Lúcio Costa foi um dos pioneiros da arquitetura modernista no Brasil e conhecido pelo projeto do Plano Piloto de Brasília. Devido às atividades oficiais de seu pai, o almirante Joaquim Ribeiro da Costa, morou em diversos países. Estudou na Royal Grammar School em Newcastle, e no College National em Montreux, na Suíça.
Retornou ao Brasil em 1917 e, mais tarde, passou a frequentar o curso de arquitetura da Escola Nacional de Belas Artes, que ainda aplicava um programa neoclássico de ensino. Ele formou-se Arquiteto pela Escola em 1924. Apesar de praticar uma arquitetura neoclássica durante seus primeiros anos (defendendo em certos momentos uma arquitetura neocolonial), rompeu com essa formação e passou a receber influências da obra do arquiteto franco-suíço Le Corbusier.
Iniciou parceria com o arquiteto ucraniano Gregori Warchavchik, que construiu a primeira residência considerada moderna no Brasil.
Em 1930, foi nomeado ministro da Educação e Saúde o jurista Francisco Campos, que chamou para chefiar o gabinete Rodrigo Melo Franco de Andrade. Este exercia grande influência entre os modernistas de São Paulo e Rio de Janeiro, e, por meio de sua indicação, o jovem arquiteto Lúcio Costa foi nomeado para dirigir a Escola Nacional de Belas Artes, com a missão de renovar o ensino das artes plásticas e implantar um curso de arquitetura moderna.
Alterações introduzidas por Lúcio Costa mudaram a estrutura e o espírito do salão anual. Apareceram pela primeira vez na velha escola, ao lado dos antigos frequentadores, artistas ligados à corrente moderna, na sua maioria vindos da capital paulista. A trigésima oitava Exposição Geral (1931) foi por isso chamada de Salão revolucionário.
Entre os alunos da renovada escola de arquitetura estava o jovem Oscar Niemeyer.
Sabendo da importância de sua geração na mudança dos rumos culturais do país, Costa convenceu Le Corbusier a vir ao Brasil em 1936 para uma série de conferências (enquanto colaborava no projeto da sede do recém-criado Ministério da Educação e da Saúde Pública). A arquitetura moderna do projeto ia ao encontro dos objetivos da ditadura Vargas, ao passar ares de modernidade e progresso ao país. Costa, embora convidado a projetar o edifício sozinho, preferiu dividir o projeto com uma equipe que incluía o seu antigo aluno Oscar Niemeyer e os seus sócios Carlos Leão, Ernani Vasconcellos, Jorge Moreira e Affonso Eduardo Reidy.
Em 1939 foi co-autor do pavilhão brasileiro para a Feira Universal de Nova Iorque juntamente com Oscar Niemeyer e Paul Lester Wiener.
Em 1957, ao ser lançado o concurso para a nova capital do país, Costa enviou ideia para um anteprojeto, contrariando algumas normas do concurso. De fato, apesar de apresentar uma concepção urbanística semelhante à maioria dos concorrentes, o projeto de Lúcio Costa foi o único que conseguiu compreender o significado político de uma nova capital para o governo Kubitschek e para o contexto brasileiro da época.
O projeto de Lucio Costa venceu por quase unanimidade (apenas um jurado não votou nele), sofrendo diversas acusações dos concorrentes. Desenvolveu o Plano Piloto de Brasília e, como Niemeyer, passou a ser conhecido em todo o mundo como autor de grande parte dos prédios públicos.
Após Brasília, recebeu convites para coordenar vários planos urbanísticos, no Brasil e no exterior.
Foi colaborador e diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Verbo: riposatevi
Segunda pessoa do plural imperativo de riposarsi: no português; Repousar.
A participação do Brasil na XIII Trienal de Milão, em 1964, assinala um momento importante na trajetória e nos desdobramentos da movimentação moderna da arquitetura brasileira e aponta também uma inflexão surpreendente na obra de seu mentor: Lucio Costa.
