Hudinilson Jr.: Hedonismo e iconoclastia visual
Um artista polêmico em sua época que hoje é reconhecido pelos maiores museus do mundo.
Hudinilson Urbano Jr. viveu a vida e a arte de forma singular, à margem de regras estabelecidas pela própria arte e pela sociedade. Privilegiou a sensibilidade e a imaginação criadora em contraponto a censura e ao provincianismo de sua época. Desconstruiu, por intermédio de suas xerografias a representação do corpo humano, em especial o masculino. Hudinilson Jr. ficou conhecido por suas experimentações radicais.
Artista multimídia, no final dos anos 1970, depois de dominar as técnicas convencionais do desenho, da pintura e da gravura, intuiu que as últimas décadas do século passado seriam caracterizadas por novas linguagens criadoras que aproximariam cada vez mais as artes às tecnologias avançadas de representação imagética. Acreditou também que os desenvolvimentos técnicos aplicados a serviço da produção cultural, se bem utilizados, possibilitariam novas opções para o aperfeiçoamento e apoio às artes visuais.
Foi pioneiro ou participou de novos momentos e ou movimentos artísticos: Performance, Body Art, Graffiti, Box-Form Art, Fotolinguagem, Happening, Xerografia e Intervenções Urbanas que marcariam o seu legado para a arte contemporânea brasileira. Ele entendeu, com antecedência, que a arte presente nos museus ou apresentada nas ruas configuravam-se como obras essencialmente autônoma, se realizadas com formas que evocassem a liberdade de expressão.
Contrário à hipocrisia social desvencilhou-se, desde o início de sua carreira, de preconceitos e usou o seu próprio corpo como objeto de criação, para desmitificar assim seus próprios medos, intolerâncias e tabus.
“Embora se tenha tornado mais conhecido por sua persistente atuação na área de Xerox (na qual foi o pioneiro) Hudinilson começou fazendo colagens.” [1]
No início bidimensionais, evoluíram progressivamente para a tridimensionalidade, com a inclusão de poucos e inesperados elementos encontrados ao acaso, que segundo Olívio Tavares Araújo “podem ser inseridas no movimento artístico conhecido como Box-form art”. Essas caixas sintetizam e amalgamam fragmentos que retratam momentos privativos de sua própria intimidade.
“Hudinilson sabe utilizar essas potencialidades muito bem. A ambiguidade e a estranheza se prestam, por definição, justamente ao tipo de erotismo com que ele deseja trabalhar. Em suas caixas, nada é de mau gosto ou ostensivo e de vez em quando existe até um toque de humor, como na utilização de recortes de fotos de pin-ups masculinos dos anos 1950 americanos”. [2]
Em entrevista Hudinilson declarou:
“Eu tenho as coisas catalogadas na minha cabeça, de repente vou pensando nas suas utilizações (…). A colagem é rápida mas bem cuidada; o efêmero fica por conta do lixo da rua, virando luxo da arte. O Xerox é mais louco, às vezes corre mais que eu mesmo, dando resultados incríveis. Creio que daqui para frente vou começar a integrar as duas coisas, é meu caminho natural”. [3]
A técnica da colagem bi e tridimensional persistiu até os últimos dias de sua vida. Nos últimos anos ele optou por estruturá-la sequencialmente em cadernos /álbuns singulares, verdadeiros livros de artista, denominados pelo artista como Cadernos de Referências.
Além das colagens, suas gravuras (xilogravuras) apresentam qualidades admiráveis pelo esmero e acabamento, comparáveis tecnicamente a dos melhores gravadores brasileiros, infelizmente pouco conhecidas e apresentadas em raras ocasiões, por causa da miopia do mercantilismo de arte brasileiro que só se preocupava em divulgar e comercializar apenas e tão somente as obras dos artistas já estabelecidos, muitas vezes cristalizados pelo próprio mercado de arte.
Versátil, em 1984 – em entrevista para a revista Interview – declarou:
“um artista, antes de tudo, tem que ser polivalente na sua mídia”.
