Artigos Acadêmicos

Caravaggio: a verdade dramática

O artista procurava a verdade e queria distância das antigas convenções e da beleza ideal.

Por Fatima Sans Martini - setembro 18, 2022
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Uma das personalidades mais fascinantes da História da Arte, que encarnou o artista em conflito com as convenções sociais, foi CARAVAGGIO (1571-1610), que conquistou fama ao empregar um traço vibrante e um dramático claro-escuro, na ânsia de alcançar a verdade acima da beleza ideal. Os quadros de Caravaggio, com um cristianismo livre dos dogmas teológicos, atraíram tanto os protestantes quanto os católicos. 

Na passagem do século XVI para o XVII, em Roma se discute sobre dois artistas recém-chegados. De acordo com Gombrich (2000), um deles é Annibale CARRACCI (1560-1609), oriundo de Bologna, o outro é Michelangelo Merisi, de Caravaggio, um lugarejo nos arredores de Milão. Ambos cansados do Maneirismo, mas com processos e ideias totalmente diferentes.

Carracci era fascinado, entre outras, pelas obras de RAFAEL e CORREGIO e buscava alcançar a simplicidade, a harmonia e a beleza clássica que via nelas. Caravaggio procurava a verdade e queria distância das antigas convenções e da beleza ideal.

Caravaggio nasceu em Milão, mas desde pequeno viveu na cidade de Caravaggio. A partir de 1584, o jovem Michelangelo frequentou por quatro anos a oficina do pintor maneirista Simone PETERZANO1 e por volta de 1592 foi para Roma, trabalhar no ateliê do também artista maneirista Giuseppe CESARI (1568-1640), onde sua obra e o temperamento tempestuoso começaram a ser conhecidos.

Nas primeiras pinturas: O Rapaz com cesto de frutas2, Narciso3 e os Jogadores de Cartas4, o contraste entre sombra e luz já é evidente, por outro lado, o Cesto de frutas5 indica a busca pelo naturalismo e é considerado uma espécie de protótipo do gênero natureza-morta.

As obras chamaram a atenção do influente cardeal Francesco Maria Bourbon del Monte (1549-1627), que não só comprou os Jogadores de Cartas, como também ofereceu os aposentos do artista no Palazzo Madama. Dessa forma, Caravaggio foi introduzido na elite da sociedade eclesiástica romana, fornecendo-lhe os meios para trabalhar em larga escala.

Sob a tutela do cardeal, Caravaggio foi chamado a realizar o ciclo pictórico da vida de São Mateus – A Vocação, o Martírio e São Mateus e os anjos – nas paredes da Capella Contarelli no interior da Chiesa di San Luigi dei Francesi em Roma.

A encomenda determinava que as pinturas deveriam seguir a iconografia e o rigor histórico a partir de extensas citações de fontes literárias.

Michelangelo Merisi da CARAVAGGIO (1571-1610) Vocação de São Mateus, ca. 1599-1600. Óleo sobre tela,340 ×322.  Capella Contarelli6 ou Capella San Matteo, Chiesa di San Luigi dei Francesi7, Roma, Itália.
Michelangelo Merisi da CARAVAGGIO (1571-1610) Vocação de São Mateus, ca. 1599-1600. Óleo sobre tela,340 ×322. Capella Contarelli6 ou Capella San Matteo, Chiesa di San Luigi dei Francesi7, Roma, Itália.

Duas figuras interrompem a partida do jogo de azar que se passa, quem sabe, em uma taverna. Intensa luz, atravessa a escuridão do local e ilumina o rosto e a mão de Cristo e as costas de São Pedro. Cristo, com um gesto imperioso da mão estendida, aponta para Mateus. Com o dedo apontado para si mesmo, surpreso, Mateus pergunta: Eu? Estais me chamando?

De acordo com Janson (1998) o que torna o quadro tão mágico é a luz que bate sobre as mãos e o rosto de Cristo. A mesma luz que bate sobre as mãos de Mateus, no instante em que sua fé é despertada pela presença divina.

A pintura Vocação de São Mateus ou Chamado de São Mateus, representa um episódio do evangelho e retrata o primeiro encontro entre Jesus e Mateus, um coletor de impostos que abandona o emprego para seguir o mestre.

A cena se passa no interior, onde a luz fraca provém de uma janela. Mateus está sentado em uma mesa com outros coletores de impostos que estão a contar o dinheiro. Todos estão vestidos com roupas da época de Caravaggio. O evento sagrado é representado no presente e com grande realismo. Os dois mais jovens se voltam para Cristo sem compreender muito bem, enquanto os outros sequer levantam a cabeça.

As obras executadas na Capella Contarelli despertaram a atenção da igreja. Pouco tempo depois Caravaggio recebeu outra encomenda, dessa vez para a Capella Cerasi, no interior da Basilica Parrocchiale Santa Maria del Popolo8, na qual o altar já havia recebido a pintura: Assunção da Virgem, de Annibale CARRACCI (1560-1609).

