O mito de Apolo é um dos mais importantes e conhecidos da Mitologia greco-romana. Irmão gêmeo de Ártemis, filho de Zeus e Leto, reconhecida pelos romanos por Latona, a deusa noturna.
Imperadores e monarcas apreciaram e se utilizaram de seus valores simbólicos, enquanto artistas e poetas destacaram e interpretaram ao longo de séculos sua personalidade complexa, ligada aos aspectos humanos, à sociedade e à natureza.
Versátil e venerado, Apolo é um dos personagens mitológicos mais comentado por Homero[1], ao longo dos Cantos da Ilíada[2] (por volta do século IX a.C.). Ao longo do poema ele recebe sacrifícios, libera sua ira sobre os inimigos, é enganador, provoca discórdia entre os deuses, inspira e protege os heróis troianos. No campo de batalha, protege os corpos dos combatidos, envolvendo-os em nuvem negra, dispersando os inimigos. Enquanto atua, até mesmo fisicamente, para derrubar grandes heróis gregos: “Por trás se pondo do herói, com a mão espalmada, nos ombros e nas espáduas lhe bate, causando-lhe aos olhos vertigem. O Capacete, também, Febo Apolo da fronte lhe tira.” (HOMERO, Ilíada, XVI, 791 – 793, 2015, p. 360)
Na gravura, Apolo de Belvedere[3], o artista e gravurista Hendrick GOLTZIUS (1558 – 1617) produz um autorretrato desenhando a famosa escultura, que descoberta e exposta no período do Renascimento italiano, foi considerada a representação ideal da perfeição masculina e reproduzida inúmeras vezes por meio de gravuras na clássica postura em que Apolo se apoia em um tronco onde se enrosca a serpente Píton.
Goltzius é considerado o gravador mais influente do final do século XVI, durante a arte Maneirista, produzida nos Países Baixos.
O Maneirismo surgiu na Itália em meados do século XVI e prolongou-se até por volta de 1620. Ligado à leveza, graça, movimento, colorido, elegância, artifícios e sofisticação, o estilo era conhecido por apresentar distorção e afetação, longe do equilíbrio e perfeição da arte clássica e do estilo Renascentista. Com a Reforma Protestante, Haarlem e Utrecht tornaram-se os maiores centros de pintura maneirista, nos Países Baixos do Norte, onde os assuntos religiosos foram substituídos pela natureza morta; paisagens e cenas de gênero.
Em Haarlem, na Holanda do Norte, a partir de 1577, Goltzius, de origem alemã, trabalhou como designer e gravador, destacando-se, de início, na produção de retratos, alguns gravados em pequenas, placas ovais de metais preciosos. A partir de 1582, o artista abriu sua própria empresa editorial, lançando uma série de gravuras sobre as recompensas do trabalho, além da publicação de desenhos de diferentes artistas do seu tempo, destacando-se no norte dos Países Baixos.
Em 1585, o estilo elegante e sensual de Bartholomeus SPRANGER (1546 – 1611) influenciou o desenho de Goltzius, levando-o para uma nova técnica na composição das gravuras Maneiristas, marcadas por figuras mitológicas, bem ao gosto da Escola de Fontainebleau[4].
Após a viagem à Itália entre 1590 e 1591, além de reproduções dos mestres italianos, Goltzius desenvolveu um estilo mais clássico nos seus projetos, trabalhando com temas religiosos.
A partir de 1600, Goltzius virou-se para a pintura, deixando sua oficina ao enteado Jacob MATHAM (1571 – 1631) e nas mãos dos extremados alunos. Muitas gravuras foram terminadas e publicadas mais tarde por Matham, que se tornaria depois o próprio artista produtor.
Ao lado de Matham, Jan SAENREDAM (1565-1607) gravou a maior parte dos projetos do antigo mestre, famoso pela técnica inovadora, cujas impressões foram imensamente procuradas por colecionadores.
A maioria das gravuras produzidas por Hendrick Goltzius foram catalogadas, editadas e publicadas por Johann von Bartsch[5] e Friedrich Hollstein[6]. Responsáveis também pela catalogação de gravuras produzidas durante os séculos XV ao XVII por inúmeros artistas flamengos, alemães e italianos.
