Artigos Acadêmicos

O Neoclássico e os Cantos XXII ao XXIV da Ilíada


Aquiles segue na aniquilação dos inimigos. Troianos e aliados correm em busca dos muros protetores de Troia. Somente Heitor permanece do lado de fora.

No alto da muralha, ao visualizarem Aquiles correndo em direção à grande entrada, Príamo implora ao filho que se proteja.  

Arrancando os brancos cabelos, o velho rei, clama para que Heitor desista, enquanto Hécuba, ao seu lado, se põe a chorar.

Mas, Heitor continua irredutível, disposto a combater o terrível e colérico Aquiles, que avança ao longe em sua direção.

No entanto, ao ver mais de perto, a armadura de bronze dourada e a hasta longa que nas mãos Aquiles segura, um tremor toma-lhe de assalto e correndo se põe, afastando-se do portão seguro.

Três voltas são dadas com Aquiles em seu encalço, até que os deuses, que observam a triste cena, resolvem intervir e acelerar o Destino.

Atena, com a aprovação de Zeus, desce do Olimpo e, assumindo a forma do irmão de Heitor, Deífobo, incita-o a parar para descansar e enfrentar Aquiles, enquanto fala aos ouvidos do outro para se preparar.

Heitor agradecido e fortalecido pelos conselhos do irmão, avança guiado e iludido por Atena. Sua lança, no entanto, ao bater no escudo, trabalhado por Hefesto, é repelida. E somente, ao gritar pela arma do irmão descobre a cilada e “no coração tudo Heitor compreendeu, e a si próprio, então, disse: ‘Pobre de mim! É bem certo que os deuses à morte me votam.” (HOMERO, Ilíada, XXII, 296-297, 2015, p. 457)

Com a morte inevitável, arrancando a espada, investe contra Aquiles, mas a armadura mais uma vez repele o ataque.

Do mesmo modo, Aquiles arremete a longa lança de freixo, enterrando-a no tenro colo descoberto de Heitor. Tombado na areia, antes de baixar ao Hades, o príncipe troiano soube que seu corpo seria atirado aos cães e jamais devolvido à família.

Disposto a maltratar o corpo sem vida de Heitor, ainda irado a lembrar-se de Pátroclo insepulto ainda, Aquiles se prepara para arrastá-lo.

Domenico CUNEGO (1724/25[2]-1803) após Gavin HAMILTON[3] (1723-1798) Aquiles arrasta o cadáver de Heitor atrás de sua carruagem, 1766. Gravura, 44,1×62,6.

Hamilton representa o instante vitorioso de Aquiles que, após ultrajar o corpo de Heitor, se prepara para dar voltas ao redor dos muros de Troia. Ao fundo, à direita, a família do príncipe Troiano se desespera.  

Enquanto os gregos se abrigam junto as naus, os Mirmídones são convocados a lamentar a morte de Pátroclo. Junto à tenda, colocando as mãos sobre o corpo do amigo, Aquiles lhe fala:

Pierre LACOUR (1745-1814) (Escola de) Aquiles deita o corpo de Heitor aos pés de Pátroclo, ca. 1769. Óleo sobre tela, 111×147. Depositado na Ecole Nationale Supérieure des Beaux-Arts de Paris, Paris, França.

Natural de Bordeaux, Lacour estudou por volta de 1764/65 em Paris com o pintor Neoclássico Joseph-Marie VIEN[4]. Premiado no concurso do Prix de Rome, viveu anos em Roma. Em 1772 Lacour retornou a França e entrou para a Académie nationale des sciences, belles-lettres et arts de Bordeaux, tornando-se professor logo depois, e em 1801 fundou o Musée des beaux-arts de Bordeaux.  

Jean Joseph TAILLASSON (1745-1809) Aquiles exibindo o corpo de Heitor aos pés de Pátroclo, 1769. Óleo sobre tela, 147x178x10. Krannert Art Museum, Champaign, Illinois, EUA.

