Falsificação de obras de arte é uma prática que se estende há séculos. A História nos mostra inúmeros casos de artistas que se dedicaram à reprodução de pinturas, esculturas e outros artigos de autores renomados para enganar o Mercado de Artes e ganhar dinheiro com isso. Foi exatamente o que o holandês Han Van Meegeren fez.
Durante anos, o pintor se especializou em reproduzir obras do século XVII, mas foi reproduzindo o estilo de Johannes Vermeer que ele ganhou notoriedade.
Meegeren conseguiu enganar nada mais nada menos que Hermann Göring, um oficial nazista para quem ele entregou um suposto Vermeer, em 1943. Interrogado e preso pelo governo holandês por negar-se a revelar o proprietário original da obra, teve que confessar e provar ser ele mesmo um falsificador para escapar da condenação por traição e pena de morte.
Em 1946, logo após a segunda guerra mundial, soldados holandeses encontraram uma coleção imensa de obras de arte no vagão de um trem nazista, na Áustria.
Entre as obras estava um quadro intitulado “Cristo e a Adúltera” assinado por Vermeer. Naquele momento, a Allied Art Office fazia uma espécie de inventário, buscando recuperar o patrimônio artístico holandês e pensava estar diante de um quadro inédito do grande Vermeer.
Mas como esta obra tão valiosa foi parar nas mãos dos nazistas? Começava ali a investigação sobre um dos maiores falsificadores de obras de arte do mundo, o pintor Han Van Meegeren.
Van Meegeren nasceu em 1889, filho de pais católicos de classe média. Desde criança mostrava interesse pelo desenho, porém era proibido de praticar e frequentemente castigado por seu pai, a ponto de obrigá-lo a escrever cem vezes: “Não sei nada, não sou nada, não sou capaz de nada.”
Estudou arquitetura em Delft, a cidade natal de Vermeer. Apesar de não levar o curso a sério, provou ser um bom arquiteto ao assinar alguns projetos relevantes, inclusive a sede do clube de remo em Delft, que ainda existe. Rapidamente abandonou a arquitetura e inscreveu-se na escola de arte de Haia para aprofundar-se nas técnicas de desenho e pintura, especialmente o estilo da Idade de Ouro holandesa.
Já diplomado e professor de Desenho e História da Arte, Meegeren pintava e vendia pôsteres, cartões postais e pequenos quadros para complementar sua renda.
Em 1917, fez sua primeira exposição, com boa aceitação do público e sua primeira obra relevante foi O Cervo, que alcançou grande fama. Tornou-se um retratista talentoso, assinava suas obras e era bastante reconhecido na Europa.
Com o passar dos anos, o mercado de arte mostrava grande interesse por cubismo, surrealismo e linguagens modernas. Após sua segunda exposição, Meegeren deparou-se com uma crítica que dizia não encontrar nada inovador ou criativo em suas obras. Aquilo acabou com sua auto estima, levando o artista a um estado de ansiedade e depressão profunda.
Agora, ele estava determinado a provar ao mundo que podia não só copiar fielmente os grandes clássicos, como criar uma obra-prima superior aos mestres!
Em 1928, Han Meegeren mudou-se para o sul da França para se dedicar à reprodução fiel de obras clássicas.
Para fazer quadros do século 17 convincentes, ele mergulhou ainda mais nas biografias dos antigos mestres, destrinchando suas ocupações, inspirações, técnicas e assinaturas, além de pesquisar todos os materiais utilizados, desde a origem do pigmento para preparo das tintas (lápis-lazúli, chumbo branco, índigo e cinábrio), aos pincéis de cabelo de texugo, como os de Vermeer.
Comprou telas autênticas do século 17 e começou a pintar.
Como dar a um quadro o aspecto envelhecido de um original com mais de 300 anos?
Meegeren desenvolveu um tratamento químico para forjar craquelure, buracos de minhoca, verniz amarelado e sujeira, sendo que tudo que ele utilizasse teria que passar nos testes que os especialistas em arte realizavam antes de comprovar a autenticidade da obra.
Meegeren usava baquelite (um dos primeiros plásticos) para endurecer as tintas óleo durante a aplicação. Com a pintura pronta, a tela ia ao forno, para ficar ainda mais rígida. Depois de assada, ele quebrava a tela para aumentar as rachaduras e criar o efeito craquelure. Em seguida, passava tinta nanquim para preencher as rachaduras e escurecer a pintura toda.
