Exposições e Eventos

Incursão pela obra de Cildo Meireles

Obras de Cildo Meireles mostram reflexões profundas sobre percursos revolucionários e ganham exposição em Sesc de São Paulo.

Por José Henrique Fabre Rolim - setembro 27, 2019
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Na arte brasileira atual, alguns artistas merecem um destaque especial tanto pela profundidade da obra como pelos seus percursos revolucionários que representam propostas contundentes, em essência, atemporais, lúdicas e extremamente envolventes e impactantes. Esse é o caso de Cildo Meireles.

A exposição “Entrevendo”, de Cildo Meireles no Sesc Pompéia reflete significados variados, pontuais e sempre atuais, a história sempre se repete. Formada por 150 obras, entre desenhos, gravuras, instalações e objetos, abrangendo um período que cobre os anos 60 até a atualidade, representa uma antologia, sendo o maior acervo já exposto na América Latina. Suas obras já foram apresentadas no MoMA, de Nova York, na Reina Sofia, de Madrid, sem falar em o “Desvio para o vermelho”, sala em que todos os móveis são da cor do sangue, instalada definitivamente no famosos Instituto Inhotim, em Brumadinho.

Diversas obras nunca foram mostradas no Brasil, mas o intuito é justamente agilizar a leitura de um dos mais importantes artistas da atualidade, ao ocupar os 3.000m2 do Sesc Pompéia da Área de Convivência ao Galpão e Deck possibilitando ao público circular pelo espaço expositivo de forma livre e envolvente com uma série de obras interativas.

A obra “Entrevendo” que dá nome à mostra foi concebida em 1970 sendo realizada em 1994, uma instalação cilíndrica de madeira, um túnel de ar quente que permite ao visitante caminhar nessa estrutura com dois pedaços de gelo na boca, um doce e um salgado, que se derretem paulatinamente. A obra vai além do campo da visão, estimula outras formas de percepção ampliando as experiências sensoriais.

Entrevendo: Cildo Meireles
Entrevendo: Cildo Meireles, 1970.
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Uma outra grande instalação do artista que se destaca na consistente panorâmica é “Amerikkka” (1991/2013), pela primeira vez exposta aqui no Brasil, apesar de já ter sido exibida em importantes instituições como o Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, em 2013.

Formada por 17 mil ovos de madeira e 33 mil balas de armas de fogo, o visitante pode caminhar sobre a plataforma de ovos tendo acima a placa de projéteis, na realidade a obra faz uma reflexão sobre uma América dominada por conflitos, desde os tempos em que era colônia, chegando aos atuais tempos, onde organizações de extrema-direita realizam ataques dos mais variados às minorias, uma clara indicação à própria Ku Klux Klan, sugerido no triplo K do título da obra.

As incursões de Cildo Meireles são bem objetivas como no caso da instalação “Missão, Missões (Como Construir Catedrais)” 1987/2019 que obteve uma versão mais pungente em forma circular. Anteriormente, foi exposta na mostra “Magiciens de la Terre”, no Centro Pompidou de Paris, em 1989.

A obra é formada por 600 mil moedas, 2 mil ossos de boi, uma coluna de oitocentas hóstias empilhadas fazendo a ligação entre o chão e o teto, ou a terra e o céu, uma alusão aos processos de catequização dos indígenas promovidos pelos missionários. Cildo realça por intermédio dessa obra os malefícios de três elementos: o poder material, o poder espiritual e a tragédia uma consequência da repetição dessa integração causada pela colonização na dimensão econômica, social, religiosa e geográfica.

Missão, Missões (Como Construir Catedrais): Cildo Meireles, 1987
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Uma outra envolvente instalação denominada “Antes”, projetada em 1977 e concretizada em 2003, no Musée d’art Moderne et Contemporain de Strasbourg, permite ao expectador perceber a relação da escala tanto no espaço expositivo como com o corpo, a obra modifica a percepção do próprio espaço.

A instalação de seis metros de altura é concebida de forma que o visitante suba uma escada, para atingir um mezanino com uma cadeira e uma mesa, mas no tampo da mesma é possível perceber uma outra escada, em dimensão menor, que leva a uma segunda plataforma, de onde parte outra escada. Conforme se sobem as escadas, percebe-se a diminuição da escala, uma lúdica confrontação das palavras escala e escada.

