Opinião

O templo Guggenheim

O monumental prédio do Guggenheim em Nova York, projetado pelo arquiteto Frank Lloyd Wright (1867-1959), comemora 60 anos em 2019. Mais do que um espaço para exibir arte, o prédio é também uma obra de arte. O edifício cilíndrico – mais largo no topo do que na base – foi comissionado ao arquiteto em 1943 a pedido de Hilla Rebay (1890-1967) e Solomon R. Guggenheim (1861-1949), que queriam criar um museu com um design inovador para abrigar a coleção permanente do recém-criado Museu da Pintura Não Objetiva (pinturas não objetivas são pinturas sem quaisquer objetos reconhecíveis).

Guggenheim em Nova York

A pintora abstrata Hilla Rebay era a consultora de arte de Solomon R. Guggenheim e o ajudou a montar sua coleção de pinturas não objetivas. Rebay acreditava fervorosamente que a tradução de impulsos espirituais e sentimentos na arte não figurativa significava a criação de uma linguagem visual que transcenderia barreiras para o aperfeiçoamento da humanidade. Rebay imaginava esse novo museu como um “templo do espírito”, onde os visitantes pudessem conversar intimamente com a arte.

Pensando nesses conceitos, Frank Lloyd Wright projetou o espaço expositivo como um espiral contínuo. Seu plano aberto e a rampa em espiral em direção à luz parecem servir como uma manifestação física dos ideais utópicos da não-objetividade. O espaço também promove um senso de comunidade através da experiência compartilhada entre espaço, arte e pessoas.

A rotunda aberta força os visitantes a dividirem os espaços uns com os outros. O visitante encontra as mesmas pessoas mais de uma vez na rampa e, através da rotunda, consegue ver as obras de diversos pontos e lugares. A exposição atual, “Hilma af Klint: pinturas para o futuro”, aberta em outubro de 2018, foi a escolha perfeita para comemorar os ideias utópicos do projeto imaginado por Rebay e executado por Lloyd Wright; porém, mais importante que isso, a exposição celebra o Guggenheim como um museu do século 21, que exibe temas atuais e traz uma maior participação de mulheres artistas.

Guggenheim em Nova York

Não existe nenhuma evidência de que a artista sueca Hilma af Klint (1862-1944) esteve envolvida no movimento abstrato de seus colegas contemporâneos, Wassily Kandinsky e Piet Mondrian, por exemplo – e muito menos que tenha participado do desenvolvimento do início do modernismo na Europa –, mas a artista sem dúvida inventou uma estética não representativa parecida à deles. A exposição do Guggenheim nos propõe repensar a questão de gênero na história da arte a partir de uma nova geografia, justamente porque as pinturas da artista contestam a noção de abstração modernista como um projeto masculino.

hilma af klint

O primeiro grande grupo de obras abstratas de Hilma af Klint, Pinturas para o templo, foi produzido entre 1906 e 1915. As pinturas foram geradas em parte através da prática espiritualista de af Klint e refletem um esforço para articular visões místicas da realidade. Estilisticamente, as pinturas são bastante diversas, incorporando formas biomórficas e geométricas, escalas expansivas e íntimas e abordagens maximalistas e redutivas para composição e cor. A coleção abrange 193 pinturas, subdivididas em várias séries e subgrupos. São consideradas hoje um dos primeiros grupos de obras de arte abstrata no mundo ocidental, e antecede, em vários anos, as primeiras composições não figurativas de seus contemporâneos na Europa.

Nos anos seguintes à conclusão de As pinturas para o templo, af Klint continuou a empurrar os limites de seu novo vocabulário abstrato, criando alguns de seus trabalhos mais incisivos. Hilma af Klint tinha uma visão de que seu trabalho contribuiria para influenciar não apenas a consciência das pessoas em geral, mas também sua extensão e a própria sociedade. No entanto, ela estava convencida de que seus contemporâneos não estavam preparados para percebê-los. Ela havia recebido ordens estritas dos “High Ones”, seus líderes espirituais, para não mostrar as pinturas a ninguém, e deixou expresso o desejo de somente exibir as obras 20 anos após sua morte. É difícil dizer se caso as obras tivessem sido expostas na época que foram criadas a artista teria ganhado o reconhecimento que tem obtido agora. Talvez ela entendesse as barreiras que haviam para uma mulher artista e acreditasse que a sociedade iria mudar e as artistas mulheres seriam reconhecidas e celebradas. De qualquer forma, Hilma af Klint era uma mulher a frente do seu tempo.
Na exposição do Guggenheim estão exibidas 63 obras desse grupo, dentre elas as três obras chamadas Altares, que estão expostas quase no final da exposição, no topo do prédio. Escolha perfeita da curadoria, que as colocou mais perto da luz, no “altar” do museu.

Segundo Bracey Bashkoff, diretor de coleções do museu e curador organizador da exposição, af Klint imaginou, por volta de 1930, instalar essas obras em um templo espiral, embora esse plano nunca tenha se concretizado. O que faz dessa exposição grandiosa, portanto, é justamente a perfeita coincidência entre os ideais metafísicos da artista e a concepção museológica de Rebay convergindo no espaço expositivo do Guggenheim, concebido como um templo.
Mais que isso, é a exposição ideal para se comemorar os 60 anos do prédio do museu, mostrando o poder que a arte e a arquitetura têm de criar uma experiência lúdica e significativa, refletindo sobre a nossa própria sociedade, como uma maneira de nos reconhecermos e nos expressarmos para o aperfeiçoamento da humanidade, assim como desejava Hilla Rebay.

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Renata Baltar

Mestre em História da Arte com foco em museologia pela City College of New York. Trabalhou no departamento de intercâmbio do MASP (Museu de Arte de São Paulo) e na curadoria do Whitney Museum of Art e do Metropolitan Museum of Art, em Nova York.

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