Arte

O Gabinete Renascido: por que voltamos a colecionar o estranho

De fósseis a brinquedos excêntricos, a volta dos gabinetes de curiosidades mostra como o fascínio pelo bizarro nunca deixou de ser arte.

Por Paulo Varella - agosto 21, 2025
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No apartamento de um jovem colecionador em São Paulo, a estante de livros divide espaço com um crânio de resina fosforescente, um aquário vazio que abriga pedras trazidas de desertos latino-americanos e uma figura japonesa de olhos desproporcionais. O conjunto parece improvisado, mas foi pensado como vitrine: cada objeto conta uma história, mistura memória pessoal com exotismo cultural, ciência de superfície com ficção.

A cena não é isolada. Em Berlim, Londres e Nova York, proliferam interiores domésticos onde ossos falsos convivem com cristais, pôsteres de artistas independentes e fragmentos recolhidos em feiras de antiguidades. Em redes sociais, o gabinete se exibe em escala global: prateleiras lotadas de miniaturas, insetos preservados em acrílico, relíquias improváveis. O termo cabinet of curiosities voltou a circular, atualizado como estética vintage e também como atitude contra a previsibilidade da decoração minimalista.

Mas a ideia não é nova. No século XVI, quando navegadores europeus traziam da Ásia e das Américas animais dissecados, pedras raras e instrumentos científicos, as elites começaram a reunir esses fragmentos do mundo em salas privadas chamadas Wunderkammer. O que hoje chamamos de museu nasceu desses acervos particulares, onde o maravilhoso e o grotesco, o científico e o mágico, conviviam sem hierarquias.

Breve história dos gabinetes de curiosidades

Os primeiros gabinetes surgiram como manifestações de poder e conhecimento. Reunir objetos raros era afirmar domínio sobre a natureza e sobre territórios distantes. Francisco I de Médici, em Florença, mantinha um gabinete repleto de minerais, conchas e esculturas, em que a fronteira entre arte e ciência desaparecia. O jesuíta alemão Athanasius Kircher montou em Roma, no século XVII, um acervo que incluía múmias egípcias, fósseis, autômatos e instrumentos musicais exóticos. Já o dinamarquês Ole Worm organizava coleções que iam de esqueletos de animais a chifres de unicórnio — que mais tarde se descobriu serem de narvais.

O princípio era sempre o mesmo: reunir, em um único espaço, as maravilhas do mundo natural e do engenho humano. O gabinete era, ao mesmo tempo, biblioteca, laboratório e teatro de ilusões. Não existia ainda a separação rígida entre disciplinas, e a curiosidade era a força motriz. Cada objeto era menos importante por si só e mais valioso pelo efeito de espanto que causava ao visitante.

Com o tempo, muitos desses gabinetes se tornaram públicos, dando origem a museus de história natural e coleções artísticas. O Museu Ashmolean, em Oxford, fundado em 1683, foi o primeiro a se apresentar como herdeiro direto de um Wunderkammer. Em outras palavras, a ideia de que a cultura pode ser exibida, catalogada e compartilhada nasce do impulso de colecionar o estranho.

Fascínio pelo estranho e microeconomia do colecionismo

O retorno dos gabinetes de curiosidades não se explica apenas pela estética. Existe uma lógica econômica que sustenta esse fascínio. Em mercados saturados de objetos produzidos em massa, aquilo que foge ao padrão ganha valor. O estranho, o grotesco ou o raro funcionam como bens de distinção, reforçando o que Pierre Bourdieu chamaria de capital simbólico: possuir aquilo que poucos têm, mesmo que seja apenas uma pedra com formato inusitado ou um inseto emoldurado.

Do ponto de vista da microeconomia, o gabinete é uma resposta à escassez. Ao contrário da produção industrial, cada objeto estranho carrega a aura da singularidade. Esse caráter único reduz a possibilidade de substituição e justifica preços mais altos. É a mesma lógica que move nichos como a taxidermia artística, a venda de fósseis em feiras internacionais ou o mercado de arte outsider, onde peças sem autoria consagrada alcançam valores surpreendentes justamente por sua raridade.

O fenômeno dialoga também com tendências contemporâneas de consumo. Nos últimos anos, o colecionismo de brinquedos excêntricos, como Funko Pop ou Labubu, revelou que a economia da estranheza pode ser altamente lucrativa. O que une todos esses mercados é a capacidade de transformar a surpresa em valor econômico. O objeto não precisa ser belo no sentido clássico; precisa apenas provocar espanto, despertar curiosidade e parecer insubstituível.

Em última instância, o gabinete de curiosidades moderno é um microcosmo de oferta e demanda peculiar: quanto mais improvável o item, maior sua atratividade. Nesse cenário, a estética do insólito torna-se não apenas uma questão de gosto, mas também uma estratégia de valorização.

