Artigos Acadêmicos

O início do Neoclassicismo na França com Joseph-Marie VIEN

Conheça seu percurso artístico, técnica e importância na história do movimento neoclássico.

Por Fatima Sans Martini - setembro 20, 2021
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Se o escocês, Gavin HAMILTON (1723-1798) e o tcheco Anton Raphael MENGS (1728-1779) influenciaram o estilo neoclássico entre seus contemporâneos, Joseph-Marie VIEN (1716-1809) foi precursor do estilo junto aos franceses, produzindo uma série de gravuras e pinturas mitológicas impregnadas de graça e beleza em cenários arquitetônicos cuidadosamente elaborados. 

Com o prêmio obtido no Prix de Rome[1] em 1743, Vien foi estudar na Académie de France à Rome e lá permaneceu por cerca de seis anos incansavelmente, desenhando ruínas e construções ao redor da cidade italiana, participando também no mesmo período, tal como Mengs e Hamilton, das recentes descobertas de artefatos gregos nas escavações em Herculano e Pompeia[2].

Para estes artistas, regressar aos clássicos significava adoptar o estilo e a teoria “acadêmica” de Poussin[3], conjugando-os com o maior número possível de pormenores arqueológicos acabados de colher na escultura antiga e nas escavações de Pompéia. (JANSON, 1992, p. 582)

No retorno a França por volta de 1750, Vien chamou a atenção do público com a produção de uma série de pinturas de retratos e cenas mitológicas, bem ao gosto da elite da época, assumindo o cargo de professor na Académie Royale de Peinture et de Sculpture[4] a partir de 1755 com a obra Dédalo e Ícaro, também conhecida como Dédalo no labirinto, anexando as asas a Ícaro.

Joseph-Marie VIEN (1716-1809) DETALHE: Dédalo e Ícaro, também conhecida como Dédalo no labirinto, anexando as asas a Ícaro, (1700 - 1800). Pintura sobre tela, 195x130. Em depósito: Ecole Nationale Supérieure des Beaux-Arts de Paris, Paris.
Joseph-Marie VIEN (1716-1809) DETALHE: Dédalo e Ícaro, também conhecida como Dédalo no labirinto, anexando as asas a Ícaro, (1700 – 1800). Pintura sobre tela, 195×130. Em depósito: Ecole Nationale Supérieure des Beaux-Arts de Paris, Paris.

Vien representa a clássica história de Dédalo e Ícaro descrita em poema na obra Metamorfoses[5] de Ovídio. Uma história que mostra as limitações do homem e aponta para os jovens sonhadores a medida do bom senso e da prudência.

Em Creta, no interior do labirinto, cansado de viver prisioneiro de sua própria criação, Dédalo, o grande construtor, acompanhado do seu filho Ícaro, se prepara para fugir pelo único espaço aberto – o céu, já que por terra ou mar era impossível. Tomada a decisão, Dédalo se prepara para inovar:

Dispões as penas em filas,
começando pelas mais pequenas, seguindo-se à mais curta
a mais comprida, de modo a parecer que crescem em declive
tal como vai crescendo com canas desiguais a flauta rústica.
Ata-as a meio com um fio, liga-as na base com cera
e, assim dispostas, flecte-as em suave curva
de modo a imitarem aves autênticas.
(OVIDIO, Metamorfoses, livro VIII, 189-195, 2017, p. 429)

Enquanto isso, Ícaro brincava com as penas, muitas vezes agitadas pela brisa ou então “amaciava a dourada cera, atrasando com suas brincadeiras o labor do pai.” (OVIDIO, Metamorfoses, livro VIII, 199-200, 2017, p. 429)

Concretizado o trabalho, Dédalo instrui o filho para que voe em baixa altitude, porém distante das águas, tendo como orientação o pai que lhe voaria a sua frente.

Lágrimas deslizam e as mãos tremem ao adaptar as estranhas asas nos ombros do filho. Elevando-se, toma a dianteira e chama o filho para acompanhá-lo sem receio.

Os dois sobrevoam e já perdem de vista o local. Mas o jovem, maravilhado com o feito, abandona o guia e voa mais alto, atarindo o calor do sol para a cera que se liga às penas.

A cera começa a fundir-se. Ícaro bate os braços desnudos,
mas, sem o batimento das asas, não há ar
a que se prenda. A sua boca, que gritava o nome do pai,
é acolhida pelas azuladas águas que dele tomam o nome.
(OVIDIO, Metamorfoses, livro VIII, 227-230, 2017, p. 429)

Em 1758, Vien trabalhou ao lado de grandes artistas junto à corte de Luís XV na produção de desenhos sobre cartões com vista à confecção de tapeçarias sobre o tema Amores dos Deuses para a Manufacture des Gobelins[6].

