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Em arte, ser ou não ser é uma questão de documentação

Álvaro, um colecionador que depois de eu ter realizado uma curadoria de suas obras, catalogando, avaliando, autenticando e organizando suas pinturas por temas, nos tornamos amigos trocando informações sobre arte e contando histórias pitorescas sobre artistas, em uma manhã fria, me ligou
dizendo estar muito perto de casa e perguntou se poderia me visitar. Disse a ele que sim, que eu não iria sair na parte da manhã e o esperaria.

Logo depois, toca a campainha e eis que entra o Álvaro não se contendo em seu entusiasmo e logo dizendo: “trouxe uma bomba maravilhosa para você avaliar”. Rimos muito e servi um café para esquentar e aclarar o nosso papo.

Ele começou a contar a história da obra que estava embrulhada em uma lona e todo emocionado abre e me mostra, “veja é um Francis Bacon”. Eu logo respondi: “Calma meu amigo, vamos examinar sem este entusiasmo todo”. Ao que ele retrucou: “Mas é claro que estou entusiasmado, uma obra deste artista
está valendo um milhão de dólares no leilão da Sotheby’s”. E eu insisti: “Calma meu amigo, para chegar até um leilão desta casa há muito chão a percorrer”.

Para o leitor que não conhece o artista, Bacon é um dos pintores britânicos mais bem sucedidos do século XX. Sua reputação foi aumentada ainda mais durante o retorno à pintura na década de 1980 e, depois de sua morte, ele foi visto por alguns como um dos pintores mais importantes do mundo.

Leia também: 8 fatos curiosos sobre Francis Bacon, o Artista das figuras distorcidas.

Bacon nasceu em 28 de outubro de 1909 e faleceu em 28 de abril de 1992. Foi um pintor anglo-irlandês, autodidata, asmático, alcoólatra, homossexual, mas um dos mais expressivos pintores da pintura figurativa contemporânea. Seu trabalho é mais conhecido pelas distorções das imagens que ele dizia ser a forma de atingir o sistema nervoso de maneira mais penetrante e, para ele, o rosto não é a essência da personalidade, mas a verdade de sua aparência, como um enigma que o leva fora de si mesmo ao mundo que o acolhe. Sua arte tinha a ver com sentir e perceber até onde uma aparência poderia suportar ser traduzida para o real. Quanto mais interferência sofresse a forma, mais parecida com seu referente.
Deleuze, filósofo francês, refere-se ao trabalho de Bacon como uma “lógica de sensações”, um suporte com inúmeras possibilidades em suas distorções.

Francis Bacon produziu algumas das imagens mais emblemáticas da humanidade, ferida e traumatizada na arte pós-guerra, o retrato do Papa Inocêncio X.
Sua inspiração estava no surrealismo do cinema, da fotografia e dos antigos mestres. Ele criou um estilo que o tornou um dos mais reconhecidos expoentes da arte figurativa nas décadas de 1940 e 1950, deixando um legado de 325 obras.

Assim, mostrando a importância deste artista no mundo da arte, voltemos para a obra que Álvaro trouxe para ser analisada.
Até esse momento, o quadro estava envolto na lona. Medindo 35,5 x 30,5 cm, era um autorretrato do artista. Conhecendo a obra de Bacon, sei que ele fazia autorretratos quase sempre de tamanhos pequenos e este estava na medida que ele usava de tela para fazer seus retratos.

Álvaro começou a contar o achado dele; como médico cardiologista, ele visitava muito seus clientes em suas residências. Uma noite ele foi chamado pelo Mr. Thomas, um senhor inglês, advogado da colônia britânica no Brasil, que depois de atendê-lo ficou conversando com ele. Enquanto tomavam um chá, ele mostrou ao Álvaro a obra atribuída a Francis Bacon que ele queria vender, porque, como não tinha família e estava com idade avançada, ele não tinha mais interesse em ficar com a obra. Como ele
sabia que Álvaro era colecionador, ofereceu-lhe o quadro.

Durante este relato entusiasmado do meu amigo, interrompi e perguntei a ele como surgiu esta obra na casa do Mr. Thomas. Ele contou que foi pagamento de honorários de um cliente que tinha uma empresa que faliu e o pagou com a obra. Assim, servi outro café para podermos conversar sobre o trabalho de pesquisa que precisava ser elaborado, pois tínhamos ainda que fazer a identificação e o reconhecimento da referida obra. Seria necessário analisar também os elementos presentes na obra, de forma que as informações nela contidas fossem devidamente decifradas. Iniciando pelo elemento mais simples que é o da composição visual: ponto, linha, forma, cor, textura, dimensão, escala e movimento, comparando esta obra com outra de Francis Bacon em museu ou de um livro como referência. Logo após, partimos para um exame detalhado da obra com microscópio para observar os traçados e se as pinceladas correspondiam a outros autorretratos do artista.

Outra etapa será o exame da palheta da obra e a comparação com a do artista. Disse a ele que não seria difícil, porque quando estudei em Londres tive um professor PhD chamado Alfonso Mérida que conheceu Francis Bacon em Madrid nos anos 80, onde morou um tempo e veio a falecer nesta cidade.
Ainda mantenho contato com o professor Mérida e não seria difícil obter a palheta do artista com a identificação das tintas utilizadas.

Os pigmentos contêm elementos fundamentais que fornecem valiosas informações sobre a época da tinta e a sua composição química. É um estudo fundamental para a conservação e a autenticação de uma obra. São colhidas microamostras, das quais, por análises químicas, separam-se os diversos componentes que identificam os pigmentos usados e sua época.

