Robert Rauschenberg – “Monogram”
A técnica de assemblage, caracterizada pela junção de objetos diversos para formar composições tridimensionais, emergiu como uma das práticas mais inovadoras do século XX. Desde suas raízes nas experimentações cubistas até suas manifestações contemporâneas, o assemblage desafiou as convenções artísticas, incorporando elementos do cotidiano e questionando os limites entre arte e vida. Este artigo explora a evolução do assemblage, destacando artistas-chave e obras emblemáticas que moldaram essa técnica ao longo do tempo, com especial atenção às influências e manifestações no Brasil.
Embora o termo “assemblage” tenha sido formalmente incorporado ao léxico da crítica de arte apenas na segunda metade do século XX, suas raízes remontam ao cubismo sintético de Pablo Picasso e Georges Braque. Por volta de 1912, ambos os artistas começaram a incluir pedaços de papel de parede, jornais e materiais do cotidiano em suas composições, estabelecendo a base para a introdução de elementos não artísticos na obra de arte.
A verdadeira ruptura, no entanto, ocorreu com Marcel Duchamp e seus ready-mades. Obras como “Fonte” (1917), um mictório invertido assinado com pseudônimo, romperam com a ideia de que a arte deveria ser bela, original ou feita à mão. Duchamp deslocou o objeto cotidiano para o espaço artístico, conferindo-lhe novo significado através do contexto e da intenção.
Posteriormente, artistas do movimento dadaísta e surrealista, como Kurt Schwitters, Jean Arp e Man Ray, continuaram a explorar a justaposição absurda de objetos, buscando confrontar a lógica e a moralidade burguesas da Europa do pós-guerra. O uso de materiais efêmeros, orgânicos, industriais e até grotescos tornou-se uma marca dessas experimentações, criando o que hoje reconhecemos como um dos pilares conceituais do assemblage.
Em 1961, o Museum of Modern Art (MoMA) em Nova York realizou a exposição “The Art of Assemblage”, curada por William C. Seitz. Essa mostra foi fundamental para legitimar o assemblage como uma prática artística significativa, reunindo obras de artistas europeus e americanos que exploravam a técnica. Entre os participantes estavam nomes como Joseph Cornell, Robert Rauschenberg, Louise Nevelson e Kurt Schwitters.
A exposição destacou a diversidade de abordagens dentro do assemblage, desde as caixas poéticas de Cornell até as combinações provocativas de Rauschenberg, conhecidas como “combines”. Essas obras incorporavam objetos do cotidiano, como jornais, tecidos e peças de metal, criando composições que desafiavam as fronteiras entre pintura, escultura e instalação.
Nas décadas de 1970 e 1980, o assemblage se expandiu para além do objeto individual, incorporando o espaço como elemento constitutivo da obra. Artistas como Edward Kienholz, Betye Saar e David Hammons passaram a criar ambientes imersivos com objetos encontrados, intensificando o caráter político e narrativo da técnica.
Betye Saar, por exemplo, reconfigurou imagens estereotipadas da cultura negra americana, como na obra “The Liberation of Aunt Jemima” (1972), onde uma boneca carregando armas é colocada dentro de uma caixa com fundo de propaganda racista. Sua assemblage não apenas confronta a violência simbólica, como propõe uma reescrita radical da memória.
David Hammons, por sua vez, incorporou cabelo humano, papel alumínio e garrafas de bebida em obras que comentam as contradições da cultura afro-americana, sempre com ironia e contundência. Seu trabalho estabelece uma ponte importante com práticas brasileiras contemporâneas, como veremos a seguir.
Conhecido por suas caixas meticulosamente organizadas, Joseph Cornell criou mundos miniaturizados que evocavam memórias, sonhos e narrativas pessoais. Utilizando objetos encontrados, como mapas, brinquedos e imagens antigas, suas obras são consideradas precursoras do assemblage poético e intimista.
Rauschenberg expandiu os limites da arte ao integrar objetos cotidianos em suas obras, como em “Canyon” (1959), que inclui um travesseiro e uma águia empalhada. Seus “combines” desafiaram as distinções entre pintura e escultura, influenciando gerações subsequentes de artistas.
