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Um diálogo entre Bacon e Deleuze por Loz-2962 STUDIO

Por Equipe Editorial - março 19, 2013
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Um diálogo entre a pintura de Francis Bacon e a filosofia de Gilles Deleuze

LOZ-2962 STUDIO[1]

Chiu Yi Chih e Irael Luziano 

Em seu livro Francis Bacon: lógica da sensação, o filósofo Gilles Deleuze (2007, p.12) comenta que a pintura baconiana põe em xeque o modelo tradicional de figuração, servindo até indiretamente como uma crítica ao modo esquemático de organização da lógica representativa. Essa observação interessantíssima traduz o esforço pictórico de um artista em sua tentativa de superar os limites do conceito de “pintura”, e sobretudo, de traçar um agenciamento estético através daquilo que o filósofo francês concebeu como “lógica dos sentidos”. De certo modo, ao romper com os limites da representação, da narração e da figuração clássica, o pintor reconstrói a forma, a figura e a cor, aproximando-se do conceito de corpo sem órgãos preconizado por Antonin Artaud e Gilles Deleuze.

Assim, ao lermos os primeiros seis capítulos do livro Francis Bacon: lógica da sensação, somos surpreendidos pelo fato de que, antes de falar do corpo sem órgãos na pintura de Bacon, Deleuze nos introduz no procedimento característico por meio do qual o pintor conjura qualquer espécie de narratividade que poderia emergir no discurso de uma paisagem, na presença de uma personagem e na construção de uma figura. Tudo se passa como se Bacon quisesse evitar uma armadilha típica da pintura: representar um objeto ou uma figura humana através da semelhança da cópia ao modelo.

É por isso que Deleuze vê em Bacon a invenção de um campo conceitual/estético que extrapola os limites da mera representação, procedendo assim a uma espécie de lógica sub-representativa extremamente singular. Pode-se ver ali um dispositivo crítico de imensa radicalidade em relação aos mecanismos reprodutivos de produção do real, dispositivo assinalado pelo modo com que o pintor distorce a figura e borra os contornos que a delimitam, fazendo dali emergir uma espécie de corpo-coador, um corpo atravessado por fluxos intensivos, um corpo livre de suas coordenadas fixas e predeterminadas. Ora, tal dimensão do corpo só poderia aparecer na forma de uma figura desfigurada, deformada, despojada da função figurativa. Contudo, isso só seria possível se, em primeiro lugar, Bacon se afastasse do que seria uma pintura abstrata, isto é, daquilo que seria um jogo de cores e formas sob o domínio do construtivismo abstrato. E, ainda, ele só poderia criar esse “figural” (uma espécie de “figura visual improvável”), se recusasse o procedimento típico de um determinado modo de figuração carregado de clichês, fórmulas e imagens viciadas.

Com efeito, o caráter ilustrativo, narrativo e figurativo que prepondera na representação pictórica é o que leva Bacon a radicalizar seu procedimento no sentido de traçar manchas irracionais altamente sugestivas, conjugando-as com manchas visivelmente ilustrativas, como por exemplo se pode ver nos Três estudos para uma crucificação. Mesmo que não haja uma figuração primária nos quadros, temos a impressão paradoxal da existência de uma figuração secundária quando vemos uma forma deformada.

Desse modo, o estudioso Roberto Machado, em seu livro Deleuze, a arte e a filosofia (2010, p.227), lembra-nos que o pintor, ao invés de representar um modelo, um objeto exterior por meio da ilustração, cria essas imagens potentes e sensíveis para atingir nosso sistema nervoso, já que a figura, nesse caso, “é uma forma sensível que remete à sensação, age diretamente sobre o sistema nervoso”, atuando mais nos sentidos do que na inteligência. Quando ocorre que duas figuras ou dois corpos estejam acoplados numa massa espessa, tampouco se pensará na história que poderia ser narrada entre essas duas formas, mas, ao contrário, no entrelaçamento ou acoplamento de níveis de sensação que atravessam esses corpos.