O Brasil participa pela primeira vez desta Trienal num momento em que ela finalmente retomava o sentido de vitalidade condizente com o vanguardismo e com a contemporaneidade que se espera de uma exposição deste porte (2). Este fato se torna mais relevante, na medida em que consideramos a participação da Arquitetura brasileira ter se manifestado com qualidade e prestígio em outras situações desta natureza – feiras e exposições internacionais – quando as qualidades da produção técnica, artística e intelectual de um país se fizeram representar primeiramente pela arquitetura.
Destacam-se os pavilhões do Brasil na feira de Nova York em 1939 de Lucio Costa e Oscar Niemeyer: projeto que reitera o domínio dos procedimentos modernos e anuncia as especificidades da modernidade brasileira: curvas, elementos vazados, integração com paisagismo, rampas, além da pluralidade de vedações anunciando sua independência estrutural e das grandes aberturas.
Também se destaca o pavilhão brasileiro na exposição de 1970, em Osaka, de Paulo Mendes da Rocha: projeto que valoriza a linguagem do concreto armado aparente da chamada Escola Paulista, com as grandes estruturas sob quatro pontos de apoio, reitera a opacidade dos espaços, articula a interioridade dos convívios e a transformação do terreno, além de fortalecer o próprio valor da estrutura como definidora do espaço.
Assim, não deixa de ser curioso o fato de que entre um projeto e outro, entre uma participação e outra, exista este projeto de Lucio Costa para o pavilhão brasileiro, em 1964, que é comumente pouco considerado, tornando-se mesmo quase uma experimentação desconhecida.
Trata-se de um espaço equacionado em poucos dias que enfrentou as consideráveis dificuldades “dos problemas burocráticos e políticos e do tráfico de influências” (3) para ser finalmente executado. Será, portanto, nesta perspectiva de revelar questões e pertinências desta ação projetual de Lucio Costa que este artigo vai investir suas abordagens.
Este pavilhão parece conter muitas surpresas ao ser explorado, ao ter seus aspectos revelados, pois mesmo sem figurar entre aqueles que são mais citados para tratar da arquitetura de Lucio costa ele contém os mesmos índices de problematização do Park Hotel São Clemente ou dos edifícios do Parque Guinle.
Ou seja, compatibiliza valores das tradições culturais brasileira com possibilidades espaciais modernas e arrojadas; articula plasticidades tradicionais com novas materialidades num mesmo espaço; transforma questões do debate arquitetônico mundial em problemas específicos da arquitetura brasileira.
Some-se a esta postura de projetar, o fato de que naquele momento político tão incerto – 1964, o Brasil pós-golpe – querer levar um pavilhão nacional para fazer ver o país ao mundo, pode também ser considerada uma participação política. É certo que se trata de participação muito cuidadosa e diplomática, mas efetivamente, muito ativa e representativa de seu campo profissional.
Em meio a uma onda de conservadorismos – que somente se iniciara em 1964 e que se desdobraria no total fechamento das perspectivas culturais em 1968 – Lucio Costa apresenta um pavilhão despojado, um espaço de uma simplicidade inacreditável, com uma configuração quase imaterial para cumprir o tema proposto pela Trienal: o tempo livre (4).
O tema da Trienal se pretendia ousado e extremamente vinculado àquela sociedade industrializada, algo referente às questões econômicas e sociais, um problema cultural inserido na perspectiva da indústria cultural, de uma sociedade cujos modos de vida tornaram-se repetitivos, monótonos e desgostosos.
O tema procura alavancar um modo de pensar o cotidiano que se contraponha aos pressupostos da dinâmica da cidade moderna concebida por Le Corbusier, por exemplo, cujas funções: circular, trabalhar, habitar e ter lazer, seriam suficientes para organizar todas as instâncias. O tema propõe, de saída, uma abordagem que desmonte os gestos e os hábitos cotidianos, que interrompa as práticas rotineiras.