Deus da música, da poesia, da eloquência e das artes, Apolo é representado na maioria das vezes tocando a lira de ouro. Quando o sol se aproxima do poente, no momento em que os gregos se recolhem nas tendas armadas nas areias de Troia, na grande sala de Zeus, os deuses se reúnem para conversar e beber o doce néctar servido pela própria Hera. “Todos, prazer encontravam na lira de Apolo, belíssima, quando, com as Musas, com voz deliciosa, alternados cantavam.” (HOMERO, Ilíada, I, 603 – 511, 2015, p. 71)
A Antiguidade clássica e artistas dos períodos Renascentista, Maneirista, Barroco, Rococó e Neoclássico mostraram-no como um deus de beleza perfeita, símbolo da harmonia entre corpo e espírito.
De Apolo, áureo são a veste e o alfinete
e a lira e o arco Líctio e a aljava,
áureas também as sandálias, pois Apolo é de muito ouro
e de muitas posses. Isso poderia ser testemunhado por Píton.
Não só é sempre belo, mas também sempre jovem. Nunca sobre as
faces feminis de Febo surge, de modo algum, uma penugem,
(HINOS DE CALÍMACO: A Apolo, 32-37, 2012, p. 233)
O mito de Apolo desempenhava dois lados da natureza humana, o bem e o mal. Podia causar o bem trazendo boa fortuna e alegria, e quando apaixonado movia céus e terra por seu amor. No entanto, o deus da agricultura e dos rebanhos, protetor da lei e da ordem e deus das artes e da ciência, usou de sua pontaria e flechas mortais para pôr fim à vida de quem quer que lhe faltasse o respeito.
Na gravura, Apolo e a invenção da música, Gerard DE LAIRESSE (1641 – 1711) representa Apolo com uma tocha acesa entregando para a musa os documentos sobre a invenção da música. Com um vestido decorado com notas musicais ela se apoia sobre a base de uma coluna, decorada com outras musas tocando diferentes instrumentos musicais. Ao fundo Hefesto[8] e os Ciclopes preparam os metais. À direita o autorretrato do artista desenhando a alegoria.
Original de Liége, na Bélgica, DE LAIRESSE (1641 – 1711) instalou-se em Utrecht e depois em Amsterdã, trabalhando no período de ouro da arte holandesa, por volta de 1584 a 1702, conhecido por Século de Ouro dos Países Baixos, no qual a região se tornou uma das mais ricas do mundo, com o florescimento do comércio, da ciência e da cultura.
A cultura patrocinada por ricos comerciantes passou por extremo desenvolvimento, produzindo grandes nomes[9] de artistas no período. A pintura de natureza-morta, de paisagem e de marinha, cenas de gênero[10], retratos individuais e retratos de grupo foram desenvolvidos e amplamente consumidos pela crescente classe média abonada.
Admirador de Rembrandt, o estilo de sua pintura seguiu as tendências do Barroco, incorporando, posteriormente, a arte clássica que chegava da corte francesa, com temas mitológicos e históricos. Gravurista produziu inúmeras ilustrações espalhadas atualmente por vários acervos.
Impossibilitado de pintar com problemas de visão, De Lairesse se dedicou a escrever sobre a arte do desenho e da pintura. Admirado no século XVIII, por seus livros e inúmeros seguidores de sua obra artística, seu nome foi esquecido a partir de meados do século XIX.
HINOS DE CALÍMACO. In: WERNER, Erika. Os hinos de Calímaco: poesia e poética. São Paulo: Humanitas, 2012. 464 p. p. 223-268.
HOMERO. Ilíada. Tradução e introdução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. 536p.
MARTINI, F. R. Sans. Belo Apolo: apaixonado e vingativo. Interfaces da Educação., Paranaíba, v.9, n.25, p. 423-451, 2018.
OVIDIO. Metamorfoses. Tradução Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34, 2017. 909 p.