Daí por que a estética baconiana se mova entre o abstracionismo de Mondrian e o expressionismo gestual de Pollock, distanciando-se tanto da codificação geométrico-abstrata como da “pintura-catástrofe” do diagrama expressionista (DELEUZE, 2007, p.111). Assim, ao recorrer às variações do corpo humano, Bacon contrói um bloco de sensações. O corpo passa a ser um suporte de inumeras possibilidades em suas torções e distorções. A expressão “bloco de sensações” atribuída por Deleuze à Bacon sugere precisamente o campo de imanência em que o artista se move ao pintar o corpo, “não representado como objeto, nem representando um objeto, mas experimentando uma sensação” (MACHADO, 2010, p.228).

Em última análise, podemos nos perguntar a respeito da natureza dessa construção matérica que é como um agenciamento consistente diante do caos. É nesse aspecto que se compreende que, para Bacon, o corpo é uma vianda (carne) que deixa de ser sustentada pelos ossos, passando a deslizar para cima ou para baixo, numa tensão lateral e contorcida, como se estivéssemos diante de um devir-animal onde se entrevê uma zona de indiscernibilidade entre o homem e o animal. Se vermos o painel central do tríptico Três estudos de figuras à base de uma crucificação, pressentir-se-á a liberação de um corpo vivo, um corpo que não estaria mais preso e codificado pelas estruturações psicológico-sociais do organismo. Portanto, seria como o corpo sem órgãos, corpo vivo cheio de multiplicidades[2] que se opera além da lógica do pensamento representativo. Por conseguinte, um corpo que sofre e exprime a dor, mas não no sentido de um sensacionalismo corporal onde a violência, o horror e a guerra seriam suas causas imediatas. Bacon diz nas entrevistas a David Sylvester que nunca procurou o horror (SYLVESTER: 2007, p.47). Por isso, segundo Deleuze, seria necessário distinguir a violência do representado (o sensacional, o clichê) da violência da sensação (2007, p.46), o que só mostra o quanto a arte de Bacon está distante de uma encenação trágica e cruel. “Ora, não há sentimentos em Bacon, apenas afetos, ou seja, sensações e instintos…” (p.47).

  É preciso então pensar numa violência da variabilidade dos estados intensivos e diferenciais do que propriamente numa crueldade infligida ao corpo humano. Ao romper com a representação codificada do rosto e da figura humana, Bacon faz circular as intensidades da matéria viva, ou seja, fluxos, forças, afetos e sensações que antes estavam bloqueadas e cristalizadas. Se o rosto é desfigurado e “arrancado” de tal modo que apareça a cabeça sob uma outra constelação sensível, é porque o rosto, com sua superfície de linhas, traços e buracos funciona como um agenciamento de poder que tanto opera um esquadrinhamento como territorializa o corpo numa dada configuração estática. Assim, o que Bacon deseja é desestratificar as rígidas codificações do organismo, abrindo possibilidade para a existência de um corpo intensivamente aberto aos fluxos interconectivos.

Assim, será possível conceituar um “corpo afetivo, intensivo, anarquista, que só comporta polos, zonas, limiares e gradientes” (DELEUZE, 2008, p.148), ou seja, aquela “matriz intensiva” que Deleuze chamou de matéria não-estratificada[3]com as suas “partículas submoleculares e subatômicas, intensidades puras, singularidades livres pré-físicas e pré-vitais” onde justamente se explicita a ação de um campo ilimitado de fluxos, sendo que estes últimos são linhas de desterritorialização (ou linhas de fuga) que escapam das codificações dualistas. Esse corpo é caracterizado como “poderosa vitalidade não-orgânica”, “corpo em devir, em intensidade, como poder de afetar e ser afetado, isto é, Vontade de potência” (p.149). Não é por outra razão que tal corpo povoado de intensidades se contrapõe ao modo de organização do organismo físico. Como observa Deleuze em Francis Bacon: lógica da sensação:

Esse fundo, essa unidade rítmica dos sentidos, só pode ser descoberta ultrapassando-se o organismo. A hipótese fenomenológica é talvez insuficiente porque invoca somente o corpo vivido. Mas o corpo vivido é ainda pouco em relação a uma Potência mais profunda e quase insuportável. Com efeito, só podemos buscar a unidade do ritmo onde o próprio ritmo mergulha no caos, na noite, e onde as diferenças de nível são sempre misturadas com violência. Para além do organismo, mas também como limite do corpo vivido, há o que Artaud descobriu e nomeou: corpo sem órgãos. ‘O corpo é o corpo Ele está sozinho E não precisa de órgãos O corpo nunca é um organismo O organismo são os inimigos do corpo.’O corpo sem órgãos se opõe menos aos órgãos do que à organização dos órgãos que se chama organismo. É um corpo intenso, intensivo. Ele é percorrido por uma onda que traça no corpo níveis ou limiares segundo as variações de sua amplitude. O corpo, portanto, não tem órgãos, mas limiares ou níveis. (DELEUZE, 2007, p.51)

Considerando a presença do corpo sem órgãos na pintura de Bacon, deve-se sublinhar a aparição da imagem buscada pelo artista. Ao invés de retratar o rosto, o pintor faz nascer a cabeça sob o rosto. O rosto, considerado em sua forma clássica, era tido como um princípio da figuração clássica. Nesse sentido, o que significa destituir o poder do rosto e fazer vir à tona a força descomunal de um corpo sem órgãos? Nesse caso, não nos surpreenderá que a arte baconiana se incline para um certo anti-platonismo em relação ao estatuto da imagem enquanto tal, sendo assim uma crítica aos estratos elementares da representação humana, uma insatisfação em relação aos componentes constitutivos da figuração. Essa poética deformante poderia desagradar aos olhos sensíveis da visão contemplativa e se configurar como uma excessiva monstruosidade. Ou ainda parecer um simples irracionalismo sem sentido. No entanto, parece-nos equivocada e, por assim dizer, ingênua tal interpretação dos quadros de Bacon, pois o que se vislumbra pouco a pouco nas suas figuras desfiguradas é a beleza entendida não como adequação entre imagem pintada e seu suposto modelo, ou a abstração formal de desfiguração absoluta, mas sim a construção de uma imagem formalmente potente e “háptica” (imagem associada aos valores tácteis). Trata-se menos de um quadro para ser visto do que um quadro para ser tocado com todos os nossos órgãos corpóreos.

A imagem revela o fato da sensação em sua variabilidade intensiva. Ela é mais tocada do que vista e compreendida pelo intelecto. Do mesmo modo como o corpo sem órgãos surge com a desestratificação do organismo, a imagem (ou a Figura) em sua força autêntica surge também com as sucessivas operações de desautomatização. O real, para Bacon, não significa um dado referencial suscetível de ser produzido de modo realista e ilustrativo. Ao contrário, o real é a própria instância da imagem quando esta é considerada em sua organicidade. É nesse sentido que Bacon se aproxima de Cézanne quando este, segundo Merleau-Ponty, pintava o nascimento e a gênese de todas as coisas.

É por este motivo que Bacon, diante do espaço branco do quadro, reflete sobre os pressupostos da lógica da representação e combate os clichês, as lembranças, os fantasmas e as percepções predeterminadas. Antes do ato de pintar, ele presencia as velhas imagens que já se encontram na tela. As imagens-clichê preexistem aos elementos do conjunto inicial do quadro e compõem de maneira tácita o estado pré-pictural da composição. Como Bacon procede para escapar das limitações desses dados figurativos? Segundo Deleuze, o procedimento é simples: isola-se a figura e faz-se um contorno em torno dela para pô-la num cubo, numa barra estirada ou num paralelepípedo de vidro. Após esse isolamento, delimitam-se as grandes superfícies planas, que não estão ali como uma paisagem ou um fundo informal claro-escuro com suas espessas camadas de cor (p.14). Estas superfícies finas e duras operam uma conexão, uma correlação entre a Figura e o seu entorno de modo que se pode ali entrever o nascimento modulado de uma imagem dissemelhante e diferencial.