Natural da região de Bordeaux, Taillasson, tal como Lacour e outros tantos jovens do período, frequentou o estúdio em Paris do pintor Neoclássico Joseph-Marie Vien, e fez parte dos artistas que participaram da competição do Grand Prix de Rome de 1769, com o tema histórico: Aquiles exibindo o corpo de Heitor aos pés de Pátroclo. Em Roma de 1773 a 1777, Taillasson desenvolveu o estilo neoclássico que o acompanhou no retorno a França. Membro da Académie Royale de Peinture et de Sculpture a partir de 1784, participou regularmente do Salão de Paris, com obras apoiadas na mitologia.

Joseph-Benoît SUVÉE (1743-1807) (Escola de) Aquiles coloca o cadáver de Heitor aos pés do corpo de Pátroclo, ca. 1769. Óleo sobre tela, 111×144. Musée du Louvre, Paris, França.

Flamengo, nascido em Bruges, na Bélgica, Suvée chegou a Paris com apenas dezenove anos. Vencedor de uma das competições do Grand Prix de Rome, foi para Roma, por volta de 1772, permanecendo até 1778. Nomeado para a Académie Royale de Peinture et de Sculpture ao retornar a França, Suvée foi empossado como diretor em 1792 e voltou para a capital italiana em 1801 até sua morte.

Joseph Barthélemy, conhecido por LE BOUTEUX (1742- ca. 1791) Aquiles deita o corpo de Heitor aos pés de Pátroclo, 1769. Óleo sobre tela, 110×145. Depositado na Ecole Nationale Supérieure des Beaux-Arts de Paris, Paris, França.


Natural de Lille, quase fronteira com a Bélgica, aluno da Académie Royale de Peinture et de Sculpture, Le Bouteux, participou com o colega Pierre LATOUR na competição do Grand Prix de Rome em 1769.  Aos vinte e sete anos foi o vencedor do tema e partiu para Roma em 1771, juntando-se, posteriormente com os colegas: Jean-Joseph TAILLASSON e Joseph Benoît SUVÉE entre outros. 

Com a Aurora, os preparativos para o enterro de Pátroclo se iniciam. Troncos são depostos, onde Aquiles idealiza a sepultura do amigo e a sua própria. Ao redor, os amigos se posicionam. Libações são produzidas e animais são degolados. Em ação desprezível são sacrificados doze meninos, filhos de famílias troianas. Ateado o fogo, os ventos Zéfiro e Bóreas são chamados para atiçarem as labaredas, as quais consomem o prezado amigo até o dia seguinte.

Jacques-Louis DAVID[5] (1748-1825) O Funeral de Pátroclo, 1778. Óleo sobre tela, 94×218.  National Gallery of Ireland, Dublin.

Em Roma após a conquista do Prix de Rome e ambicioso por mostrar o domínio do tema no estilo Neoclássico, David enviou esse esboço à óleo para parecer da Académie Royale de Peinture et de Sculpture em Paris em 1778.

A pintura representa o Canto XXIII da Ilíada, o qual trata dos Prêmios em Honra de Pátroclo. O formato horizontal amplia o cenário do acampamento grego na praia. O corpo de Pátroclo acaba de ser colocado sobre a esquife junto ao amontoado de lenha e Aquiles, com o manto vermelho, apoia a cabeça do amigo.  À direita, se encontra o cadáver de Heitor, novamente amarrado no carro e à esquerda um dos meninos troianos está sendo sacrificado, enquanto outros já estão sendo levados para a pira no alto.

No raiar do segundo dia após as cinzas de Pátroclo serem colocadas em urna de ouro, amargurado, Aquiles arrasta o corpo de Heitor por três vezes ao redor do local da pira já extinta. A despeito dos maus tratos, o corpo de Heitor se mantém inviolado, protegido por Apolo.

Louis GALLAIT (1810-1887) Aquiles arrastando o corpo de Heitor, ca. 1833. Desenho a pincel em aguada cinza, com caneta e tinta cinza e marrom, 47x 65,7. British Museum, Londres, UK.

