Arte brasileira

O Universo Afrofuturista de Paulo Nazareth

Por Paulo Varella - maio 6, 2025
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Paulo Nazareth (1977, Governador Valadares, MG) ocupa hoje uma posição singular no campo da arte contemporânea internacional. Com uma prática que tensiona os limites entre performance, instalação, fotografia e arte relacional, sua obra não apenas tematiza, mas vive os dilemas e fraturas de um mundo pós-colonial. Este artigo propõe uma leitura crítica e comparativa de sua produção, ancorada nas teorias da decolonialidade (Quijano, 2000; Mignolo, 2011) e do afrofuturismo (Eshun, 2003; Nelson, 2002), situando Nazareth em diálogo com artistas como Tania Bruguera, David Hammons e Yinka Shonibare.

1. Contexto Estético e Intelectual: Entre Atlântico Negro e Cosmopolitismo Marginal

Nazareth emerge no cenário artístico brasileiro em um momento de renovação das práticas artísticas nos anos 2000, quando a arte da performance ganha novas camadas discursivas. Sua formação na UFMG foi atravessada por um interesse pela escultura popular e pela materialidade do corpo como suporte de inscrição histórica. Porém, o que o diferencia não é apenas a temática afro-diaspórica, mas sua maneira de incorporar o próprio corpo como arquivo vivo das violências coloniais e dos fluxos migratórios globais.

Referenciando Paul Gilroy (1993) e sua noção de “Atlântico Negro”, Nazareth se coloca como um corpo em trânsito que carrega a memória da diáspora africana — não como metáfora, mas como vivência literal. Ao caminhar da América do Sul até os EUA, como na célebre série Caminhando com os pés sujos (2011–2013), o artista opera uma inversão epistemológica: a travessia migratória, geralmente associada à marginalização, torna-se here arte, denúncia e reencantamento.

Paulo Nazareth's performance
« Moinho de Vento / Windmil
Paulo Nazareth’s performance, Moinho de Vento / Windmil

2. A Performance como Dispositivo de Contestação

Diferentemente de outros performers latino-americanos como Regina José Galindo ou Guillermo Gómez-Peña, cuja poética muitas vezes se ancora em atos de sofrimento ou choque, Nazareth adota uma performance silenciosa, ritualística e processual. Seu caminhar não é um protesto imediato, mas um gesto político demorado, que ativa os espaços e corpos com os quais entra em contato.

Em Notícias de América (2011–2015), o artista propõe uma espécie de cartografia corporal do continente americano. Rejeitando o aparato institucional e a monumentalidade da arte de galeria, Nazareth articula uma performance expandida, próxima da noção de “arte relacional” de Nicolas Bourriaud (2002), mas revestida de um subtexto racial e de classe que problematiza as próprias categorias eurocêntricas da crítica de arte contemporânea.

Untitled, from Notícias de América series, 2011/2012
Untitled, from Notícias de América series, 2011/2012

3. Migração e Arquitetura da Identidade: O Corpo como Arquivo

Nazareth pertence a uma linhagem de artistas que concebem o corpo como arquivo, à semelhança de David Hammons nos EUA ou de Jimmie Durham na Europa. Contudo, ao contrário destes, que operam dentro de um mercado consolidado do norte global, Nazareth ancora sua prática na recusa da estetização excessiva. Suas imagens — muitas vezes borradas, descentradas ou mal iluminadas — desafiam as lógicas do consumo visual, forçando o espectador a lidar com o incômodo da opacidade (Glissant, 1997).

Seu corpo em trânsito, por vezes sem sapatos, coberto de poeira e carregando sacos de mercado, transforma-se em paisagem crítica. O artista não se posiciona como representante de uma “identidade negra” essencializada, mas como um sujeito errante que, ao deslocar-se, revela as cicatrizes invisíveis do colonialismo no espaço urbano, na linguagem e nas políticas de fronteira.

Paulo Nazareth

4. Afrofuturismo e Temporalidade: Uma Poética da Descontinuidade

Embora raramente se autodeclare um artista afrofuturista, a obra de Nazareth pode ser lida à luz deste movimento por sua maneira de manipular o tempo, criar contranarrativas e mobilizar tecnologias vernaculares para projetar futuros alternativos para os corpos negros. Seu trabalho se aproxima do afrofuturismo menos pelo aparato sci-fi e mais por uma postura ética e epistemológica: a recusa da linearidade histórica colonial.

