arte erótica

IA e Fetichização: como o algoritmo molda o desejo no campo da arte (+18)

Por Paulo Varella - setembro 29, 2025
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O erotismo sempre desafiou convenções artísticas, mas a chegada da inteligência artificial abriu um novo campo de disputa: quem decide o que é desejável? Se antes o olhar do artista era subjetivo e diverso, agora é o algoritmo que dita padrões de beleza — reproduzindo estereótipos, silenciando corpos e moldando uma estética erótica padronizada.

1. Do erotismo clássico ao corpo algorítmico

O erotismo sempre foi a trincheira onde a arte mediu forças com o poder. Das figuras gravadas em vasos gregos às estampas de Utamaro no Japão, a representação do corpo desejante nunca se restringiu ao prazer: era também política, desafio, experimentação. Em cada época, o nu carregou não apenas carne, mas ideias.

No século XIX, Courbet chocou a moral burguesa com a frontalidade de A Origem do Mundo. Já no século XX, Egon Schiele distorceu membros e genitálias em ângulos agudos, expondo a fragilidade do corpo e a brutalidade do desejo.

No Brasil, Tarsila pintou nus tropicais que uniam modernismo e sensualidade, enquanto Wesley Duke Lee, nos anos 1960, levou o erotismo para o terreno das performances e happenings, confrontando a ditadura com corpos livres.

L’Origine du monde (A Origem do Mundo em francês), de 1866, é um quadro pintado pelo realista Gustave Courbet a pedido do diplomata turco otomano Khalil-Bey, que solicitou ao pintor uma pintura que retratasse o nu feminino na sua forma mais crua, por ser colecionador de imagens eróticas.

Mas a partir dos anos 2000, algo mudou: o erotismo entrou no fluxo digital. Primeiro em GIFs e memes, depois em realidades virtuais e deepfakes, até desembocar na inteligência artificial generativa. O corpo deixou de ser apenas representado; passou a ser sintetizado. Já não dependemos de modelos de carne e osso — um prompt bem escrito é suficiente para que a máquina produza corpos ideais, perfeitos, inatingíveis.

Se antes a transgressão erótica vinha do artista que ousava pintar o indizível, hoje a provocação se desloca: não é mais o pincel que desafia, mas o algoritmo que dita. O problema é que, diferentemente do artista, o algoritmo não deseja. Ele estatiza o desejo: busca padrões no oceano de imagens disponíveis e devolve a média, a redundância, o corpo estatisticamente provável.

É nesse ponto que o erotismo se torna algorítmico: o corpo erótico, longe de ser singular, emerge como um catálogo de repetições. Jovem, branco, magro, hipersexualizado — um padrão que ecoa as mesmas fórmulas de revistas masculinas dos anos 1990, mas agora com a autoridade de uma suposta neutralidade tecnológica.

2. O que dizem os dados e as fontes

A promessa era de diversidade infinita. Afinal, se a inteligência artificial pode gerar qualquer coisa, por que não corpos múltiplos, desejos insólitos, combinações impensáveis? O que se vê, no entanto, é outra história.

Pesquisadores da University of Washington analisaram milhares de imagens eróticas produzidas por IA em 2024. O resultado foi pouco surpreendente e, ao mesmo tempo, perturbador: mais de 80% das figuras correspondem a mulheres brancas, magras, jovens, com feições eurocêntricas e curvas ajustadas ao molde da indústria pornográfica americana. Não é que a IA seja criativa demais — é que ela não é criativa o bastante.

As bases de treinamento contam a razão. Plataformas como LAION-5B, usadas por modelos generativos como Stable Diffusion, são construídas a partir de bilhões de imagens coletadas da internet. O algoritmo aprende, mas aprende com aquilo que já circula — e o que já circula, no campo erótico, é marcado por décadas de hegemonia ocidental. O corpo negro surge menos como protagonista do desejo e mais como fetiche exótico. Corpos gordos, maduros ou dissidentes aparecem como exceções, quase aberrações estatísticas.

O algoritmo não cria novos desejos, apenas replica estatísticas de imagens pré-existentes”, resume a pesquisadora Kate Crawford em entrevista à ArtReview. A frase expõe o paradoxo: quanto mais sofisticada a ferramenta, mais ela nos devolve o óbvio.

Na prática, a IA funciona como um espelho ampliado dos preconceitos visuais. Se a pintura clássica europeia já centralizava um ideal branco e masculino de beleza, agora esse viés se expande globalmente com uma velocidade inédita. Em vez de ampliar o repertório do erótico, a máquina o restringe — transformando o desejo em uma fórmula previsível e globalizada.

Esse processo tem efeitos concretos. Artistas que buscam tensionar o erotismo com corpos dissonantes — não binários, racializados, fora do padrão — precisam “lutar” com o prompt. É preciso insistir, repetir, acrescentar descrições quase militantes para que o sistema aceite gerar aquilo que escapa da norma. Mesmo assim, muitas vezes o resultado vem adulterado: se pede uma mulher indígena, o algoritmo devolve uma modelo branca com cocar.

O erotismo algorítmico, portanto, não é apenas estética: é política. Ele define quem merece ser desejado — e quem continua invisível.