RIJKSMUSEUM, Amsterdã, Holanda. Disponível em: https://www.rijksmuseum.nl/en/search/objects?p=5&ps=12&f.principalMakers.name.sort=Gerard+de+Lairesse&st=Objects&ii=8#/RP-P-OB-46.773,56 Acesso em: 05 jul. 2019.
STATENS MUSEUM FOR KUNST, Copenhagen, Dinamarca. Disponível em: https://www.rijksmuseum.nl/en/collection/RP-P-OB-10.350 Acesso em: 03 mai. 2019.
[1] Homero (ca. IX-VIII a.C.) é o autor dos poemas heroicos Ilíada e Odisseia, que datam em torno do fim do século IX a.C., em que relata as aventuras dos heróis Aquiles e Odisseu, envolvidos com os deuses.
[2] A Ilíada relata o cerco dos gregos à cidade de Tróia, enquanto comenta a respeito dos deuses do Olimpo, que tomam parte na trama, ajudando diferentes lados, nos cinquenta dias de uma guerra de dez anos.
[3] A escultura em mármore do Apolo de Belvedere faz parte do acervo de um dos Museus Vaticanos, em Roma. A escultura é considerada uma cópia romana de um original grego do período clássico, determinada por sua posição, em que uma das pernas vem à frente. A escultura, copiada por diversas vezes, principalmente, por gravuristas nos séculos XVI e XVII, foi descrita por Johann Joachim Winckelmann (1717-1768), historiador de arte e arqueólogo alemão, na obra História da Arte Antiga, lançada em 1764, transformando-a, no século XVIII, um símbolo da arte produzida na Antiga Grécia.
[4] Da Escola de Fontainebleau (ca. 1530-1610) saíram importantes nomes que influenciaram a arte Maneirista, entre eles: Francesco PRIMATICCIO (1504-1570) e François CLOUET (ca. 1510-1572) e Benvenuto CELLINI (1500-1571)
[5] Entre 1802 e 1821, Johann Adam Bernhard von Bartsch (1757-1821) publicou, em francês, vinte e um volumes com o título: Le Peintre Graveur. A obra de Bartsch foi reimpressa diversas vezes. Parte das gravuras foram republicadas no século XX, como parte do livro ilustrado, The Illustrated Bartsch, lançado em New York, pela Abaris Books, em 1978. Bartsch é responsável por desenvolver o sistema de numeração definitiva, com seu próprio nome seguido de um número.
[6] O primeiro catálogo de Xilogravuras e gravuras flamengas e holandesa produzidas entre 1450 e 1700 documentado por Friedrich Wilhelm Hollstein (1888-1957) foi lançado em 1949/53 com o título: Dutch and Flemish etchings, engravings and woodcuts 1450-1700. A numeração Hollstein foi adotada nas casas de leilão e demais impressores. A nova série Hollstein foi reimpressa em 1993, com o objetivo de atualizar e aperfeiçoar as informações contidas nos volumes anteriores e inclui figuras-chave do estilo Maneirista.
[7] Documentado por Friedrich Wilhelm Hollstein (1888-1957) foi lançado em 1949/53 com o título: Dutch and Flemish etchings, engravings and woodcuts 1450-1700. A numeração Hollstein foi adotada nas casas de leilão e demais impressores.
[8] Chamado pelos romanos por Vulcano, Hefesto é o deus do fogo e da metalurgia. Responsável por forjar os mais belos objetos e instrumentos para os deuses. Sua figura é grotesca devido a uma queda, que o deixou manco. Os Ciclopes trabalhavam como ferreiros para ele.
[9] Entre os grandes nomes da arte barroca nos Países Baixos, encontram-se: Peter Paul RUBENS (1577-1640), REMBRANDTHarmenszoon van Rijn (1606-1669) Johannes VERMEER (1632-1675), Jacob van RUISDAEL (ca. 1628-1682) Jan van GOYEN (1596-1656) e Frans HALS (ca. 1580-1666).
[10] Cenas da vida cotidiana, do mundo do trabalho e dos espaços domésticos, chamadas de cenas de gênero, dominaram a pintura holandesa do século XVII.
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