New World Wunderkammer por Amalia Mesa-Bains

Brasil e América Latina: colecionando o insólito

Na América Latina, o fascínio pelo insólito não é importação recente, mas herança cultural. Desde o período colonial, relicários barrocos, ex-votos e imagens sacras já desempenhavam o papel de pequenos gabinetes, acumulando milagres, narrativas e símbolos em miniaturas carregadas de devoção e teatralidade. Igrejas brasileiras guardam até hoje verdadeiros tesouros de ossos, relicários e esculturas híbridas que se aproximam da lógica do Wunderkammer: reunir, em um só espaço, ciência, fé e espetáculo.

Nas ruas, o colecionismo do estranho se manifesta em mercados populares. Feiras como a da Praça XV, no Rio de Janeiro, ou a do Largo da Ordem, em Curitiba, oferecem desde moedas coloniais até peças de taxidermia improvisada. O objeto curioso circula como mercadoria e como história, funcionando como lembrança, fetiche ou investimento. No México, o Dia dos Mortos mantém vivo um imaginário em que caveiras coloridas, esqueletos e miniaturas de túmulos são objetos de festa e devoção, misturando arte popular com humor macabro.

Na arte contemporânea, muitos criadores revisitarem diretamente essa tradição. Tunga construiu instalações que evocam gabinetes alquímicos, com ossos, líquidos e objetos híbridos que oscilam entre ciência e magia. Ernesto Neto, em outro registro, transforma a experiência do corpo em ambiente imersivo, mas também resgata a ideia de espaço ritualístico, semelhante a uma câmara de curiosidades. Jovens artistas latino-americanos exploram, cada um à sua maneira, o grotesco e o lúdico como parte de uma estética crítica.

Esse repertório mostra que, por aqui, o estranho nunca deixou de ser linguagem artística. Mais do que uma tendência importada da Europa, o gabinete renascido encontra na América Latina ecos de longa duração, que unem espiritualidade, festa popular e imaginação crítica.

O gabinete como metáfora do nosso tempo

Se no passado o Wunderkammer organizava o mundo a partir de fragmentos trazidos de viagens e descobertas científicas, hoje o gabinete ressurge como resposta a outro excesso: o das imagens digitais. Vivemos em um fluxo contínuo de feeds, timelines e arquivos intangíveis, que desaparecem tão rápido quanto surgem. Nesse cenário, o objeto físico — por mais estranho que seja — oferece um tipo de ancoragem. Segurar uma pedra irregular, um inseto preservado ou um boneco grotesco é sentir o peso do real em meio à volatilidade da tela.

O gabinete contemporâneo também funciona como metáfora do sujeito. Cada prateleira arrumada, cada coleção de fragmentos, é uma narrativa sobre identidade. No lugar de colecionar para impressionar príncipes e cortes europeias, coleciona-se hoje para se afirmar diante da comunidade digital: postar uma estante de fósseis, vinis raros ou miniaturas excêntricas é sinalizar pertencimento a tribos culturais específicas. O gabinete é, nesse sentido, um avatar material, um autorretrato feito de objetos.

Mas há uma dimensão crítica nesse movimento. Ao escolher o estranho, o grotesco ou o inútil como centro da coleção, o colecionador contemporâneo desafia a lógica utilitarista. É um gesto contra a homogeneização de gostos ditada pelo mercado de massa. O gabinete renascido afirma que valor não está apenas na funcionalidade ou na beleza padronizada, mas também naquilo que provoca desconforto e fascínio. Nesse sentido, funciona como antídoto contra o esquecimento e contra a monotonia estética.

O gabinete de curiosidades nunca desapareceu. Transformou-se, adaptou-se e encontrou novas formas de existência. Do Wunderkammer renascentista às prateleiras coloridas das redes sociais, o impulso de reunir o estranho permanece como constante na história da cultura. Se antes ele refletia a ambição de catalogar o mundo, hoje revela nossa necessidade de encontrar autenticidade em meio ao excesso de imagens digitais.

O fascínio pelo insólito, seja em feiras de antiguidades, em museus ou em coleções domésticas, mostra que ainda buscamos ser surpreendidos. O objeto curioso funciona como lembrete de que a arte pode nascer tanto do espanto quanto da beleza. E, em um tempo marcado pela repetição de imagens e pela padronização de gostos, a presença do grotesco e do bizarro adquire valor simbólico: ele nos devolve a sensação de singularidade.

O gabinete renascido é, portanto, mais do que moda. É um espelho de nosso tempo, uma metáfora da tentativa de organizar o caos contemporâneo através do acúmulo de histórias, memórias e afetos materializados. Em cada objeto estranho guardado numa prateleira, ecoa uma antiga pergunta: o que vale a pena ser preservado?

fonte:

Architectural Digest – Cabinet of Curiosities revival

Victoria & Albert Museum – Curiosity exhibitions

The New Yorker – Rediscovery of forgotten surrealist

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