Tal rotina numa sociedade industrial é o trabalho constante, ajustado no ritmo da máquina e inserido num contexto cultural massivo (5). Sair desta rotina, desvencilhar-se e romper com seus ritmos e alterar os hábitos implica em não fazer, em não trabalhar, em não operar, etc. Ou seja, descansar, repousar, desligar-se… E assim se apresenta a radicalidade da proposta e Lucio Costa: um convite à subversão dos tempos da produção industrial, um convite para desfrutar o tempo livre nas redes do Brasil, contemplando suas imagens.
Lucio subverte também a dinâmica da própria Trienal ao propor um espaço de ócio e de não continuar o caminhar incessante e contínuo que estas mostras imprimem sob visitantes, sendo ironicamente enfático ao utilizar o imperativo para sinalizar o espaço brasileiro: riposatevi: relaxem, descansem…
Lucio Costa organiza um espaço para representar o Brasil articulando índices espaciais, imagens, cores e texturas, num procedimento eminentemente moderno, porque relacional, mas seguramente transgressor conforme será visto (6). Não parece ter sido fácil trabalhar a participação do país de modo contundente e delicado para mostrar o Brasil pós-Bossa Nova, pós-Jucelino Kubitschek, pós-Brasília, e o país pós-64. O pavilhão revela um país que também havia saído da rotina do subdesenvolvimento industrial e que havia consolidado sua atualização no âmbito cultural mundial, superando sua dependência cultural, exercitando uma antropofagia saudável, cosmopolita e urbana.
O pavilhão do Brasil nesta Trienal parece apontar uma alternativa própria às práticas de progresso tecnológico e à dinâmica da sociedade industrial, mantendo sua heterogeneidade e sua singularidade, justapondo valores sócio-culturais, procedimentos técnicos, ritmos e modos de vida. Explora-se um ritmo industrial, dinâmico, urbano e premente que constrói Brasília e ao mesmo tempo se contrapõe um ritmo tranqüilo, telúrico, popular, e simples através do ato de deitar-se numa rede.
As vicissitudes técnicas, sociais e estéticas do país são colocadas com grande força e clareza: podemos construir “Brasílias”, mas ainda mantemos conhecimentos culturais arcaicos, com valores latentes, como nossas redes e jangadas demonstram. Tudo isso para mostrar o mesmo país que pós-64 também espera vislumbrar outras perspectivas, enredado em dúvidas.
No entanto, ali, no Pavilhão brasileiro em Milão, Lucio Costa não hesita e diretamente aponta o que fazer: riposatevi. Este tempo verbal imperativo soa como uma ordem que se sobrepõe a um espaço que deliberadamente propõe possibilidades múltiplas de uso, a livre apropriação dos usuários e assim, ao seu modo, efetua um convite.
De toda sorte, entre um convite e uma ordem, entre a precisão e a delicadeza, há um projeto, há um espaço moderno para representar um país, há a espacialização de uma visão de mundo e, sobretudo, há um posicionamento crítico no campo arquitetônico. Lucio Costa também subverte a rotina da arquitetura brasileira com este projeto.
Se o projeto de Brasília colocou Lucio Costa em atividades de projeto com grandes equipes, prazos e determinações políticas diversas, aqui neste projeto, ele volta a trabalhar mais individualmente, ainda que pese em muito o empenho de Jayme Mauricio junto ao Itamaraty para viabilizar a participação brasileira, além da colaboração imprescindível de Maria Elisa Costa, Sergio Porto e das fotografias de Marcel Gautherot. Assim, ao retomar as atividades de projeto nesta perspectiva mais pessoal, torna-se possível para o arquiteto retomar questões e interesses de aspectos projetuais que a escala de Brasília não lhe permitia.
A cultura popular brasileira é tomada pelo viés indígena, ampliando o arco de compreensão de seu discurso sobre cultura popular e seu diálogo com uma arquitetura moderna. Num contraponto surpreendente ao arroubo tecnológico, logístico e estético que foi a experiência de Brasília, Lucio Costa apresenta um espaço leve, transparente, desmontável e, no limite, descartável. Não é pouco para pensar sobre o homem que viu uma cidade nascer sob o desígnio de seu traço.
