O que está nas “costas” das obras passa, muitas vezes, despercebido em espaços expositivos, publicações e sites que falam sobre produções artísticas nacionais e mundiais. Não trata-se aqui de peças tridimensionais ou instalações. Mas sim do que “normalmente” se esconde, se oculta. São furos, rasgos, nós, manchas, borrados, texturas – de lápis, caneta, pincéis – que estão por trás de cada criação. Rastros que revelam fatos sobre métodos, usados, artistas e até mesmo momentos artísticos e políticos do país. Muito mais até do que se possa imaginar.
Exemplos disso podem ser vistos na exposição “Brasilidade Pós-Modernismo”, realizada pelo Centro Cultural Banco do Brasil, em celebração da Semana de Arte de 1922. A mostra – que já passou pelo Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília e agora segue para Belo Horizonte – apresenta trabalhos em que os avessos são protagonizados, como uma forma de chamar atenção ao que não foi dito ou mostrado há cem anos, nesse importante evento para a arte moderna brasileira. Um resgate histórico, mas sobretudo crítico, segundo a curadora responsável, Tereza de Arruda.
“Os versos mostram verdades veladas, ocultas, além daquelas que foram sempre transmitidas, desde o início da colonização, como sendo de mão única. Um recorte atual para expandir nosso questionamento, entendimento e discernimento. Por isso que, em algumas obras, o avesso é muito significativo”, explica.
Uma dessas peças é Índias Ocidentas, produzida em 2021, pela artista cearense Luzia Simons. Nela, o avesso de uma linda e gigantesca tapeçaria é propositalmente destacado na parte central de uma das salas de exposição. São mais de oito metros de cumprimento e um metro e quarenta centímetros de largura cheios de brasilidades silenciadas.
“O verso é escancarado, revelando todo resíduo e consequência do processo da urdidura e apontando para uma reflexão sobre narrativas colonizadoras. Essas também se dão a partir de formas de representação da natureza – relações de poder desiguais, aparentemente opostas – que compartilham do mesmo fio criador”, aponta a curadora.
Neste contexto, Tereza cita, ainda, a obra Inserções em circuitos ideológicos: Projeto Coca-Cola, do artista Cildo Meirele, nos dos anos setenta. Nela, o artista – usando decalque com tinta branca vitrificada – imprimiu informações e opiniões críticas à ditadura em garrafas de vidro da marca. Conteúdos que só podem ser vistos se essas estiverem cheias, “escritos de 1970, quando nem todas as verdades podiam ser ditas”, completa a curadora.
No caso do artista, também cearense, Francisco de Assis Rodrigues de Almeida ou DAlmeida, como gosta de ser chamado, o verso é a alma da metodologia usada por ele, é a forma como enxerga e produz a própria arte. Essa perspectiva é fruto da técnica criada por ele, há 30 anos, para conseguir produzir xilogravuras expandidas. “Neste método que desenvolvi, eu trabalho pelas costas da obra. Eu faço a composição e demarco as matrizes, atrás da tela, com a colher. Vou intintando o verso e, dessa forma, me oriento sobre que estou fazendo. É um processo necessário e mágico. Vejo a luminosidade divina aparecendo”, conta DAlmeida, hoje com 59 anos.
Na maioria das xilogravuras, para marcar as matrizes – espécie de carimbos de madeiras com figuras desenhadas em relevo – as imagens são repassadas para um papel com a ajuda de uma prensa. Como as obras de DAlmeida são de grandes proporções, de matrizes amplas, não existiam prensas na dimensão que ele precisava.
“Já pesquisei várias, inclusive no tamanho de três metros, que faço geralmente, e não achei. Fora isso, se existissem, eu ainda não conseguiria colorir as gravuras da maneira que gosto” contextualiza o artista sobre o porquê de ter buscado uma forma mais artesanal e também inovadora de fazer esse tipo de arte.