Tal imagem, segundo a nossa hipótese de leitura, sugere antes uma dissemelhança do que uma semelhança do corpo a algum modelo predeterminado, anuncia um efeito orgânico, táctil e movente. Deleuze diz que “a Figura não é apenas o corpo isolado, mas corpo deformado que escapa…todo o corpo é percorrido por um movimento intenso” (p.26-27), ou seja, uma imagem que se desloca espacialmente em diversos níveis de sensação, embora esteja isolado numa estrutura material que lhe serve como pedestal.

No entanto, essa imagem só poderá ser construída com toda sua autenticidade como matter of fact (fato), se o pintor, conjurando a narratividade e a abstração, alcançar a dimensão multissensível de sua composição, e ao mesmo tempo, se puder lançar no seu quadro “manchas livres” e “involuntárias” ensejando assim a iminência de uma imagem-sensação. Do mesmo modo como o filósofo precisa rejeitar os pressupostos implícitos de uma corrente filosófica para criar seu novo conceito, o pintor recorre a esse procedimento para se desvencilhar daquilo que lhe parece uma representação comum da realidade.

No entanto, ele só se desvencilhará desses pressupostos da pintura, sob a condição de recusar completamente o mecanismo reprodutor que caracteriza geralmente a apreensão fotográfica da realidade. Daí por que Bacon recuse as representações ilustrativas/narrativas da fotografia e a ideia mesma de uma imposição da verdade da imagem. Tudo se passa como se ele quisesse “fazer rapidamente marcas livres no interior da imagem pintada para destruir a figuração nascente e dar uma chance à Figura, que é o próprio improvável (DELEUZE: 2007, p.97). Ele se servirá inicialmente do acaso entendido não como probabilidade casual, mas como combinatória que se encaminha gradualmente para uma escolha determinada. A imagem ou a nova Figura extraída desse processo de catástrofe surgirá em conexão com a totalidade do quadro de tal forma que o caos pré-pictórico será reelaborado numa espécie de agenciamento de forças cromáticas, numa pluralidade de sentidos, numa constelação de coexistências. Ora, sabemos que o pintor, atirando a tinta na tela e escovando sua superfície, visava justamente romper com a literalidade tão presente nas formas tradicionais pictóricas. Deixando o acaso intervir sem o menor escrúpulo e cedendo, numa fase inicial, à ação das forças do inconsciente que preenchem o espaço pictórico, o que se busca é, no fundo, o rompimento com a lógica familiar e prosaica de certas imagens óbvias. Isso só poderia ser realizado mediante o que Bacon designa como uma “luta contínua entre acaso e crítica” (SYLVESTER: 2007, p.121) numa busca obsessiva e lúcida em torno do “desenvolvimento da imagem”.

Se, portanto, as imagens corpóreas de Bacon exprimem um campo de sensações não redutíveis às determinadas estruturas da representação, podemos observar que, de modo análogo, o conceito deleuziano de corpo sem órgãos nos remete àquela dimensão de sensações e forças intensivas tão fundamentais na construção matérica e no plano de consistência de certos agenciamentos. Da mesma maneira que as imagens se conectam em relações analógicas e conexões fractais através de seu diagrama de traços assignificantes (p.103), os órgãos parciais do CsO se conjugam num agenciamento por meio de sínteses disjuntivas/maquínicas, exprimindo assim o embate que ocorre entre o corpo sem órgãos e o organismo com sua estrutura determinante. O corpo sem órgãos é a dimensão virtual do corpo, aquele campo de estados intensivos que se encontra além da organização, e que, portanto, não se submete às exigências determinantes do organismo. Ele é percorrido por forças, fluxos e ondas em que circulam intensidades.

