O luxo, a beleza e o controle de poder da etiqueta
A estética como controle de poder: a etiqueta
Etiqueta se confunde com boa educação e boas maneiras, mas também com frescura, chatice e perda de tempo. Mas é preciso lembrar que a etiqueta não é mera perfumaria, já que foi parte de uma estratégia para manter coeso e estável, um país que atravessava um momento extremamente explosivo. O rei Luis XIV (1643–1715) decidiu reunir vassalos sob seu teto – o megapalácio de Versailles, para evitar que a nobreza organizasse exércitos contra a monarquia que se queria absoluta. Agrupar parentes tão poderosos, chefes de exércitos ambiciosos, mesmo sob vigilância, demandava uma estratégia para garantir a ordem. A burguesia financiadora do exército do Rei Sol exigia privilégios junto à corte real, e a nobreza usou a etiqueta mais refinada e rebuscada que o Ocidente já conhece para se distanciar dos toscos plebeus.
Gestos contidos, estudados e bonitos já haviam sido usados para conter situações de perigo. No século V d.C. o feudalismo europeu foi se estruturando com o desmonte do Império Romano e o abandono das antigas colônias romanizadas. Uma sociedade rígida se organizou para enfrentar séculos de batalhas: os camponeses produziam comidas, o clero dava conforto às almas e a nobreza guerreava! Responsáveis pela defesa do feudo, os nobres aprendiam a lutar desde os sete anos de idade. Carregando armaduras e armas muito pesadas, treinavam por toda a vida em justas, caças e embates reais. Para conter tais criaturas bélicas, as ‘Leis da Cavalaria’ moldaram espíritos dóceis, caridosos e servis, desmontando o perigo da arrogância e violência dessas máquinas de matar. Apesar dos tempos violentos, as ‘Leis da Cavalaria’ conseguiram impor um tempo de respirar, em que o impulso não seria permitido aos defensores dos cristãos, e em meio a tantos confrontos sangrentos, nasceram as cantigas de amor, as cantigas de amigo e toda a poesia medieval associada à beleza e à gentileza.
Com a frouxidão dos laços com a Igreja e o fim das invasões, o Renascimento floresce e os nobres tão poderosos, são uns ursos nas maneiras. Grosseiros e sujos são menosprezados pelos cidadãos mais sofisticados do período como os mercadores da Península Itálica (venezianos, florentinos e outros), assim como os mercadores do Oriente Médio, donos de gestos refinados e sofisticação cultural.
O holandês Erasmo de Rotterdam (1466 – 1536), amigo de Thomas Morus, tenta melhorar os modos dos nobres pela educação de seus filhos através de um manual de maneiras corteses que servira de base pelos séculos vindouros. Humanista e erudito ainda que plebeu, Erasmo se horrorizava com o hábito de jogar ossos das carnes por cima dos ombros, pois avisava ele, provocava grande alvoroço nos cães que por ali aguardavam. Também recomendava que não usassem as mangas dos casacos para limparem suas bocas de gordura, nem permitissem que seus corpos fizessem sons à mesa. Erasmo recomendava que evitassem arrotos, puns e chupada de dentes durante o jantar, e assim por diante. Seu manual de etiqueta (disponível neste link) enfatizava a suavização dos gestos para que não se orgulhassem de chamarem a atenção sobre os demais, instalando regras que a nobreza seguiria, bem como a burguesia logo depois, interessada em ser aceita pela aristocracia e parceiros comerciais mais refinados.
Atualmente vivemos tempos nebulosos, grotescos e fundados na busca doentia pelo prazer. Em nome do prazer, a pressa e a grosseria são justificadas. Obsessões pelo consumo infantilizam cidadãos que caçam pokemons ao invés de perscrutarem estratégias dos governantes. Luis XIV também precisava de uma obsessão que aplacasse a sanha de nobres gananciosos e belicosos. A etiqueta, inventada pelo Rei Sol implantou um jogo onde a beleza e o luxo servissem de garantias à condição de nobreza de quem melhor as dominasse, evitando assim que o impulso e a insensatez fizessem do palácio um campo de desavenças e assassinatos. Até duelos eram regrados e lentamente executados até a morte de um dos oponentes. Abrir portas, puxar cadeiras, subir escadas atrás dos mais frágeis indicava, não apenas a superioridade física do indivíduo, mas a confiança de sua nobreza de espírito e de caráter frente à realeza e à fraqueza humana, numa manifestação das antigas Leis de Cavalaria que, por sinal, persistem até os dias de hoje, ainda que esmaecidas e já inconscientes.
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Com a reunião dos nobres sob um mesmo teto como nossos condomínios, a busca pela beleza e o requinte garantiu melhores relações sociais. Esse olhar estetizado interferiu nas expressões estéticas como as danças (minuetos), vestimentas (redingote, crinolina, rendas e brocados), e mesmo nos debates políticos que desenvolveram esse domínio das palavras que toda a produção francesa se gaba até hoje na teoria, na literatura, no cinema etc. Além da forma, a estratégia na oralidade acabou formando uma sociedade que viu no refinamento do espírito uma superioridade civilizatória onde a estetização da vida alterou comportamentos e suas relações com o poder!
E que não se enganem supor que formas de roupa, gestual e até a produção das paisagens não contenham o mesmo projeto ético da etiqueta. Os jardins franceses, geométricos, labirínticos e de uma elegância absurda com suas topiarias, faziam parte da mesma estratégia de controle de seus hóspedes, entretidos em fazer destacar seus dotes e conhecimentos de extremo bom gosto. Puros jogos de poder!
A sinceridade considerada vulgar e perigosa, expunha sentimentos derramados, ridículos e simplórios, traindo origens plebéias, sem a sofisticação da formação erudita e do raciocínio lógico afiado, que deveria permear todas as relações, amorosas ou não, e onde a poesia e a força da estética garantiriam distância do risco da degradação de emoções descontroladas. Onde houvesse o ‘sincericídio’, duelos e assassinatos descontrolados, tornariam a convivência uma pocilga apavorante, prejudicial à estabilidade emocional, à saúde e aos negócios. A etiqueta e seus desdobramentos, a gentileza, a paciência e a razão científica, também serviram de avalista a currículos de cidadãos éticos e civilizados, daquela sociedade em permanente conflito. Não são sempre?
Essa estabilidade criada pelo sagaz e midiático Rei Sol, irá se mostrar insuficiente quando a França começar a empobrecer pelas guerras externas em que o rei se envolve. O magnífico espetáculo que Luis XIV e a nobreza da época impactaram a pobre e rural sociedade francesa, que começará a questionar abusos dos privilégios, desaguando, dois reis depois, na famigerada e sanguinolenta Revolução Francesa. A etiqueta tem seus méritos, mas não resolve a injustiça social crônica.
(via zupi)
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