A arte na psicologia junguiana: uma experiência pessoal
Jung, a seu turno, ao longo de sua obra, analisa e interage com a arte de diversas maneiras.
por Luiz Humberto Carrijo dos Santos*
O que é arte? O dicionário Houaiss utiliza-se de vinte e duas acepções vernaculares para tentar aclarar o conceito de arte. Uma delas é: “produção consciente de obras, formas ou objetos, voltada para a concretização de um ideal de beleza e harmonia ou para a expressão da subjetividade humana”.
Embora de definição complexa, principalmente na contemporaneidade, fato é que o homem sempre se expressou através da arte. Vários filósofos já decantaram seu amor e prestígio por ela.
Arthur Schopenhauer via na arte, na compaixão e no ascetismo as únicas saídas do homem para a miséria da vida e sua falta de sentido. Nietzsche e Sartre, claramente influenciados por aquele filósofo, também vislumbravam na arte a possibilidade de penetração mais profunda na alma humana,produzindo subjetividades que salvariam o homem do enquadramento rasteiro e massificado da vida. Freud citava os poetas que, segundo ele, podiam traduzir o intraduzível; penetrar enigmas que a consciência só de longe se aproximava; trazer à luz compreensões e profundidades psicológicas só acessíveis à poesia.
Jung, a seu turno, ao longo de sua obra, analisa e interage com a arte de diversas maneiras. Ele tenta separar o olhar sobre o fazer artístico daquele da leitura psicológica e simbólica do que se expressa nas obras de arte. Assim ele comunica seu entendimento:
Obras em Destaque
“Apenas aquele aspecto da arte que existe no processo de criação artística pode ser objeto da psicologia, não aquele que constitui o próprio ser da arte. (…) Ou seja, a pergunta sobre o que é a arte em si, não pode ser objeto de considerações psicológicas, mas apenas estético-artísticas” (JUNG, 2013,p. 65).
Continua ele:
“Portanto, quando falamos da relação entre a psicologia e a arte, estaremos tratando apenas daquele aspecto da arte que pode ser submetido à pesquisa psicológica sem violar a sua natureza.” (JUNG ,2013. p. 66)
O próprio Jung experienciava o fazer artístico, embora ele não se considerasse um artista. Podemos ver sua produção artística, talvez mais profícua no seu Livro Vermelho que foi inclusive exposto como uma das obras de arte principais da Bienal de Veneza de 2013.
Em outro momento, Jung expressa sua crença no poder do fazer artístico e em sua capacidade de ampliação de consciência e integração de conteúdos inconscientes.
“Muitas vezes as mãos sabem resolver enigmas que intelecto em vão lutou por compreender. Modelando um sonho, podemos continuar a sonhá-lo com mais detalhes, em estado de vigília, e um acontecimento isolado, inicialmente ininteligível, pode ser integrado na esfera da personalidade total, embora inicialmente o sujeito não tenha consciência disto.” (JUNG, 2011 8/2 p. 33)
Doravante, segue uma pequena amostragem e um relato pessoal de meu trabalho artístico mais recente no universo das artes visuais (técnica mista, massa e tinta acrílicas sobre prancha de MDF). Utilizo-me deste trabalho para transitar e discutir sobre a tensão entre cores e formas e tangenciar questões sobre como podemos nos equilibrar enredados nos movimentos próprios da vida.
A produção artística encerra uma solidão necessária, um certo ritual, uma aproximação da interioridade, da espiritualidade.
O convívio com tintas remete a uma infinidade de cores, de nuances, de possibilidades,de tempestades e de liberdades.
As cores materializadas em tintas, abraçadas à flexibilidade -e depois rigidez- da massa acrílica produzem movimentos quase esculturais que ensaiam sair da tela e ganhar o espaço. Brincar com as tintas é o lúdico que liberta movimentos que a consciência desconhece. Neste momento gera-se uma tensão sem a qual nada se cria, a tensão das cores que querem só ziguezaguear e o olhar da consciência que busca por formas. Parece que a consciência precisa das formas, busca-a quase desesperadamente na dança das cores, mas estas querem só brincar. Uma consciência que busca por contornos e referências e uma alma que quer ser o não-ser, o não catalogado, o não decifrado. Esta tensão nunca acaba; quando parece que o equilíbrio das cores e das formas foi atingido, ele se esvai, surgem novas tensões.
Equilíbrio distante. Assim ensina o fazer artístico. Nele experimento a efemeridade das coisas na vida, a necessidade de tensões que produzem superação, integração e novos equilíbrios. A premência de procurarmos o equilíbrio nas formas, no entendimento, na clareza, mas também na ausência disto tudo, no silêncio, no vazio, na solidão, na imaterialidade das cores, na combinação do azul turquesa, do amarelo limão e do verde oliva com os acordes do Réquiem de Chopin.
Abaixo segue texto produzido de mãos dadas com o fazer artístico (produção dos quadros):
Da escuridão se fez a luz e toda luz sempre volta para o escuro de onde nasceu.
Tudo o que existe transita nesta tensão entre luz e escuridão. Preto e Branco. Tudo e nada As cores ao serem criadas, por amor, recriaram quem as criou.
Nós, humanos, que surgimos muito depois delas, nelas nos embriagamos e nelas repousamos nossos mais inalcançáveis sonhos e os mais terríveis pesadelos.
Elas brincam como os nossos sentidos e com os mais profundos sentimentos. Nas cores buscamos formas, imagens, mas elas são fugidias.
As cores só querem brincar, logo que se transformam em fatos mentais ficam aprisionadas. Elas nos remetem ao TAO, àquilo que só quer brincar. Que quer se desgarrar das formas.
O convite é para brincar com elas.
Deixar que elas nos penetrem e que passeiem por nossas almas.
A harmonia está em passear com elas, como se as tirássemos para dançar e elas mesmas fossem a melodia.
***
Me encanto com estas cores que procuram por formas, mas acabam voltando a ser só cores. Cores pululam. Uma leveza é perceptível.
O amarelo é fundamental. Ele encerra um enigma. Cansei de correr das cores, elas me inundam.
De onde vieram as cores? Não sei. Só sei para onde me levam. Para a mais perfeita e caótica harmonia.
No caos há harmonia. São quase irmãos gêmeos. Só os loucos me entendem.
Transformar caos em harmonia é parte de minha sina. Nem sempre encontro tal sintonia.
Faz parte da efemeridade e inescrutabilidade da vida. Equilíbrio distante…
Equilíbrio no fluxo… Equilíbrio no uno…
*Luiz Humberto Carrijo dos Santos. Médico psiquiatra. Especialista em Psicologia Junguiana pelo IJEP -São Paulo. Analista Junguiano em formação.
Consultório: Rua dos Girassóis 180. 34 -3235-1964 . Bairro: Cidade Jardim, Uberlândia – MG.
Referências
JUNG, C.G – A natureza da psique. Ed.Vozes: Petrópolis, 2011.
JUNG, C.G – O espírito na arte e na ciência. Ed.Vozes: Petrópolis, 2013
MOSÉ, V. – Nietzsche hoje. Sobres os desafios da vida contemporânea. Ed. Vozes: Petrópolis, 2013.