Quando a má arte é boa e quando ela é apenas má.

1. O dilema do olhar contemporâneo
O que diferencia uma obra “ruim” de uma obra propositalmente desconfortável? Seria a técnica, a intenção, o contexto, ou simplesmente o olhar de quem observa? Em um mundo onde tudo pode ser arte, o julgamento de valor sobre o que é bom ou mau atravessa um campo minado de subjetividades, instituições e narrativas.
Este artigo propõe um mergulho em dois territórios: o da má arte que é boa (porque é crítica, provocadora, consciente) e o da arte que é apenas mal resolvida, fruto da ausência de embasamento, explorando os limiares entre o erro produtivo e o estéril.
2. A má arte como ferramenta de ruptura
Em 1978, a curadora Marcia Tucker lançou a exposição Bad Painting no New Museum de Nova York. Ali, artistas como Neil Jenney e Joan Brown subverteram padrões do “bom gosto” com pinturas grosseiras, tematicamente desajustadas, rúfias na execução. Não se tratava de incompetência, mas de um gesto.
Essa rebelião estética visava desmantelar a ideia de progresso linear da arte. Artistas como Philip Guston abandonaram o expressionismo abstrato para criar imagens quase cartunescas que satirizavam o racismo, o fascismo e a própria abstração. O resultado: crítica, espanto, rejeição e, depois, reconhecimento.

O que une esses artistas é a escolha deliberada pelo erro como linguagem. O feio, o cafona, o “infantil” viram instrumentos de questionamento. Como se cada pincelada mal dada dissesse: “e se isso também fosse arte?”
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3. O feio como crítica ao sistema
Nos anos 1980, nomes como Albert Oehlen e Martin Kippenberger levaram esse gesto ainda mais longe. Suas obras eram não apenas feias, mas ofensivas: sexualizadas, toscas, ásperas. Mais do que chocar, queriam colapsar o sistema de legitimação da arte.
A má arte, aqui, é uma ferramenta de crítica institucional. A beleza técnica tradicional deixou de ser métrica de valor. O que vale é a capacidade da obra de fazer o espectador pensar, desconfiar, desestabilizar.
Exemplo disso é Jim Shaw, que em 1991 apresentou pinturas adquiridas em brechós. Eram obras sinceras, mas mal feitas. Sua exposição gerou uma reflexão sobre quem decide o que merece estar num museu e o que não.
4. Quando a má Arte é só má
Nem toda má arte é pensada. Existe aquela que é simplesmente fruto da falta de preparo, de estudo, de consciência histórica. E isso não é uma ofensa ao artista, mas um alerta para a necessidade de formação.
Segundo o Art History Project, obras desprovidas de intencionalidade crítica dificilmente produzem impacto duradouro. Elas são expressivas? Sim. Mas talvez mais pessoais do que artísticas. Um quadro pode comover um amigo ou familiar, mas não necessariamente entrar no debate da história da arte.
A arte depende de contexto. Uma obra que não se conecta com nenhuma tradição, que não responde a nenhum debate, é válida como expressão, mas pode carecer de relevância histórica.
5. A arte é ruim ou ingênua(naive)?
Arte ruim pode não ser ruim. Pode ser ingênua. Arte Naive, como rótulo, carece de muitas nuances e também é chamada de Art Brut, arte primitiva, ou arte marginal. Arte marginal pode descrever obras de arte criadas fora da influência de uma tradição estética ou acadêmica dominante.
O interesse ocidental pela arte marginal foi realmente impulsionado por Jean Dubuffet, um pintor e escultor francês que se tornou obcecado pela ideia de que o treinamento acadêmico formal restringia a expressão pessoal. Dubuffet buscava em crianças, pacientes psiquiátricos e prisioneiros sem educação uma forma de arte mais “pura”.

Era uma ideia profundamente problemática, para dizer o mínimo, que popularizou artistas incríveis como Aloïse Corbaz e Adolf Wölfli e estabeleceu um fascínio cultural pela arte que não apenas quebrava as regras, como também parecia nem mesmo ter consciência delas

6. Ruim hoje, bom amanhã
Chamar qualquer obra de arte de “ruim” sem detalhes adicionais corre o risco de cair em esnobismo, e tem repetidamente levado os críticos à posição de nerds da história, à medida que a cultura evolui, e a arte considerada irrefutavelmente ruim se mostra à frente de seu tempo.
O crítico Felix Deriege chamou a modernização da forma nua de Olympia, de Edouard Manet, de um retrato da feiura perfeita: “Seu rosto é estúpido, sua pele cadavérica”.

O crítico John Ruskin afirmou que a representação misteriosa e evocativa de fogos de artifício de James Whistler sobre os Jardins Cremorne, em Londres, chamada Noturno em Preto e Dourado, era tão preguiçosa que chegava a ser um insulto, como “jogar um pote de tinta na cara do público”.

Nos últimos anos, o pêndulo parece ter se afastado da crítica agressiva, influenciado pelo advento do pós-modernismo, pela saturação irônica ou pela mercantilização da arte como moeda de troca para os ricos em feiras de arte. Em outras palavras, não seja tão crítico, arte “ruim” pode ser intencionalmente ruim.
7. Subjetividade não é tudo
É comum ouvirmos que “gosto não se discute”. Mas há diferenças entre o gosto individual e os critérios que estruturam o campo da arte. Subjetividade existe, mas não é uma carta branca para tudo ser considerado arte com A maiúsculo.
O que faz uma obra ser relevante é seu impacto, sua coerência interna, sua relação com seu tempo. A subjetividade pode ser ponto de partida, mas é preciso algo mais; ter intenção, contexto, narrativa.
Obras que apenas reproduzem clichês ou são mal feitas por desconhecimento, têm pouco a oferecer para além da esfera emocional imediata. E a arte é, antes de tudo, uma linguagem: precisa comunicar com inteligência.
8. Má arte com propósito x arte mal resolvida
Propor uma arte que seja “ruim de propósito” exige coragem. E, paradoxalmente, exige muito mais formação do que uma arte bem-acabada. É preciso saber onde se está errando, por quê, e a favor de qual discurso.
Já a arte mal resolvida, por mais autêutica que seja, pode cair na esterilidade se não estiver ligada a um pensamento crítico. Aqui mora a diferença: a boa má arte é desconforto com sentido; a outra é ruído passageiro.
Isso não é elitismo. É responsabilidade artística. Não se trata de excluir, mas de ampliar o repertório. Ser artista hoje é também entender onde sua obra se insere, o que ela propõe, o que ela tensiona.
9. A coragem de ser ruim com propósito
A arte ruim não é um problema em si. Pode ser escolha, pode ser crítica, pode ser ruptura. Mas precisa vir acompanhada de uma escuta atenta ao mundo, de uma disposição para o risco, de uma relação honesta com a história da arte.
Ser ruim com propósito é um gesto sofisticado. Requer afinação. Requer visão. Requer um compromisso com a linguagem.
Fora disso, a má arte é apenas má. E não há discurso que a salve se ela não se propuser a dizer algo maior do que o próprio gesto de existir.
Referências:
- https://www.artsy.net/article/artsy-editorial-bad-art-good
- https://www.arthistoryproject.com/essays/is-there-such-a-thing-as-bad-art/
- https://medium.com/find-your-original/is-there-a-difference-between-good-and-bad-art-or-is-it-all-subjective-470800b4086b
- https://www.metmuseum.org/