Entre a Finlândia e a Iugoslávia, Lucio Costa apresenta o Brasil através de uma ambiente mobiliado com cerca de quatorze redes de algodão coloridas e alguns violões: eis toda a mobília do país! Este espaço fluido é organizado através de painéis de madeira ordinária que também são o suporte de imagens de Gautherot, além de organizarem os limites e contornos deste pavilhão.
Para complementar as dimensões deste espaço, Lucio Costa sugere um chão de areia, que foi substituído por um piso homogêneo, ao que parece feito de sizal; em contraposição, para arrematar o teto, “à guisa de dossel”, Lucio Costa arma uma estrutura de cabos de aço multidirecional para sustentar as redes e acima desta trama, dispõe outra com tecidos retangulares, brancos e amarelos, soltos com as letras verdes, em caixa alta, da palavra de ordem: R I P O S A T E V I
Trata-se de uma arquitetura cujos índices espaciais se definem a partir das redes de dormir, dos cabos de aço, dos retângulos de tecido, do sizal e dos painéis de madeira. Junto disso, o arquiteto toma as cores com um sentido construtivo associado à materialidade destes índices.
As redes: roxa, amarela, azul, vermelha, laranja; os painéis: azul cobalto, verde oliva ou branco; os tecidos: amarelos e brancos; mais a expressão material do aço e do sizal. Tudo isso se complementa com as fotografias de Gautherot em preto e branco.
Lucio Costa desmonta as relações de interioridade do edifício que abriga o pavilhão e transforma o lugar do Brasil num ambiente de estar arejado e ventilado; transformando-o numa varanda, sem apelar para raciocínios ou estratégias tipológicas, mas tomando-a como referência por sua carga espacial de operar relações dentro/fora e por seu potencial vivencial e gregário.
Aqui, trata-se de uma varanda sem paisagem natural a ser desfrutada, que valoriza as fotografias, as imagens. O Brasil é, por ora, sintetizado através das fotografias das jangadas, das praias do Ceará e das Super-Quadras, do Eixo Residencial, do Congresso, da Praça dos Três Poderes e da Plataforma rodoviária de Brasília.
Como resultado de sua operação, Lucio Costa obtém uma espacialidade legível, com evidência da intervenção provisória que ali se instala para criar uma experiência própria e assim demonstrar o entendimento do tema “tempo livre”: aqui, neste país, descansar indolentemente ou trabalhar freneticamente podem ser equivalentes no cotidiano de qualquer um.
A argumentação direta parte do próprio arquiteto: o mesmo povo que descansa nas redes, constrói Brasília! Neste sentido pode-se considerar também que o arquiteto opera com um posicionamento que se aproxima dos situacionistas ao pretender subverter as lógicas convencionais de percepção e ação cotidiana. Contudo, o projeto é lúdico, poético, bem implantado e de fácil execução.
É importante comentar como Lucio Costa trabalha com tanto rigor para propor uma ação aparentemente desprendida: riposatevi; ou com tanto ajuste para fazer um convite: percebam o Brasil. Mesmo sendo cuidadoso com a textura do piso, com a cor dos tecidos, etc, trata-se de fato, de um espaço organizado por redes e imagens.
Quase como se ele quisesse estabelecer uma equação provisória para facilitar a compreensão do país: Brasil = rede + imagens (ou seja, este artefato ancestral mais estas imagens de Brasília, obra de nossa melhor modernidade).
Lucio Costa atua com segurança numa perspectiva de grandes tensões ao articular o artefato mais ancestral da cultura brasileira – a rede – com o artifício mais contemporâneo da cultura de massa: a imagem. Ou seja, opera tanto com a dinâmica do espaço relacional moderno como com a lógica da imagem da cultura de massas, revelando um procedimento surpreendente e sofisticado.