Nevelson é reconhecida por suas esculturas monumentais compostas por peças de madeira encontradas, pintadas uniformemente de preto ou branco. Suas obras, como “Sky Cathedral” (1958), exploram a repetição e a textura, criando composições que evocam arquitetura e espiritualidade.
Saar utiliza objetos encontrados para abordar questões de raça, gênero e espiritualidade. Sua obra “The Liberation of Aunt Jemima” (1972) recontextualiza imagens estereotipadas para desafiar narrativas racistas e empoderar a identidade negra.
Holley transforma materiais descartados em esculturas que refletem sobre a história afro-americana e a resiliência diante da adversidade. Suas obras incorporam objetos como arame farpado, madeira e metais, criando composições que evocam espiritualidade e resistência.
Bolande explora a interseção entre fotografia e escultura, criando assemblages que investigam percepção, memória e cultura visual. Seus trabalhos frequentemente utilizam objetos do cotidiano para questionar a relação entre imagem e realidade.
A técnica de assemblage, embora tenha se originado nos centros artísticos europeus e norte-americanos do século XX, encontrou no Brasil um terreno notavelmente fértil para expansão, ressignificação e reinvenção. Aqui, artistas se apropriaram de seus princípios — como o uso de objetos encontrados, a justaposição de materiais e a crítica às categorias tradicionais da arte — para desenvolver linguagens próprias, ancoradas em contextos locais de desigualdade social, religiosidade popular, cultura afro-indígena e urbanidade marginalizada.
De forma distinta dos artistas do Norte Global, que muitas vezes exploraram a assemblage a partir de uma perspectiva formal ou dadaísta, os brasileiros transformaram essa prática em gesto ético, político e simbólico. Trata-se de uma arte que une fragmentos do mundo à memória coletiva e individual, tornando visível o que o progresso frequentemente invisibiliza.
Durante as décadas de 1960 e 1970, em meio ao regime militar instaurado no Brasil, a arte passou a operar de forma crítica, mas velada, devido à repressão política. Nesse cenário, a assemblage tornou-se uma estratégia eficaz de resistência. Como apontam teóricos como Aracy Amaral e Ronaldo Brito, artistas passaram a incorporar objetos ordinários, resíduos urbanos e materiais de baixo custo, não apenas por necessidade técnica, mas como um posicionamento contra o elitismo das belas-artes e contra o autoritarismo do Estado.
A justaposição de materiais heterogêneos tornava possível denunciar, metaforicamente, a fragmentação do país e a violência institucionalizada. Ao mesmo tempo, essa abordagem permitia escapar à vigilância da censura, uma vez que o discurso artístico era mediado por camadas de interpretação simbólica.
Um dos nomes mais relevantes para a arte contemporânea brasileira, Hélio Oiticica (1937–1980), embora não classificado diretamente como artista de assemblage, incorporou seus fundamentos em diversos momentos de sua produção. Em obras como os célebres Parangolés, o artista usou tecidos, plásticos, palavras e objetos do cotidiano para transformar o corpo do espectador em parte integrante da obra.
Sua instalação Tropicália (1967) é talvez o exemplo mais emblemático: ao combinar areia, plantas tropicais, aparelhos de TV e habitações precárias, Oiticica cria um ambiente que é, ao mesmo tempo, instalação sensorial e crítica social. É possível perceber aí uma assemblage ambiental, onde a experiência do espaço substitui a contemplação do objeto.
Outro nome indispensável nessa história é o de Tunga (1952–2016). Com uma obra profundamente enraizada no simbólico, no ritual e na poética da matéria, Tunga incorporava elementos como cabelos, ossos, ímãs, ferro e vidro em suas instalações. Mais do que unir objetos, ele tensionava suas propriedades, criando interações instáveis que evocavam tanto a ciência quanto a mitologia.
Seu trabalho desloca a assemblage para o campo do sagrado e do inconsciente. Obras como À Luz de Dois Mundos (1998), apresentada no Louvre, demonstram como a justaposição de elementos aparentemente dissonantes pode gerar uma linguagem própria, não verbal, quase arquetípica. Tunga não “monta” objetos: ele cria atmosferas, dispositivos de transformação e estados de encantamento.