Pintor e gravador, Gallait nasceu em Tournai, na Bélgica. Um dos primeiros artistas belgas a migrar para a pintura histórica e mitológica no estilo neoclássico. Mas a partir da década de 1840, instalado em Bruxelas, sua pintura já tendia para o Romantismo e posteriormente para o Realismo. Foi eleito diretor e presidente da Académie Royale des Beaux-Arts, atual Académie royale des sciences, des lettres et des beaux-arts de Belgique

O desenho mostra o corpo de Heitor arrastado na areia e protegido por Apolo, enquanto Aquiles circunda o túmulo, segundo suas ordens – ainda pouco elevado – no local à volta da pira extinta.

Alguns dos indignados deuses enviam Íris ao local onde Príamo chora, para dizer-lhe que deve pagar um resgate pelo filho. Imediatamente, ansioso o velho rei concorda e segue em direção à tenda de Aquiles acompanhado por Hermes[6], que ao chegar próximo aos guardas, um sono agradável incute.

Príamo suplica o retorno do corpo de Heitor e relembra-o que tem a mesma idade do velho pai, Peleu.

Wilhelmus Petrus van GELDORP (1832-1900) Príamo pede a Aquiles o corpo de Heitor, 1870.  Gravura, 53,5×39,5. Rijksmuseum, Amsterdam, Holanda.
Gavin HAMILTON (1723-1798) Príamo implorando a Aquiles pelo corpo de Heitor, 1775. Esboço a óleo., 63,5×99,1. Tate Britain, Londres, UK.

Esse óleo é uma das versões preliminares produzidas por Gavin Hamilton com o tema da Ilíada, em que representa o momento em que Aquiles começa a ceder à compaixão, pegando na mão de Príamo, prostrado aos seus pés. “do belo trono se ergueu, pela mão toma o velho monarca, da branca barba condoído, condoído da nívea cabeça” (HOMERO, Ilíada, XXIV, 514-515, 2015, p. 505)

A versão maior não chegou a ser produzida, mas o assunto ficou conhecido por meio da gravura – Príamo resgata o cadáver de Heitor[7] – produzida por Domenico CUNEGO (1724/25-1803) no mesmo ano.

A fúria de Aquiles é superada durante a refeição oferecida ao velho monarca. Finalmente o herói percebe que faz parte da vontade dos deuses. Com saudades do pai, longe da pátria, sem o amigo, que a morte de Heitor não alterou, Aquiles se dá conta da sua mortalidade.

Guardado ainda por Hermes, Príamo finalmente retorna à Troia com o corpo de Heitor, ao raiar da Aurora. “Antes de todas, atiram-se ao carro do leito funéreo, arrepelando os cabelos, a esposa querida e a mãe velha. Chora ao redor todo o povo, enquanto elas o rosto lhe afagam.” (HOMERO, Ilíada, XXIV, 709-710, 2015, p. 510)

Gavin HAMILTON (1723-1798) Andrômaca lamentando a morte de Heitor, ca. 1759. Esboço a óleo sobre tela, 64.20×98.50. National Galleries of Scotland, Edinburgh, Escócia.

No ambiente fúnebre Hamilton adiciona Helena, Príamo e Hécuba transpassados pela dor; os irmãos mais jovens de Heitor e Andrômaca debruçada sobre o esposo.

  

Depois do desabafo de Hécuba, Helena lamenta:

No décimo dia, sobre a pira armada, o corpo de Heitor é colocado e a fogueira acesa, que arde até o dia seguinte. Em urna de ouro recolhem os ossos do irmão, levada ao túmulo cavado.


REFERÊNCIAS

BRITISH MUSEUM, Londres, UK. https://www.britishmuseum.org/collection/object/P_1990-1109-141 Acesso em 10 jul. 2022.

ECOLE NATIONALE SUPÉRIEURE DES BEAUX-ARTS DE PARIS,Paris, França.   Disponível em: http://www.ensba.fr/ow2/catzarts/voir.xsp?id=00101-11226&qid=sdx_q0&n=4&sf=&e= Acesso em 10 jul. 2022.

ECOLE NATIONALE SUPÉRIEURE DES BEAUX-ARTS DE PARIS,Paris, França. Disponível em: http://www.ensba.fr/ow2/catzarts/voir.xsp?id=00101-11225&qid=sdx_q0&n=4&sf=&e= Acesso em 10 jul. 2022.

HOMERO. Ilíada. Tradução Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin & Companhia das Letras, 2017. 715 p.

