Kasing Lung
Nas vitrines iluminadas de Tóquio, Seul e Xangai, jovens fazem fila por horas em frente a lojas da Pop Mart para conseguir um boneco minúsculo, de olhos esbugalhados e dentes afiados. O objeto custa menos que um jantar barato, mas pode alcançar centenas de dólares em revendas online. Não se trata de arte no sentido tradicional, mas também não é apenas brinquedo. É um híbrido estranho, grotesco e fofinho, que ganhou o nome de Labubu — e, com ele, uma legião de fãs. Essa febre integra um fenômeno maior: o chamado “IRL Brain Rot”, uma estética que transforma o nonsense da internet em mercadoria desejada e, de certa forma, em linguagem artística.
A expressão nasceu nos fóruns digitais, primeiro como piada. “Brain rot” designava aquele mergulho sem fim em vídeos curtos, memes absurdos e humor nonsense que parecem corroer a mente. Com o tempo, a sigla IRL (in real life) colou ao termo, indicando a materialização física dessa estética: produtos estranhos, brinquedos monstruosos, objetos sem função prática, mas carregados de uma aura entre o repulsivo e o irresistível.
O Labubu, criado pelo artista tailandês Kasing Lung e produzido pela gigante chinesa Pop Mart, é o exemplo mais evidente. Uma criatura de olhos vidrados, dentes de coelho e sorriso desconfortável, que parece saída de um pesadelo infantil. Em pouco tempo, tornou-se febre em toda a Ásia, alcançando status de culto global. Em 2023, a Pop Mart registrou mais de US$ 1,4 bilhão em receitas, grande parte impulsionada por figuras colecionáveis lançadas em edições limitadas.
Para críticos, trata-se de uma estética que dialoga diretamente com a cultura de memes, incorporando o que antes era considerado lixo visual — distorções, exageros, hibridismos — ao centro do consumo cultural. “O Labubu é feio, engraçado e adorável ao mesmo tempo”, escreveu o New Yorker em 2024, descrevendo-o como “um ícone do absurdo contemporâneo” (New Yorker).
Não é coincidência que esse sucesso ocorra entre Gen Z e millennials, gerações acostumadas a lidar com sobrecarga de imagens, estética do improviso e humor autodepreciativo. O IRL Brain Rot é, nesse sentido, tanto um reflexo da saturação cultural quanto uma válvula de escape: colecionar o bizarro torna-se uma forma de rir da própria condição digital.
Os memes começaram como imagens caseiras, editadas às pressas em programas rudimentares. Com o tempo, tornaram-se linguagem universal, mais veloz e disseminada do que qualquer escola estética formal. Hoje, a iconografia do meme, olhos esbugalhados, filtros exagerados, legendas sem sentido, já não se limita às telas: transbordou para a moda, o design e, inevitavelmente, para a arte.
A estética dos collectibles bizarros é herdeira direta dessa lógica. O Labubu poderia muito bem ser um sticker de WhatsApp: expressa um sentimento de estranhamento, uma mistura de susto e graça, algo que faz rir porque não faz sentido. O sucesso desses bonecos é, em parte, o sucesso de um meme tridimensional.
O paralelo com movimentos artísticos históricos é inevitável. O dadaísmo, no início do século XX, já havia celebrado o absurdo e a rejeição às normas de gosto. A pop art, nos anos 1960, elevou objetos banais, de sopas enlatadas a HQs, ao estatuto de arte. O kitsch, por sua vez, sempre foi combustível para o riso e para a crítica social. O IRL Brain Rot é um descendente contemporâneo dessas tradições, atualizado pela lógica das redes sociais e pela estética viral.
Um detalhe curioso: se Warhol ironizava a cultura de consumo ao repetir a Campbell’s Soup em serigrafias, hoje os jovens repetem o gesto ao estocar caixas de blind boxes da Pop Mart, embalagens fechadas em que não se sabe qual boneco virá. A lógica é a mesma: transformar o banal em fetiche, o inútil em objeto de desejo.
O crítico de design Jason Farago descreveu essa estética como “um colapso entre fofura e grotesco que funciona como comentário inconsciente sobre a vida digital”. Em outras palavras: colecionar monstros de plástico não é apenas passatempo; é um reflexo das ansiedades de uma geração que aprendeu a rir de si mesma antes que o mundo risse dela.
À primeira vista, os bonecos de vinil da Pop Mart ou de outras marcas asiáticas poderiam ser confundidos com brinquedos de prateleira infantil. No entanto, o destino de muitos desses objetos é bem diferente. Edições limitadas, assinadas por artistas ou lançadas em colaborações especiais, rapidamente esgotam e aparecem em plataformas de revenda por valores muito acima do preço original. O que começa em quinze dólares pode chegar a quinhentos, ou até mais, em sites de leilão online.
Esse movimento já despertou o interesse do mercado de arte. Casas de leilão como Sotheby’s e Phillips vêm testando categorias híbridas que incluem não apenas obras tradicionais, mas também colecionáveis, sneakers e memorabilia cultural. Em 2024, um lote de figuras Labubu customizadas foi vendido em Hong Kong por quase vinte vezes o valor inicial. O sinal é claro: aquilo que parecia trivial começa a ganhar contornos de investimento.