Dos seus testes, surgiram: Lady Reading Music, baseada no legítimo Mulher de Azul Lendo uma Carta; e Lady Playing Music, baseada no legítimo Mulher com Alaúde de Vermeer. Essas obras não foram vendidas, mas atualmente estão no expostas no Rijksmuseum.
Han levou seis anos para ficar satisfeito com o resultado dos experimentos. E foi em 1936 que ele pintou “A Ceia em Emaús”, sua grande obra-prima. A inspiração para criar esta obra e atribuí-la a Vermeer foi o fato de os especialistas presumirem que Vermeer havia sido influenciado por Caravaggio enquanto estudava na Itália. Então, Meegeren usou como modelo a versão da Ceia de Michelangelo Merisi da Caravaggio em Emaús.
Com seu quadro pronto, Meegeren o entregou a um amigo advogado, afirmando ser um Vermeer genuíno e sugeriu que o mostrasse a Dr. Abraham Bredius, um conceituado historiador da arte e especialista em avaliação de obras antigas, que Meeregen deliberadamente desejava enganar, pelas mágoas do passado.
O quadro foi examinado com todos os testes químicos exigidos. O resultado? Uma entusiasmada nota na The Burlington Magazine, afirmando que o mundo estava diante da inédita obra-prima de Johannes Vermeer de Delft “A Ceia em Emaús”, pintada em 1660.
Com o intermédio de um mercador (e cúmplice), a pintura foi comprada pela Rembrandt Society por fl.520.000 (cerca de 5 milhões de euros hoje) e doada ao Museu Boijmans Van Beuningen em Rotterdam.
Em 1938, a peça a veio público com absoluto destaque em uma exposição especial do museu, que apresentava outros 450 antigos mestres holandeses, sendo “A Ceia de Emaús” considerado “o centro espiritual” de toda a exposição, apesar da presença de obras-primas de Rembrandt e Grünewald.
Ainda na França, Meegerer cria “Interior com jogadores de cartas” e “Interior com bebedores”, ambas exibindo a assinatura de Pieter de Hooch, além de “Última Ceia I” no estilo de Vermeer.
Meegeren retorna à Holanda, em 1939, à beira da Segunda Guerra Mundial. Com a ajuda de alguns cúmplices, ele criou e vendeu “A Cabeça de Cristo”, “A Última Ceia II”, “A Bênção de Jacó”, “Cristo e a Adúltera” e “A Lavagem dos Pés” – todos assinados como Vermeer.
O mercado de artes ia à loucura com tantas novas obras de Vermeer vindo a público e seus valores dobravam a cada descoberta, apesar da qualidade das falsificações cair brutalmente à medida que Meegeren se afundava em álcool e opióides, um fato especialmente observado em “A Lavagem dos Pés”.
A falsificação de “Cristo e a Adúltera” chegou, primeiramente, às mãos de Alois Miedl, um negociante de arte. Logo Miedl o vendeu a Göring, que chegou a expor o quadro em sua casa mas com o fim da ocupação nazista na Holanda, Göring tratou de esconder o quadro junto com sua coleção de 6.750 obras de arte no vagão de um trem, numa mina de sal austríaca.
Em 1945, quando as forças aliadas encontraram o acervo de Göring, encontraram também um recibo de venda que ligava o quadro a Han Van Meegeren.
Megeeren foi preso, acusado de colaborador nazista e saqueador de bens culturais holandeses, ameaçado pelas autoridades com a pena de morte. Encurralado, acabou confessando forjar pinturas atribuídas a Vermeer e Pieter de Hooch. A acusação, munida de todos os laudos técnicos que confirmavam a veracidade das obras, descartava a defesa de Meegeren, que parecia ser uma grande desculpa para fugir da sentença.
O próprio Meegeren sugeriu que lhe fossem concedidos os materiais e as condições necessárias (inclua às tintas e pinceis muito álcool e ópio) para ele criar, aos olhos de especialistas escolhidos pelo tribunal, uma falsificação perfeita. E assim surgiu “Jesus entre os doutores”, pintado no estilo de Vermeer na presença de dezenas de pessoas.
