No contexto da vídeo-arte, o loop, ou repetição, é uma característica marcante. Diferentemente da narrativa cinematográfica clássica ou da narrativa da televisão, que surgiu na mesma época e com os mesmos aparelhos do que a vídeo-arte, a narrativa em repetição não possui começo, meio e fim bem definidos, o que gera um universo diegético que cria e sobrevive majoritariamente de presentes.
Nesse artigo, são analisadas duas obras do artista paulistano Lucas Bambozzi em que a narrativa em loop tem efeitos que reverberam nos tempos passado e futuro diegéticos e reais. São obras em que a narrativa é espacializada e em que o espectador/visitante/caminhante constrói histórias e significados com o olhar ou o andar. Ao mesmo tempo, a narrativa diegética das obras se propõe a expandir um momento do passado ao presente eterno, criando situações de eterna construção e de eterna erosão.
A narrativa cinematográfica clássica vem sendo questionada desde o início do século XX principalmente no que diz respeito às estruturas cronológicas lineares. Apesar de já serem distorcidas frequentemente no cinema desde as vanguardas artísticas da década de 1920, elas sofrem mudança profunda com o surgimento do videotape nos anos 1950 e, mais recentemente, a vídeo-arte se apropriou do material da televisão e o utilizou para gravar vídeos, reproduzidos por tempo indeterminado, se repetindo infinitamente.
O loop vira, então, característica marcante da vídeo-arte(MEIGH-ANDREWS, 2014). Em seu ensaio “Suspense”, Kátia Maciel diz que “a condição da repetição na maioria dos seus trabalhos é de fazer o tempo resistir ao tempo”(MACIEL, 2014, p. 164) e, de acordo com ela, um acontecimento em loop seria como ligar bordas do tempo, formando um presente eterno.
Neste artigo analisarei duas obras do artista paulistano Lucas Bambozzi em que o loop cria presentes infinitos diferentes: “Bottled Chat” e “O Tempo Não Recuperado”. Em uma delas, o tempo eternizado é a experiência de decadência e reconciliação de um casal e, na outra, são as várias identidades passadas do próprio artista recuperadas por meio de vídeos de arquivo e exibidas simultaneamente. É possível encontrar aqui, portanto, o tempo eternizado em duas vertentes: a que destrói para sempre e a que constrói para sempre.
Entre longos suspiros e narizes fungando, um casal troca algumas poucas palavras. Ou melhor, não há troca, apenas um deles fala. O outro se limita a escutar, em aparente angústia. Da maneira como a projeção foi elaborada, um olha em direção ao outro, em campo e contra-campo. As duas imagens, posicionadas levemente para a diagonal, fazem com que por vezes seus olhares se cruzem, e por vezes olhem para o outro lado. Estão projetados onde deveria estar o rótulo de uma garrafa de vinho, fazendo parte da embalagem. Discutem em frente a uma mesa, que fica fora de campo. Esse é o vídeo “De-erre, casal em crise”, parte da série “Bottled Chat” de Lucas Bambozzi.
O vídeo tem duração de 3 minutos e é reproduzido em loop. Trazuma reencenação a partir de um trecho de “Un Couple Parfait” um filme dirigido por Nobuhiro Suwa e realizado em 2005. A obra de Suwa conta a história de um casal que vive há 15 anos juntos. Uma noite, ao encontrarem um casal de amigos em Paris, anunciam que decidiram se divorciar. Os amigos se surpreendem, acham que os dois são o casal perfeito. A partir desse acontecimento, Suwa desenvolve uma trama em que a ação do tempo corrói uma relação que já foi “perfeita” e destrói as ilusões criadas anos atrás para sustentar um casamento.
Na reencenação proposta por Bambozzi, o casal em questão já se encontra corrompido, mas a erosão do tempo não surte mais efeito. As duas personagens estão presas em uma discussão eterna, em um momento de tensão e agonia sem fim. Na marca dos 2 minutos e 32 segundos, a mulher (interpretada por Thais de Almeida Prado), pergunta para o homem (interpretado por Marcus Bastos) se ele está cansado. Em seguida, pergunta se ele quer dormir. Um fade para o preto se segue e, após alguns segundos, a cena recomeça. Dormem brevemente e, ao acordarem, imediatamente reiniciam a discussão.
Ao adaptar uma obra cinematográfica, Bambozzi toma uma decisão muito importante: dividir a cena em duas telas. O cinema é a tela única, é a “arte ciclópica”, como o chamava desde a década de 1920 Jean Epstein. Com a multiplicação do número de projeções, passamos a considerá-las de maneira diferente no espaço e, consequentemente, no tempo. O campo e contra-campo no cinema se dá em uma unidade espacial, um único lugar visto de perspectivas opostas e que pressupõe um encadeamento temporal linear. Vemos apenas um dos dois planos por vez. Já em “Bottled Chat”, os dois planos estão expostos ao mesmo tempo. A montagem se torna espacial, não mais temporal.
Quando os dois lados da discussão são expostos simultaneamente, Bambozzi assume uma postura ausente. Quem decide o que olhar é o espectador-visitante, que passa para o lado ativo da montagem. Pode ser que olhe só para a mulher, só para o homem ou que enquadre em sua visão os dois ao mesmo tempo. Pode olhar por alguns segundos para um e o resto do tempo para o outro, metade do tempo para cada, pode entrar e sair da narrativa a qualquer momento, são inúmeras as possibilidades. É o olhar ativo do visitante que faz os cortes de edição. (DUBOIS, 2014)
A tela escolhida pelo artista é, também, um elemento narrativo. Duas garrafas de vinho imediatamente evocam a sensação de embriaguez. Provavelmente, os dois personagens estavam bebendo e agora, bêbados, têm uma conversa profunda sobre sua relação. Seus rostos estão projetados nos rótulos das garrafas, seu exterior voltado para nós, em vídeo. Mas os sentimentos que passaram muito tempo “fermentando”, empurram a rolha para fora da garrafa e transbordam abundantemente, acompanhados de lágrimas e suspiros. A rolha é recolocada e estourada incontáveis vezes.