Ali, nas laterais da pintura de Carracci, Caravaggio executou duas grandes pinturas: Conversão de Paulo9 e Crucificação de São Pedro10.

Encomendada em 1601 para uma das capelas da Chiesa di Santa Maria Della Scala no rione Trastevere, Roma, a pintura A Morte da Virgem11, deve ter sido terminada por volta de 1605-1606. No entanto, a obra foi recusada, pois Caravaggio a representou de vermelho e com as pernas de fora, totalmente desprovida de santidade.

Logo depois envolvido em intrigas, Caravaggio se viu obrigado a fugir de Roma após matar um adversário durante uma briga.

Na ilha de Malta, pintou a Decapitação de São João Batista12, uma das obras que mais se aproxima do estilo de Caravaggio, extremamente realista e brutal.

Em 1610, em Porto Ercole, na Toscana, Caravaggio, ferido, anteriormente em outra briga, foi acolhido por uma confraria, morrendo logo em seguida, antes de completar trinta e nove anos.

Michelangelo Merisi da CARAVAGGIO (1571-1610) A crucificação de Santo André, 1606–1607. Óleo sobre tela, 202.5x152.7. The Cleveland Museum of Art. Cleveland, EUA.
Michelangelo Merisi da CARAVAGGIO (1571-1610) A crucificação de Santo André, 1606–1607. Óleo sobre tela, 202.5×152.7. The Cleveland Museum of Art. Cleveland, EUA.

Caravaggio mostra Santo André preso a uma cruz fixada em diagonal, condenado por ter tentado converter os gregos ao cristianismo.

Sobre os degraus da escada, o homem de costas, com os músculos retesados, tenta desatar o nó da corda que sustenta as mãos de Santo André. Espantadas e ansiosas, as pessoas observam a cena sem acreditar na impossibilidade de salvá-lo. À direita, impaciente, o governador aguarda a soltura do mártir. O corpo desgastado e as feições cansadas de Santo André indicam o momento em que ele dará o último suspiro.

Santo André, teria sobrevivido por dois dias, período em que muitos da multidão presente se converteram, exigindo sua libertação. Quando o governador romano ordenou o fim do castigo mortal, os soldados foram atingidos por uma estranha letargia, impedindo-os de soltar Santo André, cumprindo-se assim, o desejo do santo para ser martirizado em nome de sua fé. Uma luz divina envolveu-o no instante da sua morte.

A interpretação inovadora de Caravaggio envolve o observador mais de perto no evento, apresentando a crucificação como íntima e privada, em vez de ser um espetáculo público horrível. Contrastes ousados de luz e escuridão sugerem a presença de Deus. Uma obra-prima da pintura barroca, a crucificação de Caravaggio de Santo André é o único retábulo do artista na América. (CLEVELAND MUSEUM OF ART. Tradução nossa13)


Veja também

https://arteref.com/artigos-academicos/graca-e-beleza-no-barroco-italiano/

https://arteref.com/artigos-academicos/el-greco-o-maneirismo-na-espanha/

Referências

BASILICA PARROCCHIALE SANTA MARIA DEL POPOLO, Roma, Itália. Disponível em: http://www.santamariadelpopolo.it Acesso em: 20 set. 2019

GALLERIA BORGHESE, Roma, Itália. Disponível em: http://www.galleriaborghese.beniculturali.it/it/opera/giovane-con-canestra-di-frutta Acesso em 22 set. 2019.

GALLERIE NAZIONALI DI ARTE ANTICA DI ROMA, PALAZZO BARBERINI, Roma, Itália. Disponível em: https://www.barberinicorsini.org/arte/collezioni/ Acesso em: 22 set. 2019.

GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2000. 714 p.

HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 1032 p.

JANSON H. W. História da Arte. Tradução J.A. Ferreira de Almeida; Maria Manuela Rocheta Santos. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 823 p.

KIMBELL ART MUSEUM, Fort Worth’s, Texas, EUA. Disponível em: https://www.kimbellart.org/collection/ap-198706 Acesso em: 20 set. 2019.

MUSÉE DU LOUVRE, Paris, França. Disponível em: https://www.louvre.fr/en/oeuvre-notices/death-virgin Acesso em: 20 set. 2019.

THE CLEVELAND MUSEUM OF ART, Cleveland, EUA. Disponível em: http://www.clevelandart.org/art/1976.2 Acesso em 30 ago. 2019.

THE METROPOLITAN MUSEUM OF ART, Nova York, EUA. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/435844 Acesso em: 22 set. 2019.

VENERANDA BIBLIOTECA AMBROSIANA, Milão, Itália. Disponível em: https://www.ambrosiana.it/en/opere/basket-of-fruit/ Acesso em: 22 set. 2019.


1 Aluno de TICIANO(c.1488/90-1576) em Veneza e influenciado pela pintura de VERONESE (1528-1588) e TINTORETTO (1518-1594), Simone PETERZANO (ca. 1535–1599) transferiu-se para Milão logo depois, abrindo uma oficina de pintura.