Pouco depois, Vien abandonou o estilo Rococó de Boucher[7] com quem trabalhou e dedicou-se ao estilo Neoclássico, adaptando-se a uma pincelada lisa e uma paleta mais fria.

Com uma técnica meticulosa e singular, Vien produziu grandes obras com cenas clássicas conjugadas com o maior número possível de pormenores arqueológicos colhidos das escavações italianas em ambientes e mobiliário da época.

Joseph-Marie VIEN (1716-1809) A Mercadora no Banheiro, conhecido como A Mercadora do Amor, 1763-1765. Pintura sobre tela, 98x122. Em depósito no Musée national du château de Fontainebleau, Fontainebleau, França.
Joseph-Marie VIEN (1716-1809) A Mercadora no Banheiro, conhecido como A Mercadora do Amor, 1763-1765. Pintura sobre tela, 98×122. Em depósito no Musée national du château de Fontainebleau, Fontainebleau, França.

É possível afirmar o estilo Neoclássico nessa pintura repleta de artefatos arqueológicos e decoração da época representados com exatidão e articulados com as figuras em cena, fixadas no tempo e espaço teatral, sem sombras e luzes e longe dos intérpretes de cenas amorosas e sensuais do período anterior.

Envolvido pelas ideias de Winckelmann, Vien retornou à Roma para ocupar o cargo de diretor da Académie de France à Rome de 1775 a 1781.

Na França, chegou ao cargo de primeiro pintor na corte de Luís XVI (1754-1793) por menos de um ano, em 1789.

Contudo, Vien soube se manter atuante mesmo após a Revolução, com uma grande produção de pinturas e desenhos primorosos, revelando cenas clássicas retiradas da história heroica e dos poemas mitológicos, acompanhando, assim, as obras dos novos artistas, que de acordo com Janson (1992, p. 596-597) souberam aproveitar a corrente anti-rococó na pintura, encorajada pelos intelectuais da Revolução.

Reconhecido por Napoleão Bonaparte (1769-1821) como o primeiro artista a introduzir o neoclassicismo na França, fazem parte do legado de Vien grandes nomes da arte Neoclássica francesa, como: François-André VINCENT (1746-1816), Jean-Baptiste REGNAULT (1754-1829) e principalmente o aluno mais famoso – Jacques-Louis DAVID (1748-1825).

Joseph-Marie VIEN (1716-1809) Alegoria das Artes, 1796. Caneta e tinta preta, pincel e aquarela marrom, e desenho sobre papel, 24.4x35.8.  The Metropolitan Museum of Art, Nova York, EUA.
Joseph-Marie VIEN (1716-1809) Alegoria das Artes, 1796. Caneta e tinta preta, pincel e aquarela marrom, e desenho sobre papel, 24.4×35.8. The Metropolitan Museum of Art, Nova York, EUA.
O Contrato, conhecido também como Assinatura do contrato de casamento II, 1798. Caneta e tinta marrom, pincel e aquarela marrom, e desenho sobre papel, 21,8x28,5. Musée du Louvre, Paris, França
Joseph-Marie VIEN (1716-1809) O Contrato, conhecido também como Assinatura do contrato de casamento II, 1798. Caneta e tinta marrom, pincel e aquarela marrom, e desenho sobre papel, 21,8×28,5. Musée du Louvre, Paris, França

Referências

CLEVELAND MUSEUM OF ART, Cleveland, Ohio, EUA. Disponível em: https://www.clevelandart.org/art/1996.1 Acesso em: 08 set. 2021.

ECOLE NATIONALE SUPÉRIEURE DES BEAUX-ARTS DE PARIS, Paris, França.  Disponível em: https://collections.louvre.fr/ark:/53355/cl010053196 Acesso em 08 set. 2021.

JANSON H. W. História da Arte. Tradução J.A. Ferreira de Almeida; Maria Manuela Rocheta Santos. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 823 p.

MUSÉE DU LOUVRE, Paris, França. Disponível em: https://collections.louvre.fr/ark:/53355/cl020039426 Acesso em: 08 set. 2021.

MUSÉE NATIONAL DU CHÂTEAU DE FONTAINEBLEAU, Fontainebleau, França. Disponível em: https://collections.louvre.fr/ark:/53355/cl010057666 Acesso em: 08 set. 2021.