Circulando pelo amplo espaço, o visitante se defronta com uma tenda indígena coberta por cédulas de dinheiro de países americanos, que faz parte da instalação “Olvido” (1987-1989), localizada no meio de uma área circular, uma piscina de três toneladas de ossos de boi (tíbias e fêmures) cercada por uma parede de 70 mil velas.

A tenda produz um ruído de motosserra, que se espalha pelo grande espaço, propondo uma discussão sobre fatos marcantes da história do Brasil e do continente americano, que sofreu violenta repressão nos tempos coloniais, com reflexos na formação atual da sociedade como da política, uma obra conectada com a análise crítica do passado espelhando problemas contemporâneos.

Olvido (Oblivion): Cildo Meireles, 1987.
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A exposição poderá ser apreciada nos seus mais diversos aspectos, não há necessidade de um roteiro, o visitante faz um passeio pelas obras e vai descobrindo novos parâmetros e reflexões sobre as potencialidades da arte em conectar olhares e sensações proporcionadas pelo cunho visionário de Cildo.

Na obra “Eureka/Blindhotland” (1970), pela primeira vez mostrada na sua dimensão exata, o artista propõe diferentes relações entre peso, densidade e volume de objetos, como nas inúmeras bolas de borracha, idênticas na aparência, mas que questiona a percepção visual, que pode enganar. Deve-se frisar que o título da instalação “Terraquentecega” faz uma observação a Brasília, onde o que se nota na paisagem não é exatamente aquilo que é realmente.

Desenhos, ações, objetos e documentos da série Arte Física (1969) como os trabalhos Zero Dollar (1978-1984/2013) e Zero Real (2013) são icônicos ao lado da série Malhas da Liberdade (1976/2008), Volumes Virtuais (1968-1969), e Ocupações (1968-1969) completam uma incursão pela intensa atividade de Cildo.

Uma das obras mais polêmicas é a famosa série “Inserções em Circuitos Ideológicos” (1970-2019) que deu uma outra dimensão ao ready-made ao utilizar cédulas de dinheiro com mensagens críticas atingindo outros espaços bem além de museus e galerias, como no caso atual com as notas de R$2 e R$5 estampadas com o rosto de Marielle Franco, a vereadora do PSOL assassinada no ano passado. Anteriormente outras mensagens foram inseridas como “Quem matou Herzog? nos anos 70, e indagações nos anos 2000 sobre o assassinato do Toninho do PT e do Celso Daniel e em 2013 sobre a tortura e a morte do pedreiro Amarildo.

Inserções em Circuitos Ideológicos: Cildo Meireles, 1970.

No Galpão, outras obras assumem novas perspectivas, numa linha museológica com desenhos e objetos como Razão/Loucura (1976), Rodos (1978-1981) e Esfera Invisível (2012) além de Espaços Virtuais: Cantos (1967-1968/2008/2013), um dos trabalhos iniciais no aspecto de instalação.

A desconstrução do uso de objetos do cotidiano é uma outra faceta de suas criações como escadas, fitas métricas, trenas ou intervenções na natureza, como aquela que aumentou em um centímetro o Pico da Neblina, no Amazonas, ampliando a fronteira vertical brasileira.

Dentre as inúmeras obras, uma merece ser observada detalhadamente, formada por duas barras de ferro, uma curva e outra reta, chamada “Para Ser Curvada com os Olhos” (1970/1975) dentro de uma caixa de madeira com uma placa em que se lê: “duas barras de ferro iguais e curvas”. O olhar pode eventualmente nos trair como frisou certa vez o arista.

Admirador do artista conceitual Piero Manzoni (1933-1963), fato que pode ser notado na fotografia de uma sua performance em “Atlas” (1995/2006) plantando bananeira em cima da escultura “Socle du Monde” (Base do Mundo) do artista italiano. Cildo vira um Atlas ao avesso, sensação lúdica de inversão total.

Atlas – Cildo Meireles, 2007. Fotografia em lightbox. Cortesia Cildo Meireles.
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A mostra assume grande importância pela excepcional dimensão das obras apresentadas permitindo acesso a um público bem amplo. Cildo é um dos artistas mais atuantes no panorama cultural do país, que aos 71 anos com uma carreira de 54 anos, participou quatro vezes na Bienal de Veneza, além de ter realizado uma impecável retrospectiva na Tate Modern em Londres, é considerado o artista brasileiro de maior visibilidade no exterior.


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