectangular, na base do qual estaria a igreja; de um dos lados, a escola, e do outro, o cemitério; à frente da igreja, uma longa avenida que seria cortada por uma outra, trasversal; e cada família teria a sua cabana ao longo destes dois eixos. Estava assim reproduzido o símbolo de Cristo, em toda a sua acuidade. A Cristandade delimitava o espaço e a geografia do mundo americano pelo seu símbolo fundamental. A vida do dia-a-dia de cada um era orientada, não por um apito de trabalho, mas pelo sino da igreja. Toda a gente acordava à mesma hora, toda a gente começava a trabalhar à mesma hora; as refeições eram ao meio-dia e às cinco da tarde; depois seguia-se a hora de deitar; e à meia-noite havia o que se chamava despertar marital, ou seja, cada cônjuge cumpria o seu dever regulado pelo toque do sino.

Os bordéis e as colónias são dois tipos extremos de heterotopias. Mas, atenção. Um navio é um pedaço flutuante de espaço, um lugar sem lugar, que existe por si só, que é fechado sobre si mesmo e que ao mesmo tempo é dado à infinitude do mar. E, de porto em porto, de bordo a bordo, de bordel a bordel, um navio vai tão longe como uma colónia em busca dos mais preciosos tesouros que se escondem nos jardins. Perceberemos também que o navio tem sido, na nossa civilização, desde o século dezasseis até aos nossos dias, o maior instrumento de desenvolvimento económico (ao qual não me referi aqui), e simultaneamente o grande escape da imaginação. O navio é a heterotopia por excelência. Em civilizações sem barcos, esgotam-se os sonhos, e a aventura é substituída pela espionagem, os piratas pelas polícias.

Este texto foi traduzido com base no texto publicado em Diacritics; 16.1, Primavera de 1986, por Pedro Moura.

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