3. Repercussão e contrapontos

Se o algoritmo insiste em repetir corpos iguais, os artistas respondem tentando torcer a máquina. Há quem use prompts como quem escreve poesia — testando combinações improváveis, tensionando a gramática da IA até que surjam corpos que escapem do padrão. O artista digital britânico Jake Elwes, por exemplo, vem subvertendo datasets ao injetar imagens queer e não normativas em treinamentos locais, criando figuras híbridas que desestabilizam o olhar. No Brasil, coletivos como o XOXO exploram o erotismo dissidente em plataformas de difusão, criando corpos trans, ciborgues ou simplesmente grotescos, em um esforço de arrancar da IA aquilo que ela não quer dar.

Mas não é só de arte que se trata. As próprias plataformas têm tentado censurar a produção erótica em IA. Modelos como o DALL·E, da OpenAI, ou o MidJourney, restringem a geração de nudes ou imagens sexualizadas. O motivo alegado é evitar pornografia, mas o efeito colateral é apagar também o erotismo artístico — uma distinção que nunca foi simples. A censura digital repete o velho dilema da história da arte: o que diferencia um nu de Courbet de um conteúdo pornográfico explícito? No espaço algorítmico, essa linha é traçada por filtros automáticos.

Enquanto isso, o mercado observa em silêncio — e em alguns casos, com apetite. Nos últimos dois anos, surgiram colecionadores especializados em erotismo digital, comprando NFTs de imagens geradas por IA que beiram a pornografia artística. Há casos de séries vendidas em leilões online por mais de US$ 50 mil. O argumento é sempre o mesmo: o proibido atrai, e a escassez de imagens eróticas liberadas em plataformas abertas aumenta o valor das que escapam da censura.

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Katsushika Hokusai, Tako to ama 蛸と海女 (Dream of the Fisherman’s Wife) from Kinoe no Komatsu, 1814.

A crítica institucional, por sua vez, vacila. Enquanto museus ainda hesitam em exibir imagens eróticas digitais — temendo o escândalo público — algumas galerias menores apostam em mostras híbridas, onde outputs de IA são impressos em grande formato e misturados a fotografias e pinturas. É como se o erotismo digital precisasse vestir a roupa analógica para ser legitimado como arte.

Há, portanto, dois movimentos simultâneos: de um lado, a repetição automática dos estereótipos do desejo; de outro, artistas e colecionadores tentando reabrir brechas no imaginário erótico. O primeiro molda massas, o segundo cultiva exceções. Entre ambos, fica a pergunta: quem tem mais força — o algoritmo que repete ou o artista que resiste?

4. Relevância para o Brasil

O Brasil sempre soube lidar com o corpo como campo de disputa. Do modernismo tropicalista às performances dos anos 1970, o erotismo aqui nunca foi apenas sensualidade: foi também crítica, ironia, afirmação política. Adriana Varejão usou a carne pintada como metáfora de colonização e violência; Juliana Notari ergueu em Pernambuco a escultura monumental Diva, um sexo feminino cravado no morro, que dividiu opiniões entre arte e provocação gratuita; Wesley Duke Lee transformou happenings em laboratórios do desejo reprimido sob a ditadura.

Diva é uma intervenção rural aberta na paisagem da Usina de Arte, na Zona da Mata Sul de Pernambuco. A obra é fruto de uma residência artística que a artista fez através de um convênio da Usina com o MAMAM – Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães, no Recife, Pernambuco.

Essa tradição torna o Brasil terreno fértil para repensar o erotismo algorítmico. Em um país marcado por diversidade racial e de gênero, mas também por profundas desigualdades, a questão não é apenas estética — é de representatividade. Se a IA tende a invisibilizar corpos fora do padrão eurocêntrico, cabe aos artistas brasileiros tensionar esse apagamento. E alguns já o fazem: coletivos de arte digital em São Paulo e Recife vêm explorando prompts para criar corpos negros, gordos e trans, desafiando a padronização do algoritmo.

A ironia é que, justamente em um país onde o corpo é historicamente central, o erotismo em IA aparece como um novo espelho de desigualdades. Ao gerar figuras femininas com feições europeias, cabelos loiros e pele clara, os modelos ignoram o imaginário afro-brasileiro e indígena que compõe boa parte da cultura erótica nacional. A luta contra essa homogeneização não é apenas artística: é também social.

Do ponto de vista de mercado, o Brasil ainda caminha devagar. Enquanto na Europa e nos Estados Unidos já se vendem séries de erotismo digital em formato NFT, aqui a discussão esbarra em duas barreiras: a censura das plataformas e o preconceito que associa erotismo diretamente à pornografia. Isso cria um campo ambíguo: colecionadores têm interesse, mas hesitam em se expor. O que não impede que pequenas galerias e mostras independentes testem esse território, muitas vezes com obras impressas em fine art — como se fosse preciso fixar no papel aquilo que o digital insiste em borrar.

O resultado é um paradoxo brasileiro: temos a tradição, temos a diversidade e temos a urgência do debate. Falta apenas vencer o receio de que o erotismo algorítmico seja visto apenas como escândalo — e não como um novo capítulo de uma história antiga.

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Estudou cinema na NFTS (UK), administração na FGV e química na USP. Trabalhou com fotografia, cinema autoral e publicitário em Londres nos anos 90 e no Brasil nos anos seguintes. Sua formação lhe conferiu entre muitas qualidades, uma expertise em estética da imagem, habilidade na administração de conteúdo, pessoas e conhecimento profundo sobre materiais. Por muito tempo Paulo participou do cenário da produção artística em Londres, Paris e Hamburgo de onde veio a inspiração para iniciar o Arteref no Brasil. Paulo dirigiu 3 galerias de arte e hoje se dedica a ajudar artistas, galeristas e colecionadores a melhorarem o acesso no mercado internacional.

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