Assim como os artistas da Flandres católica foram influenciados pela pintura italiana, a Holanda1 predominantemente protestante também seguiu os mesmos passos, inspirando-se nas obras barrocas produzidas na virada do século XVII, com composições em que as formas abertas e fechadas se destacam frente aos contrastes de sombra e luz.
De acordo com Gombrich (2000) os holandeses eram devotos, sóbrios e trabalhadores incansáveis, incomodando-se, a maioria deles, com a pompa excessiva e os costumes da elite meridional. No entanto, conforme a prosperidade se aproximava dos eleitos, mais branda se tornava essa espécie de austeridade. A classe abonada e orgulhosa foi a primeira a apreciar os artistas que se dedicavam à pintura de retratos.
O Barroco holandês se distanciou da igreja e produziu uma arte voltada preferencialmente para os espaços domésticos, a vida cotidiana e o mundo do trabalho, dando prioridade para a pintura de gênero, retratos e natureza-morta. Além das representações do dia a dia da classe média, surgiram também os motivos arquitetônicos, as paisagens e dentro dessa categoria – as marinhas.
O naturalismo se firmou na arte holandesa e de acordo com Hauser (2003) o que mais interessava era a representação dos bens em posse do indivíduo, da família, da comunidade e da nação: os ambientes, a paisagem local, a cidade e os arredores.
Na profusão de temas empregados era natural que um ou outro artista pintasse diferentes assuntos, inclusive religiosos, como REMBRANDT van Rijn (1606-1669), embora tenha se tornado o artista mais procurado por pintar retratos ao lado de Frans HALS (ca.1580-1666), outro grande artista na produção de retratos em grupo e individuais.
Outros grandes artistas alcançaram a fama com temas mais específicos, por exemplo: Jan Havicksz. STEEN (ca. 1626-1679), Johannes VERMEER (1632-1675) e Pieter DE HOOCH (1629-1684) e o gravador Adriaen van OSTADE (1610-1685) escolheram cenas de gênero e representações arquitetônicas.
Os artistas, Willem Claesz. HEDA (ca.1593/94-ca.1680/82), Pieter CLAESZ (ca. 1596/97-1660), Willem KALF (1619-1693), Jan Davidsz. DE HEEM (1606-1684), pintaram naturezas-mortas.
Enquanto, os artistas: JanDirksz BOTH (ca.1610/1618-1652), Nicolaes BERCHEM (1620-1683), Aelbert CUYP (1620-1691), Jan van GOYEN (1596-1656), Jacob Isaackszvan RUISDAEL (ca. 1628/9-1682) e seu aluno, Meindert HOBBEMA (1638-1709) optaram por pintar paisagens.
Nos quadros de Frans Hals os modelos são captados em um instante e fixados para sempre na tela. Na ágil, ampla e rápida pincelada, semelhante a um esboço, surge a imagem de um cabelo despenteado, uma larga risada, um olhar caído de tanta bebida, o rosto afogueado, a roupa enrugada. No entanto, suas composições encantam justamente por essa despretensão, uma fotografia espontânea, jamais alcançada por nenhum outro artista do período.
O quadro, O Alegre beberrão, de Frans Hals, segundo Janson (1992, p. 526) “combina a robustez e a amplidão de Rubens com uma concentração no ‘momento dramático’ que só pode ter vindo de Caravaggio, via Antuérpia”.
Frans Hals representa um alegre miliciano levantando seu copo para um brinde. O rosto corado indica altas doses. O chapéu pendente sobre a cabeça deixa entrever os cabelos desalinhados. A boca meio aberta oferece um gole para surpresa do observador. Os olhos brilhantes, o gesto da mão levantada e o copo de vinho em desequilíbrio, concluem a impressão do iminente. Um instante prestes a romper o tempo e o espaço.
Um dos maiores artistas reconhecidos da Holanda é Rembrandt, uma geração após Frans HALS e RUBENS2 mais jovem que VELÁSQUEZ3 (1599-1660) e VAN DYCK4.
Seus autorretratos contam sua vida, sem vaidade, sem pose, com um olhar penetrante disposto a aprender mais e mais acerca dos segredos do rosto humano.
Por volta de 1630, Rembrandt tornou-se um dos artistas mais procurados para pintar retratos e cenas religiosas. A vida lhe proporcionava uma boa fortuna. Todavia, próximo da década de quarenta, seu nível de vida começou a decair, quase levando-o à ruína. Os problemas financeiros e os assuntos pessoais foram surgindo e somaram-se à obra imensa produzida em 1642: os personagens aplicados na Ronda noturna desagradaram os membros da companhia militar, que forneceram os subsídios para a execução da obra.
Em crise, o estilo de Rembrandt alterou-se profundamente a partir de 1650, de acordo com Janson (1992) e sua pintura ganhou uma amplidão pictural e uma sutileza poética comovente.
A obra, Ronda noturna, foi realizada para o salão da guilda de arcabuzeiros, uma das três sedes da Guarda cívica de Amsterdam. Rembrandt foi um dos primeiros artistas a pintar um retrato de grupo com figuras em plena ação.
