Sertão Negro de Dalton Paula: A Revolução Silenciosa da Arte no Cerrado

1. Introdução
No coração do Cerrado brasileiro, uma nova forma de pensar a arte e a educação está sendo cultivada por Dalton Paula — artista plástico reconhecido internacionalmente por seu trabalho centrado nas memórias afro-brasileiras e nas práticas de resistência cultural. Conhecido por suas obras que resgatam personagens invisibilizados da história, Paula leva agora sua poética para além do ateliê, inaugurando um projeto pedagógico e comunitário que se propõe a reimaginar o papel da arte na transformação social: o Sertão Negro.
Diferentemente dos centros artísticos convencionais, essa escola-ateliê não está localizada em grandes centros urbanos, tampouco se baseia nos modelos hegemônicos de ensino. Instalada em uma região rural nos arredores de Goiânia, o Sertão Negro combina práticas ancestrais com linguagens contemporâneas, tornando-se um espaço vivo de experimentação estética, cura coletiva e construção de novas epistemologias.
A iniciativa de Paula vai ao encontro de um movimento mais amplo que busca descolonizar a produção de conhecimento artístico e fomentar a valorização de saberes historicamente marginalizados. Em vez de reproduzir estruturas eurocêntricas, a escola propõe um retorno às raízes — às histórias apagadas, aos rituais cotidianos, aos modos de vida que resistem ao apagamento cultural promovido pelo colonialismo.
Ao lançar esse projeto, Dalton Paula reafirma seu compromisso com uma arte que ultrapassa o mercado e o museu, e que se conecta diretamente à terra, à memória e às comunidades. O Sertão Negro não é apenas uma escola de arte: é um gesto político, espiritual e poético de restituição e reencantamento.

2. O Nascimento do Sertão Negro
O Sertão Negro nasceu em 2021, fruto da inquietação de Dalton Paula e de sua companheira, a pesquisadora e educadora Ceiça Ferreira. Ambos compreendiam que era preciso criar um espaço onde a arte pudesse emergir como ferramenta de reconstrução histórica, acolhimento e reimaginação do futuro — especialmente para corpos e narrativas historicamente silenciadas. A escolha do nome, que evoca tanto a aridez do sertão quanto a fertilidade simbólica da cultura negra, carrega em si um manifesto: uma arte que nasce da terra e da ancestralidade.
Obras em Destaque
Instalado em uma área de 7.000 metros quadrados na zona rural de Aparecida de Goiânia, no entorno do Cerrado, o projeto surge com uma missão clara: construir um espaço de formação artística enraizado na cosmologia afro-brasileira e na ecologia do território. Em vez de adotar modelos institucionais padronizados, Paula optou por moldar a escola como uma extensão de sua própria prática artística e existencial — um lugar onde o tempo desacelera, a escuta é valorizada e a coletividade é central.
O impulso para formalizar a iniciativa ganhou força em 2021, quando Dalton Paula foi um dos contemplados com o Chanel Next Prize, promovido pela casa de moda francesa em parceria com a plataforma artística inglesa Serpentine Galleries. Com um prêmio em dinheiro voltado para projetos inovadores, Paula destinou a verba à ampliação da escola, adquirindo novos terrenos e iniciando a construção de estruturas voltadas a residências artísticas, bibliotecas, estúdios e espaços de vivência comunitária.
O Sertão Negro nasce, assim, não apenas como uma escola, mas como um ecossistema criativo comprometido com a regeneração de vínculos entre arte, território, espiritualidade e justiça social. É também uma resposta crítica às limitações do sistema artístico institucional, que muitas vezes reproduz exclusões estruturais sob a aparência da diversidade.
3. Filosofia Quilombista e Pedagogia Ancestral
O Sertão Negro não segue uma pedagogia formal tradicional. Em vez disso, sua estrutura educativa é inspirada em um modelo profundamente enraizado na lógica dos quilombos — comunidades negras autônomas formadas por pessoas que escaparam da escravidão, onde o saber era transmitido pela oralidade, pelo corpo, pela escuta, pela coletividade. Essa filosofia quilombista sustenta o Sertão Negro como um espaço de cura, reconstrução simbólica e autonomia.
Ao adotar essa abordagem, Dalton Paula rejeita o ensino verticalizado, eurocentrado e competitivo das academias de arte convencionais. Em seu lugar, propõe uma pedagogia horizontal e situada, que parte da escuta ativa, da convivência e do afeto como práticas educativas. Os saberes ensinados e compartilhados são aqueles que foram historicamente marginalizados, mas que resistiram — como o uso de plantas medicinais, os rituais de corpo e espiritualidade, os cantos de trabalho, a cerâmica de tradição africana e indígena, e a capoeira Angola, que ali é praticada não como esporte, mas como filosofia de vida.
Essa pedagogia encontra eco nos estudos de autores como Bell Hooks e Paulo Freire, que defendem uma educação como prática de liberdade e valorização dos saberes do oprimido. Mas também vai além, ao propor uma articulação radical entre estética, ancestralidade e cosmologia afro-brasileira — numa perspectiva que a pesquisadora Leda Maria Martins denomina “tempo espiralar”, ou seja, uma temporalidade não linear, que articula passado, presente e futuro como camadas simultâneas de vivência e aprendizado.
No Sertão Negro, o tempo da floresta é o tempo da aprendizagem. A construção do conhecimento ocorre no fazer — plantar, colher, moldar, cantar, caminhar. Trata-se de um processo sensorial, espiritual e intelectual que reintegra o corpo ao pensamento, rompendo com a dicotomia ocidental entre teoria e prática. Essa abordagem cria um ambiente de formação onde o artista é, antes de tudo, um ser em conexão com seu território, sua memória e sua comunidade.