A rede-de-dormir naquele momento também se constituía num dos objetos de pesquisa de Câmara Cascudo, que em 1959 finalizara seus estudos, considerando-a um artefato genuinamente brasileiro (7).
Câmara Cascudo observa também a multiplicidade de seus usos: dormir, descansar, transportar, etc, além de destacar sua utilização por diferentes classes sociais. Some-se a isto, o fato de que, a rede é um equipamento doméstico que foi industrializado, ou seja, um artefato que foi deslocado de uma escala de produção artesanal para a escala de produção industrial sem perder sua essência, sua materialidade, ou sua importância simbólica e cultural.
Não houve corrupção de seus valores e significados. Trata-se de uma experiência extremamente moderna sob a perspectiva de Gropius: articulação plena entre manufatura artesanal e os novos meios de produção. Pois é justamente este artefato que Lucio Costa transforma no índice espacial fundamental de seu projeto.
A valorização da imagem como fator projetual parece ser mesmo outra inovação nos modos de projetar do próprio Lucio Costa, o que denota mais uma vez sua notável contemporaneidade. Os painéis organizando o espaço como suportes para as fotografias de Gautherot em seus diferentes tamanhos, também funcionam como elementos de publicidade sobre o Brasil, complementando a difusão das imagens a beira-mar que a Bossa Nova tão bem explorava, além das imagens de modernização do período JK através de seu ícone máximo: Brasília.
Enquanto isso, as letras suspensas da palavra de ordem RIPOSATEVI antecipam o procedimento comunicativo dos letreiros publicitários e outdoors que Venturi somente aprenderia em Las Vegas, tempos depois (8).
Lucio Costa trabalha com uma grande diversidade de referências e procedimentos sem fazer apelos de ênfase tecnológica. Ao contrário, valoriza um conhecimento técnico extremamente simples, que contém um saber fazer perene. Seu posicionamento aponta para a flexibilidade das redes e de seu grande potencial de adaptabilidade: dois ganchos, coloca-se a rede, define-se um habitat. Um raciocínio de ocupação espacial instantânea invejável para o Archigram, que naquele momento veiculava projetos urbanos em escala planetária, baseado num forte repertório imagético da alta tecnologia com estruturas leves, móveis e efêmeras, tais como a Walking City e a Plug-in City (9).
Assim, o arquiteto parece estabelecer um outro paradigma em que cabalmente demonstra como a complexidade somente pode ser contraditória artificialmente e como no caso do Brasil, cujas matrizes culturais sempre operam com grandes fusões e simultaneidades, é possível se deslocar com desenvoltura por entre tantas tensões.
Este espaço de Lucio Costa também desmonta a rotina da arquitetura brasileira. Parece haver uma indicação muito clara de explorar e transformar os limites de um fazer arquitetônico contemporâneo que não somente trabalhasse com a principal substância do Movimento Moderno – o espaço – mas também que agenciasse novos fatores, que enfrentasse novas questões como a efemeridade ou a imagem.
Além de manter presente sua preocupação com a cultura popular, Lucio Costa quer atuar para além das questões Modernas e por este motivo precisa agenciar o fator inovador da imagem junto de uma concepção espacial, numa ação que se desdobra para além da modernidade. Trata-se pois, de um procedimento pós-Moderno (10).Trata-se de um experimento de um arquiteto que de tão moderno, tão ciente das conseqüências deste modo de trabalhar o espaço e a imagem que ele escolhe justamente um tipo de projeto que não perdura para se exercitar: um pavilhão de feira, cuja obsolescência é programática.
Trata-se do movimento de alguém que atua por dentro, que age organicamente para explorar e transformar o próprio campo de atuação. Esta postura se torna ainda mais relevante a partir do momento em que Movimento Moderno passaria então a ser crescentemente criticado: a caixa como formalização atávica, o espaço contínuo como não apropriável, a falta de referência simbólica figurativa como laconismo do edifício, etc.