Os oficiais e os outros atiradores do distrito II de Amsterdam liderados pelo Capitão Frans Banninck Cocq e pelo tenente Willem van Ruytenburch, conhecidos por fazer a ronda noturna na cidade, saem de um portão para o exterior.
O Capitão, vestido de preto, dá a ordem ao Tenente para iniciar a marcha. Os guardas entram em formação. Os nomes dos homens estão escritos sobre um escudo oval ao lado do portão, no alto. Os atiradores estão armados com picos, mosquetes e alabardas. À direita um dos homens toca um grande tambor. O cão aos seus pés parece latir para o ensurdecedor barulho.
Entre os soldados a forte luminosidade destaca a jovem5, mascote da Guarda, em direção contrária dos homens. Atrás o homem de verde levanta o estandarte da Companhia.
As medidas originais do quadro foram alteradas. O lado esquerdo e a parte superior da grande tela foram cortados para o quadro se adaptar à parede de um outro ambiente provisório.
Rembrandt dedicou-se aos autorretratos durante toda sua vida, tanto que existem dezenas, nos quais pode-se acompanhar sua postura durante a maturidade e envelhecimento.
O jovem Rembrandt aplica a luz na face do lado direito, enquanto o restante do rosto é encoberto pela sombra. “É preciso um momento para perceber que ele está olhando para você.” (RIJKSMUSEUM. Tradução nossa6)
Na pintura com cinquenta e quatro anos, Rembrandt descreve os sinais da velhice sem vaidade, digno, candidamente olhando para si mesmo. Entre a gola do casaco, na delicada sombra, surge o queixo duplo. Sob o chapéu: o grisalho nos cachos do cabelo. Na testa franzida, as grossas rugas e sob os olhos: as pálpebras pesadas.
De acordo com Janson (1992) durante a longa carreira, Rembrandt refletiu, passo a passo, a evolução interior do seu estilo. Experimental no início, aberto e autocrítico na velhice.
GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2000. 714 p.
HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 1032 p.
JANSON H. W. História da Arte. Tradução J.A. Ferreira de Almeida; Maria Manuela Rocheta Santos. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 823 p.
RIJKSMUSEUM, Amsterdam, Holanda. Disponível em: http://hdl.handle.net/10934/RM0001.COLLECT.8609 Acesso em: 02 out. 2019.
RIJKSMUSEUM, Amsterdam, Holanda. Disponível em: http://hdl.handle.net/10934/RM0001.COLLECT.5216 Acesso em: 02 out. 2019.
RIJKSMUSEUM, Amsterdam, Holanda. Disponível em: http://hdl.handle.net/10934/RM0001.COLLECT.5217 Acesso em: 07 out. 2019.
RIJKSMUSEUM, Amsterdam, Holanda. Disponível em: https://www.rijksmuseum.nl/en/rijksstudio/artists/rembrandt-van-rijn/objects#/SK-A-4691,1 Acesso em 07 out. 2019.
THE METROPOLITAN MUSEUM OF ART, Nova York, EUA. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/437397 Acesso em 08 out. 2019.
1 No século XVI as províncias do Norte se separaram de Flandres (Antuérpia, Hasselt, Gent, Bruges, Leuven e Bruxelas), a qual ficou sob o domínio da Espanha católica. Isso forçou os ricos comerciantes calvinistas a imigrarem para a República das sete províncias unidas dos Países Baixos, dissolvida em 1795. Atualmente, formados por onze províncias, entre elas: Utrech, Holanda do Norte – Amsterdam, Haarlem, Bergen e outras – Holanda do Sul – Haia, Roterdã, Delft, Gouda, Leiden e outras. A riqueza dos imigrantes, o comércio e a proximidade do porto tornaram os Países Baixos do Norte uma das mais ricas regiões no século XVII.
2 Na obra do artista flamengo Peter Paul RUBENS (1577-1640) as alegorias, os episódios bíblicos, as cenas mitológicas, os eventos históricos, os retratos e as paisagens se destacam vivas e atuais, nas telas gigantescas. O estilo Barroco combinava com o espirito do artista, que sabia como ninguém distribuir as figuras em grande escala, impregnadas de força e paixão
3 Na Espanha, Diego Rodrigues de Silva Y VELÁSQUEZ (1599 -1660) absorveu o programa do naturalismo de Caravaggio e devotou sua arte à observação desapaixonada da natureza, independentemente de leis e convenções.
4 Os inúmeros retratos do rei e da rainha, bem como de membros da corte tornaram Antoon VAN DYCK (1599-1641) um dos artistas mais requisitado na alta sociedade inglesa e influenciaram profundamente a percepção da história aristocrática no século XVII.
5 A jovem parece ser a representação de Saskia van Uylenburgh (1612-1642) a primeira mulher de Rembrandt. Mas falta consenso.
6 It takes a moment to realize that he is peering out at you.Rijksmuseum, Amsterdam, Holanda. Disponível em: https://www.rijksmuseum.nl/en/rijksstudio/artists/rembrandt-van-rijn/objects#/SK-A-4691,1 Acesso em 07 out. 2019.
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