4. Estrutura e Atividades da Escola
Localizado em plena região do Cerrado — o segundo maior bioma brasileiro e uma das savanas mais biodiversas do planeta — o Sertão Negro é, antes de tudo, uma escola enraizada no ambiente. A escolha do território não é apenas geográfica, mas simbólica: é na relação com a terra que se dá o aprendizado, e é a própria paisagem que oferece o vocabulário estético e espiritual das práticas ali desenvolvidas.
A infraestrutura do projeto foi pensada de forma orgânica, priorizando construções simples, funcionais e conectadas com os saberes locais. Há ateliês abertos que se integram à natureza, uma biblioteca com mais de 3.000 títulos voltados a história da arte negra, espiritualidade, decolonialidade, literatura afro-brasileira e saberes indígenas. Há também fornos de barro para produção cerâmica, hortas agroecológicas, jardins de plantas medicinais e espaços de convivência que acolhem rodas de conversa, práticas corporais e partilhas coletivas.
As atividades regulares são diversas e transversais. Oficinas de cerâmica ancestral, gravura em metal, capoeira Angola, bordado, pintura, fotografia documental e escrita criativa são ofertadas tanto para artistas residentes quanto para a comunidade local. A cada ciclo, o Sertão Negro convida mestres de saberes tradicionais, artistas, curandeiras, filósofos e educadores para conduzirem encontros formativos que não se limitam ao fazer artístico, mas promovem o cuidado de si e do outro como eixo central do processo criativo.
Um dos eixos mais importantes da escola é o programa de residência artística. Os residentes recebem bolsa de apoio, alimentação e estadia — uma estrutura que busca não apenas oferecer meios materiais para a criação, mas também promover a imersão dos artistas na lógica de tempo e escuta do território. Não se trata de “produzir” arte no sentido mercadológico, mas de experienciar a arte como prática relacional, como processo de enraizamento e troca.
A escola ainda organiza feiras, seminários e encontros abertos ao público, promovendo um trânsito constante entre os muros do Sertão Negro e a comunidade do entorno. A intenção é clara: não formar artistas para o mercado, mas artistas que compreendam sua função social e simbólica em um mundo que clama por reconstrução afetiva e ecológica.