“O Tempo Não Recuperado”, obra realizada em 2003 por Lucas Bambozzi, é uma instalação com cinco canais de áudio e vídeo projetados em uma única parede simultaneamente e também um DVD-Rom interativo. A obra é resultado de uma pesquisa no arquivo pessoal do artista acumulado por 15 anos e organizado de maneira narrativa não-linear. Os vídeos não têm conexão narrativa aparente, tendo como único ponto em comum terem sido feitos por ele mesmo e portanto fazerem parte da história pessoal do artista ainda que não sejam elementos encadeados de maneira cronológica ou por um elo de causa e consequência. Na versão em instalação, são organizados lado a lado e na versão em DVD-Rom são exibidos individualmente e em uma sequência escolhida pelo espectador.
Assim como em “Bottled Chat”, a montagem cinematográfica é explorada espacialmente na instalação. Em três dos cinco vídeos, ainda há presença da montagem temporal, com cortes secos e fades, mas o que chama a atenção é a disposição dos vídeos lado a lado. Não tendo, porém, estrutura narrativa linear, o visitante/espectador pode começar a assistir a série a partir de qualquer um dos vídeos. A ordem do corte dos vídeos é decidida pelo visitante e deixa de ser imposto pela montagem cinematográfica clássica, passando a ser executado pela movimentação dos olhos do visitante e de seu trajeto pelo espaço expositivo.
Quando montado para a versão em DVD-Rom, a duração linear aproximada dos vídeos é de 60 minutos. Em contraste com a instalação, o modo prioritário de montagem nessa versão é atemporal. Ao fim de cada clipe, o espectador pode decidir qual vídeo assistirá em seguida, criando sua própria narrativa. A autonomia de quem assiste os vídeos se torna virtual, não mais física no sentido de quem faria a edição percorrendo o espaço da galeria. De um lado temos o espectador-montador e do outro o caminhante-narrador (P. DUBOIS, 2014).
Em um dos vídeos, um livro é folheado e rabiscado pelo artista repetidamente. Em outro, um homem é entrevistado e fala sobre seu vício em álcool. Mais livros, um bebê rindo, água do mar, cenas gravadas de dentro de um ônibus e a gravação de uma orquestra compõem os demais vídeos. Bambozzi aparece em alguns, mas não em todos, o que nos leva a presumir que a autoria de todos os vídeos é dele. O que temos aqui é a fragmentação e reconstrução visual de memórias do artista, momentos diversos de sua vida que são carregados de emoções e sensações. Os vídeos de arquivo, geralmente associados a documentos factuais, são transformados em imagens de incerteza e multiplicidade de identidades.
Bambozzi cria uma representação múltipla de sua identidade passada, constantemente mudando e, simultaneamente vivida, sempre unificada por um mesmo autor. Na versão em instalação, essa representação é arrastada para o presente e apresentada em loop, criando identidades passadas, presentes e futuras em frente ao visitante. Na versão em DVD-Rom, as memórias do artista caem na mão de quem segura o mouse e, a partir dessa interação, são usadas para criar uma outra identidade para o autor.
Aqui, vemos o sujeito que não pode ser compreendido como uma única unidade. Morin descreve a pluralidade do sujeito de diversas maneiras: as idades podem ser múltiplas e convivem; o gênero não é absoluto; a personalidade oscila conforme for a situação em que o indivíduo se encontra; o sujeito é cindido por multiplicidade internas etc. (MORIN, 2005).
A obra é um comentário sobre a presença de visualidades e sensações passadas na eterna construção de quem o artista é e de quem nós, os espectadores, somos. Em um caso e outro, trata-se de construir identidades a partir de memórias acumuladas às quais recorremos de uma forma relativamente arbitrária. Ao contrário da tradição narrativa mais difundida, Bambozzi une-se aqui a diversas outras manifestações artísticas, cinematográficas, literárias que elegem a não-linearidade como uma forma de reconstruir novas aparições de um sujeito múltiplo.
De um lado, em “Bottled chat”, a erosão do tempo se expande indefinidamente e se propaga ao eterno em um mecanismo de repetição da briga de um casal e de sua reconciliação momentânea. A montagem espacializada faz com que o espectador-visitante enxergue campo/contra-campo simultaneamente, espalhando o tempo no espaço, já que vê o que seria mostrado em ordem cronológica linear na narrativa cinematográfica simultâneamente.
Por outro lado, em “O tempo não recuperado”, há uma reconstrução de tempos passados dos mais diversos. As múltiplas identidades de Bambozzi espalhadas no tempo se condensam em um tempo só, o presente, e se potencializam para o futuro. O visitante-espectador modifica a narrativa de acordo com seu andar, tornando-se, assim um caminhante-narrador. Enquanto uma das obras, “Bottled Chat”, trabalha com a destruição do tempo na relação de um casal ao insistir no aspecto cíclico do diálogo, a outra obra, “O tempo não recuperado”, trabalha com a construção do tempo na relação do artista consigo mesmo por meio de uma colagem caótica de fragmentos que lhe dão uma consistência complexa.
Bruno Kowalski é artista visual, cineasta e estudante do curso de Audiovisual da Universidade de Brasília. Portfolio: brunokowalski.glitch.me
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