Na mostra Brasilidade, é possível ver de perto 18 peças do artista, suspensas no teto de uma das salas expositivas – em alusão aos varais de sarais de cordel – o expectador se depara com frentes douradas e coloridas e versos de cores frias, manchadas e arrastadas. Uma miscigenação de divino, terreno, real e surreal, imagem e ilusão. Forças antagônicas e complementares que fazem o expectador mergulhar, ainda mais, no grandioso universo cultural de DAlmeida.
Natural de Crateús, no Sertão do Ceará, o artista é filho de pai ourives e fotógrafo, mãe bordadeira, neto de avó rendeira e de um avô bruxo e curandeiro, o artista apresenta toda essa bagagem nas xilogravuras. “Uma narrativa que extrapola as escritas originais e se materializa em pinturas que enaltecem características e elementos da cultura popular brasileira”, conclui a curadora Tereza de Arruda.
Mostrar a verdade sobre os versos das obras têm sido um movimento constante na produção artística contemporânea, principalmente entre mulheres que tecem a própria história.
A artista bordadeira Nina Cast, de Ubatuba (SP), é uma delas. Nos trabalhos, ela explora essas dualidades e conversas entre os dois lados da vida e do bordado. Como, por exemplo, em “O fio vermelho”, produzido em 2022. “Nesta obra, a palavra ‘trama’ se revela do lado em que o bordado está todo certinho e a expressão ‘drama’ aparece no avesso. É uma brincadeira com o sentido da vida. É uma trama, que se você for olhar pelo avesso, com lupa, tem muito drama”, ilustra a artista.
No meio, há uma grande mão, delicadamente perfeita de um lado e, do outro, cheia de nós e pontas soltas. Para conseguir esses resultados nas letras e imagens, Nina entramou uma linha vermelha em casas intercaladas de uma tecelagem fiada à mão, por também mulheres. Um processo demorado e intenso, “uma alinhavo de tempo e sentimento”, relatou ela, no perfil do Instagram, sobre a execução deste trabalho, que fala sobre o momento em que se tornou mulher, mãe e artista.
Nina Cast afirma que essa exposição proposital dos avessos, ou até mesmo a despreocupação com eles, faz parte de uma ressignificação do bordado – que ganhou espaço dentro da arte contemporânea – e, principalmente, do “ser mulher” na sociedade. “Antigamente, quando fazíamos bordado, tínhamos que ser perfeitas, prendadas. Era um lugar de cobrança e de submissão. Algo que já se perdeu completamente no nosso tempo. Hoje, existe zero preocupação com o avesso, os pontos do bordado são livres e o importante mesmo é a nossa voz, o que queremos expressar”, ressalta.
Pensa o mesmo a artista Thais Ribeiro, que explora o trabalho com a linha em obras de tecido, papel e até mesmo materiais recicláveis (como tampas de pote de sorvete), no ateliê que vive e trabalha em São Paulo. Pesquisadora da Arte Têxtil desde 2015, ela observa uma revolução dos avessos que veio para mostrar o poder e a beleza do caos que existe em cada uma das pessoas.
“É uma eterna observação sobre o nosso caminhar. Assim como os versos dos meus bordados, meus caminhos por vezes parecem confusos, mas quanto mais eu observo e consigo perceber a beleza especial deles, mais vou me pacificando com meus caminhos. É uma grande metáfora da vida”, completa.
Tal movimento se percebe em obras dela como Fluxograma de mim, de 2020, com bordado sobre algodão, em que são vistos pontos alinhados, outros cruzados, tanto no avesso quando na frente. Um cruzamento de pontos e oscilações entre o externo e o interno, que, segundo ela, se intensificou e se observou principalmente na pandemia do Covid-19.
“Tem muitas artistas resgatando o bordado e as versões não ‘ordenadas’ dele, fora de pontos e estruturas fechadas. Acho que estamos todos, principalmente depois da questão da pandemia, olhando pra dentro e descobrindo nossos próprios avessos, a riqueza que está nos caminhos que nos levam até onde chegamos agora”, afirma.
Redes sociais/site dos entrevistados:
@ninacast_art,
@delameida_,
@terezadearruda.
Sobre mim e meus trabalhos @anagadelhaarte
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