Lucio Costa transforma a rotina do campo arquitetônico ao trabalhar com limitações burocráticas e políticas tão grandes e, ao mesmo tempo, altera sua própria rotina de grandes projetos, trabalhando com uma escala menor, com algo efêmero, operando complexidades e propondo questões para serem pensadas seriamente. Imagens no espaço, as redes, as jangadas e Brasília, os violões, a luz filtrada… Lucio Costa utiliza todos os recursos arquitetônicos para provocar nos usuários outras percepções sobre si mesmos, para talvez despertar assim outras possibilidades de usar o “tempo livre”.
Este pavilhão na Trienal também quer operar com percepções de Brasil, percepções de cultura e modo de vida. É através desta sensibilização do usuário em sua relação com o espaço de Lucio Costa dialoga com a Tropicália de Hélio Oiticica.
Tropicália é um trabalho espacializado de Hélio Oiticica, exposto pela primeira vez ao público em abril de 1967, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – MAM-Rio – por ocasião da exposição “Nova objetividade brasileira”. De acordo com Paola B. Jaques, Tropicália é um experimento ambientado que se reporta à dinâmica dos espaços das favelas. Trata-se de um espaço organizado por dois “penetráveis” dispostos num cenário tropical com plantas, araras, caminhos de areia, cascalho ou de terra, junto de vasos e dos poemas-objetos de Roberta Oiticica.
Estes penetráveis que definem o trabalho são estruturas de madeira associados à materiais precários como tecidos, telas e uma televisão, que organizam proposições labirínticas (11).
Tropicália é um espaço brasileiro que pretendia eliminar as imagens óbvias e simplificadas de “tropicalidade”. Hélio Oiticica quer acabar com os estereótipos de um Brasil tropical “for export”, preocupando-se mesmo com a essência do que seria um modo de estar nos trópicos. Para tanto, Tropicália convida o expectador à uma experimentação táctil: materiais, cores, sons, texturas no piso, transparências… e tudo aponta para que visitante percorra estes espaços, se perca por entre estes lugares novos, sem referenciais e perceba tanto o espaço como a si mesmo, estimulando uma postura mais ativa e participativa, onde o visitante passa de mero expectador a expectador-participante (12).
Tanto a Tropicália de Oiticica como o Pavilhão de Lucio Costa operam com imagens e com espacialidades do Brasil, mas com estratégias diferentes e forças distintas. Em ambas, a ordem do discurso anuncia um modo de ser e/ou estar ambientado num país/instalação/espaço cujas possibilidades de ação devem ser próprias, autônomas e definitivamente libertadas dos estereótipos.
Assim, convergem ao apontarem que a experiência estética vai além da experiência meramente visual (13). Por outro lado, divergem ao trabalharem suas linguagens, pois enquanto Lucio define um espaço legível em que as imagens operam junto com a materialidade para organizá-lo de modo preciso, Hélio opera primeiramente com a índices materiais de “tropicalidade” para desmontar essas imagens num espaço labiríntico e multi-sensorial.
Ambos voltam a dialogar ao operarem com valores culturais populares e massivos mesmo com configurações próprias, as forças do ato de experimentar o espaço, a experiência espacial do sujeito, as relações entre sujeito/imagem/país, as relações espaço/matéria e, sobretudo as relações espaço/percepção, coincidem e novamente os aproxima. Nestas tensões de proximidade e afastamento Lucio Costa e Hélio Oiticica, através do Pavilhão de 1964 e de Tropicália, protagonizam um diálogo surpreendente e improvável.
Neste sentido, vale trazer o comentário de Favaretto a respeito das relações entre Hélio e outro artista que cabe tão bem para pensar nestes diálogos entre ele e Lucio Costa:
“As duas experiências são estruturalmente semelhantes: operam o descentramento cultural com procedimentos críticos que combinam construtividade e dessacralização; deslocam a discussão sobre as relações de arte e participação superando a oposição entre arte participante e arte alienada” (14)
Lucio Costa e Hélio Oiticica assumem as miríades de possibilidades de hibridismos entre modernizar-se e dialogar com valores, materiais, escalas e vivencias vernaculares, estabelecendo diálogos profícuos entre valores culturais modernos, populares e massivos constituindo um procedimento maduro, de acordo com a chave proposta por Canclini para a compreensão do quadro das tensões culturais da América Latina (15).