Na série Antropologia do Negro (2014), o artista apresenta crânios estilizados em instalações que evocam laboratórios científicos. Essa obra dialoga diretamente com práticas de desumanização racial do século XIX e XX — especialmente a craniometria e a pseudociência racial europeia —, reatualizando-as como objetos de denúncia e reapropriação simbólica.

5. Comparações Críticas: Tania Bruguera, Yinka Shonibare e a Poética da Materialidade

Comparar Nazareth com Tania Bruguera revela divergências metodológicas marcantes. Enquanto Bruguera investe na performance como dispositivo de enfrentamento direto ao poder institucional (como no Tatlin’s Whisper), Nazareth prefere o deslocamento e a ambiguidade como táticas de resistência. Já com Yinka Shonibare, que revisita o colonialismo com roupas vitorianas feitas com tecidos africanos, Nazareth partilha uma crítica ao exotismo e à estética da diferença, mas com menos fetichização da forma e maior compromisso com o processo.

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Tania Bruguea Destierro (1998-1999), Encarnación del ícono Nkisi-Nkonde Arte de Conducta

A ausência de acabamento nas obras de Nazareth, seus cartazes rasgados, suas sacolas de plástico, seus vídeos caseiros, remetem mais à precariedade como escolha estética — um recurso que o aproxima de artistas como Cinthia Marcelle ou mesmo Hélio Oiticica, este último em sua fase da “antiarte”.

antropologia do negro 1 e 2
antropologia do negro 1 e 2

6. Técnica e Estética: A Anti-Obra como Estratégia

Ao rejeitar o fetiche do objeto artístico, Paulo Nazareth desafia diretamente o sistema de legitimação do mercado. A sua técnica — ou a sua anti-técnica — pode ser definida como uma ética da desmaterialização. Tal como propôs Lucy Lippard nos anos 1970, o artista atua na tensão entre arte e vida, priorizando o conceito, o processo e o gesto sobre o acabamento.

Isso não significa que não haja controle técnico. Ao contrário, a aparente precariedade de sua produção é minuciosamente pensada. Cada fotografia desfocada, cada vídeo tremido, carrega a intencionalidade de recusar a estetização do sofrimento negro, que muitas vezes serve ao consumo liberal.

7. Recepção Crítica e Mercado: A Internacionalização de um Corpo Político

Apesar de sua recusa ao sistema institucional em muitos momentos, Nazareth é hoje representado por galerias como Mendes Wood DM e teve obras adquiridas por instituições como o Pérez Art Museum Miami. Isso levanta uma pergunta crítica: como a arte de resistência é apropriada por instituições que historicamente fazem parte da maquinaria colonial?

Autores como Andrea Fraser (2005) já apontaram essa contradição: a crítica institucional frequentemente reforça o sistema que pretende denunciar. No caso de Nazareth, é possível argumentar que sua presença em museus não anula sua potência crítica, mas cria tensões que ele próprio mobiliza. Sua recusa em limpar os pés antes de entrar em feiras de arte, por exemplo, é performativa e simbólica: é a terra de Minas adentrando o mundo globalizado do capital.

8. Conclusão: Uma Poética do Incômodo

Paulo Nazareth constrói uma obra que não busca o conforto estético, mas a fricção política. Sua técnica se baseia na precariedade como linguagem, no deslocamento como epistemologia e na performance como denúncia. Ao mesmo tempo, sua inserção no sistema internacional da arte levanta debates importantes sobre os limites da crítica institucional.

Seus trabalhos são menos objetos e mais situações — provocando, revelando, tensionando. Em tempos de crescente estetização da política, Paulo Nazareth nos lembra que a arte pode, sim, ser um corpo sujo que caminha contra a corrente.

Referências Bibliográficas

  • Bourriaud, Nicolas. Estética Relacional. Martins Fontes, 2009.
  • Eshun, Kodwo. “Further Considerations on Afrofuturism.” CR: The New Centennial Review, 2003.
  • Fraser, Andrea. “From the Critique of Institutions to an Institution of Critique.” Artforum, 2005.
  • Gilroy, Paul. O Atlântico Negro: Modernidade e Dupla Consciência. Pallas, 2001.
  • Glissant, Édouard. Poética da Relação. Editora 34, 2011.
  • Lippard, Lucy. Six Years: The Dematerialization of the Art Object. University of California Press, 1973.
  • Mignolo, Walter. Desobediência Epistêmica: A Opção Decolonial e o Significado de Identidade em Política. 2011.
  • Quijano, Aníbal. “Colonialidade do poder e classificação social.” Revista Crítica de Ciências Sociais, 2000.
  • Nazareth, Paulo. Catálogos das exposições na Mendes Wood, Pinault Collection, Bienal de Veneza.

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