As galerias também observam essa transição com curiosidade. Feiras de arte contemporânea na Ásia e na Europa já abriram espaço para instalações e vitrines dedicadas a collectibles, muitas vezes dialogando com a tradição do design de autor. Essa aproximação tensiona fronteiras antigas. Afinal, onde termina o brinquedo e começa a arte? Quando um objeto de plástico passa a ser considerado uma obra com valor cultural e estético?
Há quem veja nesse fenômeno um risco de banalização. Críticos alertam que a lógica da escassez artificial e do hype pode transformar a experiência artística em simples especulação. Outros, contudo, lembram que o mesmo se dizia da pop art nos anos 1960, quando latas de sopa e caixas de sabão subiram às paredes de museus. Hoje, poucos duvidam da relevância histórica de Warhol e Lichtenstein.
O fato é que o mercado responde ao desejo coletivo. E se novas gerações encontram significado em colecionar criaturas grotescas e fofinhas, não é improvável que museus e colecionadores institucionais comecem a legitimar esses objetos como parte da narrativa da arte contemporânea.
O fascínio pelos colecionáveis estranhos não é apenas um modismo passageiro. Para muitos artistas, trata-se de um campo fértil de experimentação estética e conceitual. A mistura de grotesco e fofura, somada à lógica da viralidade, abre caminho para novas formas de expressão que dialogam diretamente com a sensibilidade contemporânea.
A inspiração pode vir da cultura de memes, mas o resultado vai além da piada. Ao transformar o nonsense em objeto palpável, artistas criam uma ponte entre o imaginário digital e a experiência física. Esse trânsito entre mundos tem potencial crítico. Brincar com a estranheza é também revelar a saturação de imagens e a overdose de estímulos que marcam a vida conectada.
No Brasil, esse diálogo encontra terreno fértil. A tradição carnavalesca, com sua iconografia extravagante e seu humor irreverente, já naturalizou a convivência entre o grotesco e o lúdico. O mesmo ocorre em manifestações populares como o bumba-meu-boi ou o maracatu, que transformam o exagero em beleza e crítica. Há ainda a vitalidade da arte urbana, que incorpora personagens caricatos e coloridos em murais espalhados por grandes cidades. Todos esses exemplos mostram como o absurdo e o cômico podem ser ferramentas poderosas de invenção estética.
Artistas contemporâneos podem encontrar nos colecionáveis bizarros uma forma de questionar o que se entende por valor artístico. É possível imaginar instalações que combinem esculturas grotescas com ambientes imersivos, ou performances que transformem o público em coautor de criaturas esquisitas. O humor, quando bem trabalhado, não enfraquece o discurso. Pelo contrário, pode ser a chave para aproximar públicos diversos e provocar reflexões inesperadas.
Há também um componente de resistência. Em um mercado que insiste em associar relevância à escassez e ao investimento milionário, apostar no ridículo é quase um ato político. É uma maneira de lembrar que a arte não precisa ser solene para ser significativa, e que a graça pode conviver com a crítica de forma produtiva.
A trajetória dos colecionáveis bizarros mostra que a arte contemporânea não nasce apenas nos ateliês ou nas salas de museus. Muitas vezes, ela emerge do riso, da estranheza e daquilo que parecia descartável. O fenômeno do IRL Brain Rot revela um deslocamento fundamental: a cultura de memes, antes vista como passatempo banal, agora molda gostos, inspira artistas e desafia os critérios de valor no mercado de arte.
Não se trata de celebrar bonecos de vinil como obras-primas, mas de reconhecer que eles expressam uma sensibilidade do nosso tempo. O grotesco e o fofinho, quando colocados lado a lado, condensam contradições da era digital: excesso de informação, humor autodepreciativo, busca por identidade em meio ao caos. Transformar essa estética em objeto de coleção é, de certo modo, materializar as ansiedades e os encantos de uma geração.
Para artistas, a lição é clara. Não é preciso evitar o estranho ou o risível. Muitas vezes, é justamente nesses territórios marginais que surgem as ideias mais potentes. Do carnaval brasileiro às ruas de Tóquio, do meme à galeria, o humor absurdo prova que a arte também pode ser divertida, acessível e, ainda assim, profundamente crítica.
Ao final, talvez a pergunta não seja se o Labubu é arte, mas por que tantas pessoas encontram nele algo que as move. E é nesse espaço de emoção, surpresa e riso que a arte continua viva, reinventando-se sem pedir permissão.
A Pinacoteca de São Paulo celebra 120 anos de história com o lançamento de publicação…
O Ateliê 31 apresenta Autoficções, exposição individual de Cecília Maraújos com curadoria de Martha Werneck,…
Damien Hirst (1965) é um artista contemporâneo inglês nascido em Bristol. Trabalhando com instalações, esculturas,…
A representatividade e diversidade na arte contemporânea global referem-se à inclusão de artistas de diferentes…
O MAC Niterói (Museu de Arte Contemporânea de Niterói) recebe a exposição “Tirando Onda”, do…
O MASP – Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand exibe, de 5 de…