Nas últimas décadas, com o fortalecimento do discurso identitário e decolonial nas artes, artistas brasileiros passaram a utilizar a assemblage como ferramenta para resgatar memórias históricas, denunciar apagamentos e construir narrativas contra-hegemônicas.
É nesse contexto que se destaca a produção de Rosana Paulino. A artista utiliza tecidos, linhas, fotografias antigas e órgãos anatômicos artificiais em obras que costuram a memória negra feminina no Brasil. Em Assentamento(s) (2013), Paulino reconstrói imagens de mulheres negras escravizadas, interferindo sobre elas com bordados vermelhos, evocando tanto dor quanto ancestralidade. Sua obra se aproxima da de Betye Saar, mas com uma gramática visual marcada por tensões entre ciência, violência e espiritualidade.
Outro nome que merece atenção é Sonia Andrade, pioneira da videoarte no Brasil, que em diversas obras combinou objetos industriais, utensílios domésticos e próteses humanas, criando instalações críticas sobre o corpo feminino, a normatização e a opressão doméstica.
Com uma abordagem mais irônica, o artista Marcos Chaves também faz uso recorrente da assemblage, mas voltado à crítica urbana e cultural. Em Eu só vendo a vista (1996), ele inscreve essa frase sobre uma fotografia do Pão de Açúcar, ironizando a exploração turística e o valor simbólico da paisagem carioca. Sua obra, embora minimalista, parte do princípio da justaposição de signos — o texto e a imagem — para gerar tensão e reflexão crítica.
Importante também é observar como o assemblage não ficou restrito ao circuito institucional das artes. Nas periferias brasileiras, em feiras, mercados e altares domésticos, são inúmeras as manifestações espontâneas que utilizam objetos descartados para fins rituais, decorativos ou narrativos. Essa dimensão “popular” do assemblage se manifesta, por exemplo, nas esculturas de Geraldo Teles de Oliveira (GTO), artista autodidata mineiro que produzia totens e figuras híbridas a partir de ferro, madeira e objetos reciclados, criando pontes entre o sagrado e o precário.
Essas práticas, muitas vezes vistas como “arte bruta” ou “popular”, também precisam ser incorporadas às genealogias da assemblage no Brasil, pois demonstram como a técnica transcende o campo estético e torna-se parte da vida cotidiana, da religiosidade sincrética e da resistência cultural.
Tunga foi um dos artistas brasileiros mais reconhecidos internacionalmente. Sua obra é marcada por instalações e esculturas que combinam objetos diversos, como metais, vidros e tecidos, criando composições que exploram mitologia, alquimia e erotismo. Tunga utilizava a assemblage para construir narrativas complexas, muitas vezes envolvendo performances e interações com o público.
Oiticica foi um dos principais nomes do movimento neoconcreto no Brasil. Suas obras, como os “Parangolés”, incorporavam materiais do cotidiano, como tecidos e plásticos, convidando o espectador a interagir fisicamente com a arte. Embora não seja estritamente classificado como artista de assemblage, Oiticica utilizava princípios semelhantes ao combinar elementos diversos para criar experiências sensoriais e participativas.
Paulino é uma artista contemporânea que utiliza técnicas de assemblage para abordar questões de raça, gênero e memória histórica. Em obras como “Assentamento(s)”, ela reconfigura fotografias de mulheres negras do século XIX, costurando-as em tecidos e adicionando elementos simbólicos, como órgãos bordados, para ressignificar essas imagens e dar voz às mulheres retratadas.
A técnica de assemblage permanece uma forma vital de expressão artística, permitindo que artistas combinem materiais diversos para criar obras que desafiam convenções e provocam reflexão. Desde suas origens nas vanguardas do século XX até suas manifestações contemporâneas, o assemblage continua a evoluir, incorporando novas mídias e abordagens conceituais. No Brasil, artistas como Tunga, Hélio Oiticica e Rosana Paulino demonstram a riqueza e a diversidade das práticas de assemblage, adaptando a técnica às suas realidades culturais e sociais. Compreender a trajetória do assemblage é essencial para apreciar a complexidade e a relevância contínua dessa forma de arte.
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