É um exame cuidadoso e caro que é realizado em laboratório onde faço minhas análises, mas é certeiro. Chama-se estratificação e identifica substâncias químicas específicas presentes na amostra, incluindo os pigmentos. Analisar uma obra com luz ultravioleta não só mostra o estado de conservação da obra como apresenta pistas sobre os pigmentos utilizados, os quais podem fornecer indícios sobre a datação da obra.

Por outro lado, analisar também com luz infravermelha permite ver as camadas subjacentes revelando esboços. Além disso, o estudo grafotécnico da assinatura, que neste caso está no verso da obra, é de grande valia porque este estudo revela os elementos de ordem geral e de natureza genética dos grafismos inerentes a determinada pessoa, eis que a escrita nasce no cérebro do escritor e através de seus impulsos cerebrais é registrada em sua escrituração.

A gênese gráfica de cada punho faz parte do movimento involuntário do cérebro que elegeu seus símbolos como individualidade. O autor da obra pode, com o tempo, mudar a sua assinatura ou abreviar sua forma de representar seus símbolos, porém nunca perde as características registradas pelo cérebro no movimento do seu pulso no suporte.

Agora vem a fase mais importante e inicial, porque sem esta fase de nada adianta fazer estas pesquisas químicas, gastar dinheiro com fotos infravermelho, ultravioleta e não conseguirmos atingir o nosso objetivo que é ter um Francis Bacon legítimo. Assim, insisti com Álvaro que voltasse ao seu cliente, pesquisasse dados e verificasse qual a documentação que ele tem como histórico da obra, documentos de transferência, nomes e datas, pois tudo isto é necessário.

Entretanto, o entusiasmo de Álvaro, sabendo dos trâmites de autenticar esta obra, arrefeceu um pouco, mas para animá-lo disse a ele que voltasse ao seu cliente e conseguisse um histórico bem consistente com nomes, datas e documentos.

Passaram-se alguns dias, Álvaro retorna à minha casa. Eu estava esperando que ele me trouxesse os documentos com data de compra, a quem pertenceu, mas, em vão, ele não conseguiu nada além da história inicial.
Expliquei a ele que todas as etapas que descrevi, nas quais poderíamos trabalhar, foram por “água abaixo”, porque devido à inconsistência da obra nos restava apenas a principal opção, consultar Mr. Martin Harrison.

Mr. Martin Harrison é editor do Catálogo Raisonné do artista, publicado em 2016, o qual é a maior autoridade sobre o trabalho de Bacon. Este catálogo é sempre atualizado quando encontram uma obra realmente do artista e frisei a ele, que já me olhava com um olhar mais triste, que só assim ele poderia colocar seu quadro no leilão da Sotheby´s e ganhar uma soma alta.

Catálogo Raisonné de Francis Bacon

Ansioso, Álvaro me fez muitas perguntas e eu respondi que iria conversar com Mr. Martin Harrison, mas precisava que ele me fornecesse algumas fotos da obra para serem avaliadas em Londres e caso positivo enviaremos a obra para Mr. Harrison. Ele irá dar o veredicto sobre a obra e, caso positivo, fazemos todos os exames. “E se der negativo?”, perguntou Álvaro.
“Vamos aguardar”, respondi a ele.

Conversei com Mr. Martin Harrison após ter enviado as fotos do quadro com muitos detalhes e disse a ele que enviaria o quadro casa fosse necessário. Ele me respondeu: “O autorretrato em questão faz uso liberal da técnica de Bacon de pressionar o tecido na tinta úmida para fazer as linhas paralelas chamadas de cofragem e que eram feitas com um tecido de veludo.

As elipses brancas que ocupam um espaço fora da cabeça nunca foram feitas pelo artista, desta forma, bem como os colarinhos não representam o traçado de Bacon, são pouco convincentes”. E, assim, continuou a falar da obra mostrando muito mais contradições e, ao terminar, falou que a obra tinha todas
as características de um falso Milano.

Milano é um grupo de radicais em Milão da década de 1970 que fazia pinturas falsas de Francis Bacon como forma de protesto político que, mais tarde, chegaram ao mercado de arte para venda. Cinco pessoas eram os implicados em autenticar essas obras falsas. Mas o maior reboliço foi em 2016, quando o galerista Cristiano Lovatti fez uma exposição com essas obras falsas gerando um mal-estar na obra de Francis Bacon.

Esse fato causou muita polêmica no mercado de arte e foi então que Mr. Martin Harrison fez o Catálogo Raisonné para elevar Bacon ao status de um dos maiores artistas contemporâneos.

Com esta resposta esclarecedora e definitiva, chamei Álvaro para ouvi-la e confesso que fiquei um pouco triste em trazer esta má notícia, mas necessária. “Meu amigo, você como um colecionador de obras, viu quantas pesquisas e o trabalho que tive para fazer um catálogo de sua coleção de obras, porém sempre baseadas em documentos certificando assim que sua coleção é autêntica e valiosa. Antes de comprar qualquer quadro se deve sempre ter o cuidado de conhecer o histórico e a documentação da obra, pois
são fundamentais na composição da perícia em uma obra de arte”.

Muito triste, Álvaro me perguntou: “e agora, o que faço?” e eu respondi a ele que procurasse o vendedor e lhe apresentasse os comentários de Mr. Martin Harrison e devolvesse o quadro, por se tratar de uma venda ilegal.

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