Há na vida muitas aproximações ambíguas do corpo sem órgãos (o álcool, a droga, a esquizofrenia, o sadomasoquismo, etc.). Mas a realidade viva desse corpo poderá ser chamada de ‘histeria’? E em que sentido? Uma onda de amplitude variável percorre o corpo sem órgãos, traça nele zonas e níveis segundo as variações de sua amplitude. Uma sensação aparece no encontro de um determinado nível da onda com forças exteriores. Um órgão será, portanto, determinado por esse encontro, mas um órgão provisório, que só dura o quanto durarem a passagem da onda e a ação da força, e que se deslocará para se situar em outro lugar.” (p.53)

Nesse sentido, Deleuze insistirá na ideia de um corpo passível de ser afetado por uma variedade de estados intensivos. Na medida em que uma onda afeta o corpo, este adquirirá determinados órgãos provisórios. Longe de ser uma configuração estática, formal e cristalizada, o corpo sem órgãos se expande em infinitas possibilidades de variação. Vejamos como Bacon se exprime no seu diálogo com David Sylvester:

Acho que, em nossas conversas anteriores, quando falamos da possibilidade de criarmos uma aparência a partir de uma coisa não ilustrativa, eu exagerei. Porque, se teoricamente, a gente deseja uma imagem construída com manchas irracionais, por outro lado, o aspecto ilustrativo inevitavelmente terá de estar presente na reprodução de certas partes da cabeça e do rosto; se deixarmos de fora esse aspecto, estaremos simplesmente fazendo um desenho abstrato. Acho que isso, de que muitas vezes tenho falado, é uma teoria minha inexequível. Veja bem, estamos falando de coisas como orelhas e olhos. Mas acontece que alguém poderá querer fazê-los o mais irracionalmente possível. E a única razão para esta irracionalidade é que, no caso de tudo ir bem, ela trará mais vigorosamente a força da imagem do que se a gente sentasse e fizesse uma ilustração da aparência; coisa, é claro, que os milhares de estudantes de arte espalhados pelo mundo podem fazer. Mas estou pronto a admitir que minha teoria é absurda e impossível (SYLVESTER: 2007, p.126)

A imagem com toda sua potência intensiva múltipla é criada quando Bacon consegue imergir no caos e atravessar essa catástrofe perigosa, obtendo dali uma “figura visual improvável” a partir da deformação figurada e do deslocamento dos rígidos limites do organismo. É numa tal imagem semelhante produzida por meios não-semelhantes que aparece um caos-germe, uma visão háptica absolutamente estranha, a saber, a dimensão virtual do corpo sem órgãos descrita no Mil Platôs 3 como:

(…) o ovo pleno anterior à extensão do organismo e à organização dos órgãos, antes da formação dos estratos, o ovo intenso que se define por eixos e vetores, gradientes[4] e limiares, tendências dinâmicas com mutação de energia, movimentos cinemáticos com deslocamento de grupos, migrações, tudo isto independentemente das formas acessórias, pois os órgãos somente aparecem e funcionam aqui como intensidades puras. O órgão muda transpondo um limiar, mudando de gradiente. ‘Os órgãos perdem toda constância, quer se trate de sua localização ou de sua função (…) órgãos sexuais aparecem por todo o lado (…) ânus emergem, abrem-se para defecar, depois se fecham, (…) o organismo inteiro muda de textura e de cor, variações alotrópicas[5] reguladas num décimo de segundo”. O ovo tântrico. (DELEUZE & GUATTARI, 2007, p.14)