NATIONAL GALLERY OF ART, Washington D.C., EUA. Disponível em: https://www.nga.gov/collection/art-object-page.62519.html Acesso em 08 set. 2021.

OVIDIO. Metamorfoses. Tradução Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34, 2017. 909 p.

THE METROPOLITAN MUSEUM OF ART, Nova York, EUA. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/382503 Acesso em: 09 set. 2021.


[1] Fundada por Jean-Baptiste Colbert em 1666, a Academia Francesa em Roma (Académie de France à Rome), recebia os ganhadores de bolsa de estudos com origem na competição artística do Prix de Rome, patrocinada pelo governo francês, criada no reinado de Luís XIV e encerrada somente em meados do século XX.

[2] A descoberta de Herculano (1738) e Pompéia (1748/1755/1763) sob as cinzas em Nápoles, representou um grande choque, levando os estudiosos a revisitar a Antiguidade, um mundo diferente daquele conhecido por intermédio da Antiga Roma e levou no início do século XIX engenheiros, pesquisadores e entusiastas Neoclássicos, às escavações, transformando a cidade em outro ponto de interesse, depois de Roma.

[3] Saiba mais de Nicolas POUSSIN (1594-1665) em https://arteref.com/artigos-academicos/classicismo-barroco/

[4] A Academia Real de Pintura e Escultura (Académie Royale de Peinture et de Sculpture) foi fundada em Paris em 1648 por Luís XIV sob o controle de Jean-Baptiste COLBERT (1619-1683) e foi dirigida pelo pintor oficial da corte, Charles LE BRUN (1619-1690). Fazia parte do currículo a instrução prática e teórica, baseado num sistema de regras e no racionalismo. As normas eram extremamente rígidas e os temas, por ordem de valor, em tabela própria, partiam da história greco-romana e terminavam na natureza morta). A Academia foi abolida pela Convenção Nacional (1792-1795) a pedido de Jacques-Louis DAVID (1748-1825) em agosto de 1793 e no seu lugar foi fundada a École des Beaux-Arts em 1796.

[5] Em Metamorfoses, influenciado pelos poemas épicos e pela genealogia grega, Publios Ovídio Naso (43 a.C.- 17 d.C.) descreveu em cerca de doze mil versos, em latim, as histórias dos deuses e heróis.  A obra que abrange a cosmogonia e a etiologia fundiu ficção e realidade, transformou personagens e deuses mitológicos em animais, plantas, rios e pedras, no princípio dos tempos e chegou até o tempo do poeta e de Augusto. Ovídio seguiu o conceito da Teogonia, de Hesíodo (ca. VIII-VII a.C.) na divisão cronológica da mitologia clássica e uniu os deuses aos mortais nas descrições sobre o amor, incesto, ciúme e morte. Os personagens ganharam humanidade e se afastaram das solenes divindades.

[6] Em 1662, Jean-Baptiste Colbert (1619-1683) comprou para a coroa francesa (Luís XIV) a propriedade criada por Jehan Gobelin, em Reims, e indicou Charles LE BRUN (1619-1690) como diretor da Manufacture des Gobelins, que rapidamente instalou no local pintores, estofadores, ourives, gravadores e marceneiros destinados a produzir o mobiliário e a decoração das Casas Reais e presentes diplomáticos. Nessa época mais de quinhentas peças receberam fios de ouro. Do século XVIII ao XIX, as cortes europeias se encantaram com os Gobelins, tapeçarias em lã, seda e algodão, repletas de cenas históricas e retratos cercados por flores e ornamentos segundo as tendências estilísticas. 

[7] Saiba mais de François BOUCHER (1703 -1770) em https://arteref.com/artigos-academicos/o-rococo-na-franca/

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Mestre em Artes Visuais com Abordagens Teóricas, Históricas e Culturais pela UNESP. Pós-graduação em História da Arte pela FAAP-SP. Formada em Artes Plásticas. Experiência profissional: Projetista em Design de Interiores. Experiência acadêmica: nas disciplinas de Projetos, Desenho, História do Mobiliário e História da Arte nos cursos de Arquitetura e Design de Interiores. Professor das disciplinas de Estética e História da Arte Mundial e Brasileira no Curso de Artes da Unimes, Universidade Metropolitana de Santos, SP

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Caio Nakazoni
Caio Nakazoni
2 anos atrás

Minha querida prof. Fátima Martini,
Sempre maravilhosa, nas escolhas, riquíssima de sabedoria e delicadeza nas palavras!