5. Inclusão e Diversidade
Desde sua concepção, o Sertão Negro foi pensado como um espaço radicalmente comprometido com a inclusão. Para Dalton Paula, não se trata apenas de garantir acesso físico ao espaço, mas de construir um ambiente em que as múltiplas identidades sejam valorizadas em sua complexidade. Assim, a escola tem como prioridade acolher artistas negros, indígenas, LGBTQIA+, pessoas neurodivergentes e sujeitos historicamente marginalizados pelo sistema artístico e educacional brasileiro.
Essa escolha não é apenas simbólica: ela se materializa nos processos de seleção para as residências e oficinas, nas temáticas propostas para as atividades formativas e, principalmente, na composição dos corpos docentes e dos mestres convidados. Ao invés de importar saberes de fora, o Sertão Negro aposta na construção horizontal do conhecimento, por meio de trocas entre pares, entre gerações e entre diferentes modos de existência.
Parte do programa de residência artística prevê, inclusive, estadias em comunidades quilombolas da região, criando pontes vivas entre os artistas e as tradições culturais que atravessam o Brasil profundo. Trata-se de um movimento de descentralização do saber: o artista não vai ao quilombo como observador ou visitante, mas como aprendiz. É nessa convivência que emergem linguagens híbridas, narrativas compartilhadas e novas formas de representação.
A valorização da neurodiversidade também é um eixo importante do projeto. O Sertão Negro reconhece que diferentes formas de percepção e sensibilidade produzem diferentes estéticas e formas de conhecimento. Assim, adapta seus processos pedagógicos para acolher subjetividades que não se enquadram nos modelos hegemônicos de aprendizagem, respeitando os tempos, silêncios e fluxos próprios de cada participante.
Ao promover esse ambiente de pluralidade e respeito, o Sertão Negro tensiona as fronteiras daquilo que é considerado “arte” no circuito oficial e amplia as possibilidades de construção simbólica para sujeitos que historicamente foram excluídos das narrativas institucionais. Inclusão, aqui, não é estratégia — é princípio fundante.

6. Impacto e Reconhecimento Internacional
Embora profundamente enraizado no território brasileiro, o Sertão Negro já alcançou repercussão internacional como um dos projetos mais inovadores da atualidade em arte, educação e justiça social. Esse reconhecimento não é fruto de uma estratégia de visibilidade midiática, mas da potência do gesto político e poético que Dalton Paula vem articulando ao longo de sua trajetória.
O artista, que teve obras adquiridas por instituições como o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), o Museo Reina Sofía e a Pinacoteca de São Paulo, tem se consolidado como uma voz fundamental no debate sobre decolonialidade e representação negra nas artes visuais. Sua presença na 59ª Bienal de Veneza e o recebimento do Soros Arts Fellowship, da Open Society Foundations, reforçam essa posição e atestam a relevância de sua proposta em contextos globais.
A escola-ateliê Sertão Negro, nesse contexto, é vista por curadores, críticos e instituições internacionais como um modelo alternativo de produção de conhecimento artístico. Publicações como The Art Newspaper, ArtReview e Contemporary And América Latina destacam o projeto não apenas pela sua originalidade, mas por sua capacidade de formular um pensamento estético-social que desafia as lógicas excludentes do mainstream artístico.
O impacto também se dá em rede. Artistas residentes que passaram pelo Sertão Negro têm levado a experiência para outras regiões do Brasil e do mundo, replicando metodologias, estabelecendo parcerias e promovendo diálogos transatlânticos com outros centros de cultura negra, como em Gana, Nigéria e Cuba. A proposta de Dalton Paula inspira iniciativas semelhantes que buscam reconstruir formas de ensino, produção e circulação da arte com base em justiça histórica e reparação simbólica.
Nesse sentido, o Sertão Negro não é apenas uma escola de arte — é uma plataforma transnacional de reconexão com o que foi apagado, de reencantamento do fazer artístico, e de fortalecimento de uma estética afro-diaspórica que não busca integração ao sistema, mas sim a criação de outros mundos possíveis.