Tudo se passa como se houvesse um processo dinâmico de variação diferencial, uma metamorfose intensiva que escorre de um limiar a outro numa superfície deslizante, opaca e tensa. Tal superfície de matriz indiferenciada que antecede qualquer formação de estratos é o corpo sem órgãos sobre o qual se conectam e se desconectam as máquinas desejantes. Se, de um lado, vemos um fluxo contínuo de máquinas desejantes acopladas em sínteses passivas e conectivas, por outro lado, nessa produção maquínica por onde escorre o desejo de vida, encontramos a passagem do fluxo de morte representada pela presença do corpo sem órgãos. Isso porque a aparição dele seria como um momento de suspensão do funcionamento maquínico, uma antiprodução na imensa fábrica produtiva. Assim, tal corpo associado ao instinto de morte poderia desarticular a estrutura funcional do organismo à qual se submeteu nosso corpo físico e, desse modo, poderia também produzir um contra-movimento em relação à tal subordinação. E, ao mesmo tempo, ele carregaria consigo intensidades, devires, passagens e fluxos de vida ilimitada. Como se concebe no Anti-Édipo:

O corpo sem órgãos é um ovo: é atravessado por eixos e limiares, por latitudes, longitudes e geodésicas, é atravessado por gradientes que marcam os devires e as passagens, as destinações daquele que aí se desenvolve. Nada aqui é representativo, tudo é vida e vivido: a emoção vivida nos seios não se assemelha aos seios, não os representa, assim como uma zona predestinada do ovo não se assemelha ao órgão que será induzido nela; apenas faixas de intensidade, potenciais, limiares e gradientes. Experiência dilacerante, demasiado emocionante, pela qual o esquizo é aquele que mais se aproxima da matéria, de um centro intensivo e vivo da matéria: ‘emoção situada fora do ponto particular em que o espírito a busca…emoção que dá ao espírito o som sublevador da matéria, para onde toda alma escorre e arde’ (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p.34)

É nesse ponto que nos parece que Bacon aceita o risco de uma profunda reversão no modo como se vê o corpo e suas intensidades livres.

David Sylvester: Uma configuração recorrente e muito pessoal em sua obra é o entrelaçamento da imagística da crucificação com a imagística do açougue. A conexão com a carne deve ter um significado muito forte para você.

Francis Bacon: É verdade. Se você for a um desses grandes açougues e andar por aqueles salões enormes cheios de cadáveres, encontrará carne, peixe, aves e outras coisas mais ali deitadas, mortas. E, como pintor, você não pode deixar de perceber toda a beleza do colorido da carne.

DS: A conjunção da carne com a crucificação parece acontecer de duas maneiras: pela presença na cena de flancos de carne e pela transformação da própria figura do crucificado numa carcaça pendurada.

FB: Bem, claro, nós somos carne, somos carcaça em potencial. Sempre que entro num açougue penso que é surpreendente eu não estar ali no lugar do animal. Mas usar a carne dessa maneira particular talvez seja igual à maneira como alguém usaria a coluna, porque estamos vendo sempre imagens do corpo humano através de chapas de fotografia e isso obviamente modifica o modo como se pode usar o corpo….[6]

LOZ-2962 STUDIO.1

[1] Sobre o LOZ-2962 STUDIO: constituído pelo artista chinês Chiu Yi Chih e pelo artista brasileiro Irael Luziano com participação de Guidival Verde, LOZ-2962 STUDIO desenvolve um conjunto de trabalhos em torno da Metacorporeidade: http://philomundus.blogspot.com | [email protected]

[2] Cf. Mil platôs 1, pág.43.

[3] Veja Mil Platôs 1, p.57-58.

[4] Gradiente: taxa de variação de uma grandeza física, ao longo de uma dimensão espacial e numa direção.

[5] Alotropia é definida como a propriedade que os átomos têm de originar uma ou mais substâncias simples e diferentes, através do compartilhamento de elétrons. As formas alotrópicas dos elementos químicos se diferenciam pela atomicidade ou estrutura cristalina. As formas alotrópicas do carbono são diamante e grafita. Essas substâncias se diferem através da estrutura cristalina, que é a maneira dos átomos de carbono se unirem.

[6] Cf. Entrevistas com Francis Bacon, p.46.

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