A partir destas obras, tanto Lucio Costa como Hélio Oiticica estão se movimentando com perspicácia por entre o campo cultural pós-1960. Neste momento o meio cultural brasileiro passaria a viver dentro de um complexo quadro de impasses que perpassam pelas questões estéticas, pelas posturas políticas assumidas, pela autonomia entre arte e política e pela interatividade das manifestações artísticas com os mais diversos agentes sociais. Aspectos de um debate sócio-cultural que Ferreira Gullar vai organizar e estruturar com muita competência. (16)
Enquanto isso, outra Tropicália pode complementar este diálogo entre Costa e Oiticica. Trata-se da música de Caetano Veloso, uma música que se transformou numa grande celebração alegórica por traduzir as complexidades e contradições da dinâmica nacional. Uma canção extensa e enfática – sob a orquestração épica de Júlio Medaglia – que agencia/metralha inúmeras imagens, referências e citações para construir uma percepção fragmentária e múltipla do país e dos antagonismos de sua dinâmica cultural. Caetano organiza diversos pares antagônicos de referências para contrapor modernidade e atraso.
O próprio Caetano confirma que Brasília foi o fator de inspiração para compor sua Tropicália por sua força monumental de cidade que nasce de um sonho, materializa uma experiência moderna para se tornar a sede do poder usurpado pelos militares, ao que afirma: “Brasília, sem ser nomeada, seria o centro da canção-monumento aberrante que eu ergueria à nossa dor, à nossa delícia e ao nosso ridículo” (17).
Caetano Veloso, que naquele momento não conhecia Helio Oiticica, estava se posicionando na mesma trincheira cultural ao querer desmontar as concepções estetizantes e superficiais – ditas estereotipadas – da diversidade de manifestações da cultura popular, assim como também está se articulando com o universo da cultura de massa.
Tropicália de Caetano Veloso traduz com perspicácia a preciosa ação do arquiteto. Lucio Costa aparece indiretamente, mais uma vez, sagaz e contemporâneo, e de fato, organiza o Movimento e inaugura monumentos no Planalto Central do país… e no limite, havia organizado o “carnaval” que estava o campo arquitetônico ante da vanguarda moderna se estabelecer por aqui.
O fato deste pavilhão brasileiro na XIII Trienal de Milão ser tão pouco comentado e/ou abordado perece ser sintomático dos descaminhos e das perspectivas de ação plurais da arquitetura brasileira pós-Brasília. Além das transformações da linguagem, dos valores da técnica e da continuidade espacial e da dimensão urbana, o campo profissional se consolida, acarretando um número crescente de obras, desde infra-estruturas urbanas até hospitais, universidades ou até planos urbanos. Este fato amplia o foco de preocupações e de certa forma dilui a atenção que Lucio Costa deveria receber. Assim, num momento de tanto projetos o singelo pavilhão não inspirou interesse.
Este projeto também pode ser tomado para pensar a trajetória do próprio arquiteto, seus interesses pela cultura popular, seu modo de tomar e se apropriar das questões do Movimento Moderno, sua inserção no campo profissional, suas articulações políticas, sua compreensão da cultura de massa e como tudo isso, todas estas variáveis, participam, de fato, na concepção de um espaço.
Assim, é possível apreender o domínio da linguagem espacial a partir da construção de um espaço que operando entre antagonismos: elegante/singelo, sóbrio/leve, rigoroso/descontraído, é de fato, moderno, popular e pop. Ou seja, na chave de Canclini: erudito, popular e massivo. Além disso, torna-se possível e fundamental estabelecer um outro universo de interlocutores com os quais Lucio Costa está se relacionando: Robert Venturi, Aldo Rossi, Archigram, os Situacionistas, Pop Art, cultura Pop… Além da tradição construtiva e da cultura popular brasileira, dos paradigmas modernos de matriz Corbusiana, etc; com as quais comumente já são instrumentalizadas para enfrentar sua obra.
