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Brushstroke: uma indagação urgente

Por Equipe Editorial - setembro 28, 2012
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Brushstroke: uma indagação urgente

O movimento da pop arte surgiu em estreita concordância com os acontecimentos de seu tempo e lugar. Celebrando a linguagem da cultura urbana e colocando em questão elementos da emergente sociedade de consumo e da comunicação de massa, este movimento surgiu num momento em que esses aspectos eram ignorados e repudiados pelas movimentações artísticas de então. A pop art vem justamente se utilizar dos mesmos símbolos e técnicas da cultura visual de massa, e da mesma lógica de reprodução industrial  que a sociedade artística tanto desaprovava.

Mas Lichteinstein ajudou a nos ensinar a olhar a cultura a nossa volta como fenômenos estéticos, mantendo com eles uma relação de fascinação e de crítica ao mesmo tempo.

Lichtenstein, quando se utilizava da mesma visualidade encontrada nas histórias em quadrinhos, laboriosamente reproduzindo através da pintura quadros retirados de HQs, ironizava a idéia da arte como atividade expressiva das emoções.[1] Era evidentemente uma resposta negativa às aspirações e objetivos dos expressionistas abstratos, que valorizavam o ato criativo e subjetivo, vendo a tela como o lugar da ação e da gestualidade liberta (action painting), e não da reprodução de imagens. Em entrevista, o artista diz:

“Acho que a pop art foi principalmente uma reação à predominância massificaste do expressionismo abstrato […] No meu trabalho o humor pode ser o resultado do uso de símbolos do processo de impressão, que faz o trabalho parecer fake, não original e impessoal.“[2]

Podemos tomar a sua série intitulada Brushstroke (Pincelada), do final da década de 1960, como uma referência ao movimento expressionista abstracionista. Tal série constitui-se por pinturas de pinceladas, a despeito de sua visualidade caracteristicamente tipográfica. Nesta obra, o artista problematiza o toque do pincel, na medida em que, assim como os expressionistas, se utiliza da tinta, mas ao mesmo tempo, transforma a pincelada em outra coisa:  pontos em malha tipográfica. Assim, a pincelada, que deveria ser absolutamente subjetiva, de intenso automatismo psíquico, de grande liberdade de gesto e “independência do material” (a tinta parece ter vontade própria), acaba se convertendo numa técnica absolutamente mecânica, objetiva e controlada.

É muito interessante ainda atentar para o fato de que fazia parte dos ideais expressionistas abstratos salientar fisicalidade da pintura, o fato de que as pinturas são tinta, e nada mais. Não era o intuito desses artistas da década de 1950 que se mascarasse a materialidade de um quadro. Este não mais funcionaria como um representação ilusionística do mundo a sua volta, mas seria simplesmente o que era: tinta sobre tela.  E os expressionistas abstratos fizeram questão de deixar isto bastante claro. Pollock, por exemplo, deu autonomia para suas tintas, quando as jogava sobre uma tela horizontal, ao acaso, sem medições, sem preocupações miméticas, apenas com o intuito de que toda a materialidade de seus meios fosse explicitada, negando uma tradição de séculos. “O importante era usar a tinta em pinceladas largas e fartas [espessas], com o pincel mais grosso que se pudesse manejar, e mediante o gesto mais amplo” [3]. Com pinceladas tão extravagantes, não era possível formar-se uma imagem, uma representação. Pois foi exatamente isto que Roy Lichtenstein fez, subvertendo: sua série Brushstroke é justamente uma série de grandes e fartas pinceladas. Mas não deixa de ser uma representação. Representa a própria pincelada. Não a pincelada à maneira expressionista abstrata. São pinceladas, sim, mas à maneira cultura de massa, à maneira cool, à maneira reprodução seriada, à maneira pop art. É uma expressão outra, e reclama para si a sua legitimidade. Lichtenstein nos mostra com sua série de 1965 que a iconografia criada com a emergente cultura de massa e cultura industrial tem muito de estético a oferecer, e também possibilita a apreciação, diferentemente do que afirmavam os setores das ditas grandes artes de então.

Os artistas da pop arte pretendiam se afastar dos modelos das belas artes. Muitos deles eram formados em arte comercial, e o próprio Lichtenstein afirmou:

“A arte tem-se tornado extremamente romântica e irrealista, desde de Cézanne, alimentando-se de arte utópica. Tem tido cada vez menos a ver com o mundo. Olha para dentro […] mas o mundo é lá fora. A arte pop encara o mundo, parece aceitar o seu meio ambiente que não é nem bom nem mau, mas diferente, outro estado de espírito[4].”

Em Brushstroke, há uma grande tensão entre o que é mostrado e a maneira como isso é mostrado, superfície e tema sendo praticamente contraditórios. As pinceladas são visíveis, apresentam-se em grossas camadas de tinta, não pretendem dissimular a natureza da pintura: a tinta. Mas ao mesmo tempo o tema (pincelada) e a superfície (tinta) são contraditos pelo efeito final da técnica: são representações de pinceladas, a partir de pinceladas, ou serigrafia, sem a pretensão de dissimular o método, mas o efeito final é de tipografia, uma técnica de impressão que nada tem a ver com a pintura, de uma técnica, por excelência, industrial.

O procedimento aplicado na obra em questão é comparável ao utilizado pelo artista em obras como Companheiras de quarto. Nesta, isola-se uma imagem da tira de quadrinhos (no caso de Brushstroke, ele vai à outra fonte, uma obra de arte expressionista), aumenta-lhe o tamanho, estuda minuciosamente os processos, inclusive tipográficos, a que a tornam comunicável em milhões de exemplares (em Brushstroke, ele mão estuda os processos das pinceladas abstracionistas, mas a traduz para uma outra linguagem).[5] Ele reproduz manualmente, com microscópio estas imagens. Transforma em único o que era reproduzível, multiplicável. A imagem parece impressa em suporte de tecido, visto que o artista utiliza os pontos de reticulado do tipo benday dos processos gráficos. Esta é uma maneira de codificar a maneira como se apreendia o mundo naquela época, e podemos dizer, ainda nos dias de hoje.  É uma forma de demonstrar e constatar que o meio de comunicação tornou-se a mensagem.

Mas percebemos que os pontos de retícula não foram impressos, mas pintados à mão, feitos um a um na tela. É uma representação artística de um processo mecânico. Para a infelicidade de seus contemporâneos e das belas artes, Lichtenstein pratica a representação. E eles mal entendem que essas pinturas são obras profundamente teóricas.

Texto: Suzana da Costa Borges Longo
Graduada em Artes Visuais pela ECA-USP, atualmente é Mestranda em Estudos Contemporâneos das Artes pela UFF (RJ).


[1]ARCHER, Michael. Arte contemporânea: uma história concisa. Sao Paulo: Martins Fontes, 2001. pg.6.

[2] LOPES, Rodrigo Garcia. Vozes e Visões – panorama da arte e cultura norte-americanas hoje. São Paulo: Iluminuras, 1996.

[3] DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar comum. São Paulo: Cosac & Naify, 2005. p. 168.

[4] PEDROSA, Mário. Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Editora Perspectiva, 1986. p. 177.

[5] ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 582.

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