2 Michelangelo Merisi da CARAVAGGIO (1571-1610) O Rapaz com cesto de frutas, ca. 1593. Óleo sobre teal, 70×67. No acervo, entre outras, da Galleria Borghese, Roma, Itália.

3 Michelangelo Merisi da CARAVAGGIO (1571-1610) Narciso, 1594/1596. Óleo sobre tela. Gallerie Nazionali di Arte Antica di Roma, Palazzo Barberini, Roma, Itália. Caravaggio divide a pintura em duas partes. Na parte superior o jovem ajoelhado debruça-se sobre a água. Na parte inferior o artista representa o seu reflexo levemente turvo. O fundo é escuro e a luz repousa sobre parte dos braços, do rosto e do pescoço de Narciso.

4 Michelangelo Merisi da CARAVAGGIO (1571-1610) Os Jogadores de Cartas, ca. 1595. Óleo sobre tela, 94.2×130.9.  Kimbell Art Museum, Fort Worth’s, Texas, EUA.

5 Michelangelo Merisi da CARAVAGGIO (1571-1610) Cesta de frutas, ca. 1597-1600. Óleo sobre tela, 54,5×67,5. Veneranda Biblioteca Ambrosiana, Milão, Itália. A pintura executada com grande realismo e atenção aos detalhes mostra uma cesta de vime repleta de frutas e folhas e tem sido interpretada de muitas maneiras diferentes: o realismo com que os frutos frescos são colocados ao lado daqueles que são comidos por vermes e as folhas secas, as quais indicam a passagem inexorável do tempo.

6 Última no corredor esquerdo entrando na igreja, a Capella Contarelli ou Capella San Matteo é de tamanho modesto. Acima do altar há a Inspiração de São Mateus, no lado direito o Mártirio de São Mateus e à esquerda a Vocação de São Mateus.

7 Localizada próxima à Piazza Navonna, no Rione Sant’Estachio, Roma, Itália. A Chiesa di San Luigi dei Francesi(Igreja de São Luís dos Franceses) foi construída no século XVI com projeto de Giacomo DELLA PORTA (1532-1602). Terminada e restaurada por Domenico FONTANA (1543-1607)

8 Em Roma, na Piazza del Popolo, ao lado da Porta del Popolo (Antiga porta Flamínia) umportão da antiga Muralha Aureliana, fica a Basilica Parrocchiale Santa Maria del Popolo cuja fachada renascentista foi alterada para o estilo Barroco, em mármore travertino, por Gian Lorenzo BERNINI (1598-1680) no século XVII. O interior apresenta obras de grandes artistas, entre eles: Pieter van LINDT (1609-1690), Bernardino di Betti, conhecido por PINTURICCHIO (1454-1513), Carlo MARATTA (1625-1713) Annibale CARRACCI (1560-1609), CARAVAGGIO (1571-1610) e Bernini.

9 Michelangelo Merisi da CARAVAGGIO (1571-1610) Conversão de Paulo ou Conversão no Caminho de Damasco, 1601-1602. Óleo sobre tela. Capella Cerasi, Basilica Parrocchiale Santa Maria del Popolo, Roma, Itália. Caravaggio representa Paulo, cansado, caindo do cavalo no caminho de Damasco. O cavalo domina a cena e levanta a pata sobre o soldado, quando Cristo se aproxima.

10 Michelangelo Merisi da CARAVAGGIO (1571-1610) Crucificação de São Pedro, 1601-1602. Óleo sobre tela, 369×245. Capella Cerasi, Basilica Parrocchiale Santa Maria del Popolo, Roma, Itália. Pedro pediu para ser crucificado de ponta-cabeça para não imitar Cristo. Romanos, com as faces obscurecidas lutam para erguer a cruz com o idoso apóstolo.

11 Michelangelo Merisi da CARAVAGGIO (1571-1610) A Morte da Virgem, 1604-1606. Óleo sobre tela, Chiesa di Santa Maria Della Scala no rione Trastevere, Roma, Itália. Atual acervo do Musée du Louvre, Paris, França. Caravaggio abandona completamente a iconografia tradicionalmente usada para indicar a santidade da virgem, que se apresenta reclinada, com um simples vestido vermelho. A cabeça está tombada e o braço pendurado, os pés inchados e espalhados.

12 Michelangelo Merisi da CARAVAGGIO (1571-1610) A Decapitação de São João Batista, 1608. Óleo sobre tela, 361×520. Oratório da Co-Catedral de São João, Valletta, Malta. Caravaggio representa Salomé com a bandeja de ouro à espera da execução de João Batista.

13 Caravaggio’s innovative interpretation involves the viewer more closely in the event by presenting the crucifixion as intimate and private, rather than as a gruesome public spectacle. Bold contrasts of light and dark suggest the presence of God. A masterpiece of Baroque painting, Caravaggio’s Crucifixion of Saint Andrew is the only altarpiece by the artist in America. Cleveland Museum of Art, Cleveland, EUA. Disponível em: http://www.clevelandart.org/art/1976.2 Acesso em 30 ago. 2019.

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