Ao mesmo tempo, o tribunal contratou um grupo internacional de especialistas para avaliar a autenticidade de outras oito pinturas. Após a minuciosa análise, foi determinada a composição química das tintas. Foi identificada a Baquelita, um componente químico fabricado no século 20, também encontrada engarrafada no estúdio de Meegeren. Portanto estava comprovado que as obras examinadas pela comissão foram na verdade fabricadas por Meegeren.
As acusações de colaboração com o nazismo foram retiradas e Meegeren foi acusado somente por fraude, o que lhe rendeu uma condenação de 1 ano de reclusão.
Van Meegeren nunca cumpriu sua sentença, pois em dezembro de 1947, apenas seis semanas após a condenação, sofreu dois ataques cardíacos e morreu, aos 58 anos.
Alguns estudiosos, como o jornalista científico Edward Dolnick, autor de “The Forger’s Spell: A True Story of Vermeer, Nazis, and the Greatest Art Hoax of the Twentieth Century”, afirmam que Meegeren fez isso por vingança ou como um ato de provocação aos críticos que menosprezaram seu trabalho.
Outros, como o escritor Jonathan Lopez, autor de “The Man Who Made Vermeers: Unvarnishing the Legend of Master Forger Han Van Meegeren”, apostam num plano perfeitamente arquitetado para ganhar dinheiro e sustentar uma vida luxuosa.
O pintor do século 17 é um dos principais artistas holandeses famoso hoje em dia por Moça com um Brinco de Pérola, obra que ganhou fama no livro de Tracy Chevalier e o filme com Scarlett Johansson e Colin Firth.
O mestre das luzes e proporções tornou-se alvo de Meegeren por razões específicas.
Os historiadores reconhecem lacunas significativas em sua biografia. Entre sua juventude e sua maturidade não há registro da vida e nem de obras do pintor. Some a isso o fato de o mundo conhecer somente 36 pinturas atribuídas a ele. Uma coleção bastante tímida para um artista tão talentoso.
Esses dois aspectos demonstram a inteligência de Meegeren ao escolher o nome de Vermeer para assinar suas obras. Faria sentido surgirem novos quadros de Vermeer neste particular momento da história, quando peças raras e cobiçadas eram escondidas por museus que tentavam proteger seu patrimônio durante a Guerra.
Para completar, alguns especialistas acreditavam que Vermeer foi influenciado por Caravaggio. Portanto, ao conceber “Cristo e Emaús”, Van Meegeren apresentou a possibilidade daquela obra ser fruto de Vermeer inspirado por Caravaggio.
A isca era perfeita!
Há quem diga que o fake Vermeer de Göring não foi vendido e sim trocado por 137 obras holandesas originais que eram parte da coleção de Göring, tornando Van Meegeren um herói nacional que salvou peças importantes da herança cultural holandesa.
Fato é que Han Van Meegeren tornou-se o segundo homem mais popular da Holanda, atrás apenas do primeiro-ministro. Toda a nação o considerava um vigarista engenhoso que enganou críticos e, mais importante, trapaceou o Hermann Göring.
Sua fama perdura até hoje, já que especialistas acreditam que outras tantas falsificações produzidas por ele estejam penduradas em coleções de arte em todo o mundo.
Os falsificadores de obras de arte continuam presentes no mercado. Nem mesmo as avançadas técnicas e tecnologias de investigação atuais inibem a atuação de quem busca dinheiro às custas da fama de artistas consagrados.
Nos últimos anos, escândalos em galerias famosas abalaram o mundo da arte, lançando uma sombra de dúvida sobre cada compra de uma obra-prima.
Hoje, o Fine Arts Experts Institute, na Suíça, é referência em análise de legitimidade de obras de arte. Segundo o diretor da instituição, Yann Walther, entre 70 e 90% das pinturas examinadas pelo Instituto são falsificações e até 50% das peças que circulam no mercado de arte são falsificações.
Já o crítico Michael Glover estimou, em 2010, que até 20% da arte nos principais museus do mundo ocidental não será atribuída ao mesmo artista em 100 anos. Os números parecem assombrar os amantes da arte, afinal, a expectativa de se deparar com uma obra original faz toda a diferença na experiência daquele que a aprecia.
O importante é não perder a fé naquilo que se vê, até que se prove o contrário.
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