HOMERO. Ilíada. Tradução Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. 536 p.

KRANNERT ART MUSEUM, Champaign, Illinois, EUA. Disponível em: https://collection.kam.illinois.edu/objects-1/portfolio?records=90&query=sort_Artist%20has%20words%20%22TAILLASSON%22%20and%20disp_Obj_type%20%3D%20%22Painting%22&sort=9 Acesso em 10 jul. 2022.

METROPOLITAN MUSEUM OF ART, Nova Iorque, EUA.  Disponível em:https://www.metmuseum.org/art/collection/search/817569 Acesso em 10 jul. 2022.

MUSÉE DU LOUVRE, Paris, França. Disponível em: https://collections.louvre.fr/ark:/53355/cl010066338 Acesso em 10 jul. 2022.

MUSÉE DU LOUVRE, Paris, França. Disponível em: https://collections.louvre.fr/ark:/53355/cl010053155 Acesso em 10 jul. 2022.

MUSÉE DU LOUVRE, Paris, França. Disponível em: https://collections.louvre.fr/ark:/53355/cl010053149 Acesso em 10 jul. 2022.

NATIONAL GALLERY OF IRELAND, Dublin, Irlanda. Disponível em: http://onlinecollection.nationalgallery.ie/objects/8188/the-funeral-of-patroclus Acesso em 10 jul. 2022.

NATIONAL GALLERIES OF SCOTLAND, Edinburgh, Escócia. Disponível em:   https://www.nationalgalleries.org/art-and-artists/5683/andromache-bewailing-death-hector Acesso em 10 jul. 2022.

RIJKSMUSEUM, Amsterdam, Holanda. Disponível em: http://hdl.handle.net/10934/RM0001.COLLECT.339122 Acesso em 10 jul. 2022.

RIJKSMUSEUM, Amsterdam, Holanda. Disponível em:http://hdl.handle.net/10934/RM0001.COLLECT.116235 Acesso em 10 jul. 2022.

TATE BRITAIN, Londres, UK. Disponível em: https://www.tate.org.uk/art/artworks/hamilton-priam-pleading-with-achilles-for-the-body-of-hector-t00864 Acesso em 10 jul. 2022.


[1] Vaso pequeno para armazenar óleos perfumados, o Lécito apresenta a forma cilíndrica e delicada; uma alça e pescoço fino.  

[2]     Existem discrepâncias em relação à data de nascimento do artista gravador Domenico CUNEGO (1724/25-1803) indicada em diferentes museus e junto à sua biografia, por volta de 1723/1727.

[3]     Saiba mais de Gavin HAMILTON (1723-1798) em: https://arteref.com/artigos-academicos/a-pintura-neoclassica-de-gavin-hamilton/

[4] Saiba mais sobre Joseph-Marie VIEN[4] (1716-1809) em: https://arteref.com/artigos-academicos/joseph-marie-vien-neoclassicismo-franca/

[5] Saiba mais sobre Jacques-Louis DAVID (1748 -1825) em: https://arteref.com/artigos-academicos/expansao-neoclassica-seculo-xviii/

[6]     Mensageiro e intermediário dos deuses, filho de Zeus e Maia. Inventor da lira e da flauta, entregues para Apolo em troca do caduceu e o dom da adivinhação.

[7] Domenico CUNEGO (1724/25-1803) após Gavin HAMILTON (1723-1798). Príamo resgata o cadáver de Heitor, 1775. Gravura, 43.3×60.3. Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, EUA.  Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/817569 Acesso em 10 jul. 2022.

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Fatima Sans Martini

Mestre em Artes Visuais com Abordagens Teóricas, Históricas e Culturais pela UNESP. Pós-graduação em História da Arte pela FAAP-SP. Formada em Artes Plásticas. Experiência profissional: Projetista em Design de Interiores. Experiência acadêmica: nas disciplinas de Projetos, Desenho, História do Mobiliário e História da Arte nos cursos de Arquitetura e Design de Interiores. Professor das disciplinas de Estética e História da Arte Mundial e Brasileira no Curso de Artes da Unimes, Universidade Metropolitana de Santos, SP

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