Tanto estas referências, como aquelas são válidas para construir uma abordagem reveladora da potencialidade da ação de um arquiteto. No entanto, aqui, para abordar este Pavilhão, tudo parece insuficiente para esgotar a multiplicidade de interesses e afinidades com as quais Lucio Costa se articula, vinculando-se a questões tão dispares, nas mais diversas intensidades e sentidos, mostrando-se extremamente atualizado.
Vale então, destacar que o texto Projeto e destino de Argan, em que ele discute os limites e as transformações pelas quais o fazer arquitetônico passava e aponta as questões da cultura de massa, a força da imagem que os arquitetos teriam de enfrentar, é do mesmo ano (18).
De certo modo, Lucio Costa habilmente espacializa a crise de todo o campo arquitetônico e resolve a questão ao seu modo, com maestria e simplicidade. Neste sentido, Hélio Oiticica, comentando sua obra, parece complementar e compreender esta experimentação em Lucio Costa: “A palavra experimental é apropriada, não para ser entendida como descritiva de um ato a ser julgado posteriormente em termos de sucesso e fracasso, mas como um ato cujo resultado é desconhecido” (19).
Lucio Costa nos provoca a pensar novamente este momento de crises pós-1960 – este momento de transe – em que tantas certezas se fragilizaram, quando novas questões se cristalizaram e quando outras perspectivas epistemológicas se consolidaram.
Deste modo, ele nos instiga a ampliar as abordagens e resolver questões em aberto e questões que merecem ser novamente problematizadas, subsidiando assim, a retomada crítica dos nexos de nossas experiências modernas, suas estratégias e procedimentos. Tudo isso poderá ser útil para orientar ações de projeto consistentes e reflexivas perante um panorama tão diversificado quanto mutante desta contemporaneidade, fazendo da ação do arquiteto um gesto oportuno e de significação pública mais fecunda.
Nesse processo todo, surpreende a atualidade convicta de um arquiteto que depois de ter articulado as grandes transformações do campo da arquitetura brasileira – quer seja por milagre, acaso ou ataraxia – se mantém ativo e lúcido.
Lucio Costa revela não ter saudades dos atrasos do Brasil, mas também não se envergonha de suas vicissitudes técnicas e sociais, assim como não sente remorsos em modernizar-se depois. Mas, depois de que? Depois da Arquitetura Moderna Brasileira? Para ser o quê? …depois de tanto êxito, de tanto interesse, de tantas publicações e polêmicas, mesmo sem a base tecnológica adequada! O que Lucio Costa explicita com este projeto do pavilhão brasileiro na XIII Trienal de Milão em 1964, é que não era preciso recorrer utilitariamente às questões em voga no mundo cultural e/ou arquitetônico para ser atual, para ser legítimo consigo e com sua cultura. Precisamente, ante tantas escolhas, a arquitetura de Lucio Costa efetivamente mostra um Brasil que em 1964, a pesar dos pesares, era pulsante e modernizado. E assim, ele nos faz pensar que hoje, em arquitetura, talvez estejamos um pouco atrasados em relação a nós mesmos, apenas isso.
Vale então lembrar sua recomendação: “Cabe à inteligência retomar o comando”.
Veja Também:
Sobre o autor do texto Riposatevi acima (publicado na http://www.vitruvius.com.br/)
Eduardo Pierrotti Rossetti é arquiteto e urbanista (FAU-PUCCAMP, 1998), mestre pela Universidade Federal da Bahia – PPGAU-FAUFBA e doutorando na FAUUSP. É professor da Escola da Cidade e UNIP-Sorocaba. participou do projeto de inclusão digital promovido pela FACED/UFBA, com a concepção do “Tabuleiro Digital”, em 2004, patrocinado pela Petrobras.
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