Audacioso, destemido transformou o impacto visual causado pelas suas interpretações gráficas do corpo humano em sua tônica dominante. Daí o seu interesse maior pela pesquisa das múltiplas possibilidades deste seu objeto estético. Prova disso são as suas séries xerográficas: “Posição Amorosa”; “Zona de Tensão” e entre outras “Exercício de me ver”. Apesar de seu tema principal ser o nu masculino essas séries tem em comum a constante preocupação estética destituída de mero apelo erótico.
Foi exatamente o que aconteceu com o evento “Arte nas Ruas”, realizado em 1983. O outdoor preparado por Hudinilson nada mais era que um detalhe de seu corpo xerocado e ampliado em proporções gigantescas. A curadora da mostra, Aracy Amaral, não impediu que essa obra fosse às ruas, mas antes exigiu que essa ousadia fosse coberta com uma tarja vermelha, o que despertou ainda mais a atenção dos transeuntes. O fato foi parar, com destaque, nas páginas da Revista Isto É que classificou Hudinilson Jr. como um artista polêmico. [4] Visionário, Hudinilson gostou, mas declinou deste título, pois para ele “o artista é solitário e solidário.” Em seguida acrescentou
“que só acreditava numa carreira construída ao longo da vida e não de um dia para o outro”.
Em suas séries xerográficas utilizou de todas as formas possíveis este novo procedimento compositivo: Xerox da própria cópia, ampliações, reduções, justaposições e sobreposições de imagens do seu próprio corpo, resultantes de seu contato direto com a máquina impressora. Transfigurações gráficas singulares, revolucionárias plasticamente. Segundo Ezra Kat, tudo aconteceu quando Hudinilson ministrou um curso de fotografia na Escola Zoom de São Paulo.
Ao utilizar uma simples máquina copiadora – que a escola usava para reproduções usuais comuns – descobriu um procedimento criativo que mudaria substancialmente a sua forma de ver, pensar e fazer arte. Trabalhando sozinho com esta máquina, em horário fora do seu expediente de serviço, começou a explorar a natureza das imagens produzidas. Ele realizava acrobacias, deitava, virava e ou sentava sobre o visor da máquina de Xerox, para em seguida idealizar composições plásticas, montagens diferenciadas, automáticas de seu próprio corpo.
Para Jean-Claude Bernardet, em cada xerografia idealizada por Hudinilson: “o detalhe nos atrai, nos imanta, nos seduz. Um processo de fascinação que nos dá a ilusão de estarmos à beira do contato desejado com o corpo original, nu, uno, indefinidamente adiado (…) um fascínio diante do nosso próprio corpo esfacelado. Com rigor.” Hudinilson acrescentou que o xerox “recria o corpo de maneira própria, destruindo detalhes e valorizando outros (…) Entender os limites impostos pela máquina, ampliar seus recursos e dominar esses limites invertem as relações, fazem com que a máquina seja veículo e coautora deste trabalho.” [5]
Segundo Bernard Borgaud “a arte do corpo pode ser definida como a prática de um certo gênero de performance, fazendo intervir o corpo do artista como medium único ( …) o artista encontra-se só, face a face, face a vida, face a si mesmo”.[6]
Além dos aspectos artísticos Hudinilson ao utilizar a xerografia – que permite a reprodução de um número significativo de imagens – em especial de seu próprio corpo, subverteu, questionou e enfrentou a censura imprimindo obras audaciosas, isentas de molduras, não convencionais que poderiam ser descaracterizadas e descartadas pelo mercado de arte convencional, mas facilitariam uma circulação livre para um público maior.
O artista assim subverteu as estratificadas qualificações: obra de arte original versus cópia.Para Hudinilson cada cópia novamente xerocada, em função da dilatação dos pixels, se modificava lentamente, transformando-se em novas imagens que também questionavam a própria Xerox original.
Assim, o artista desmitificou o paradigma da originalidade da obra de arte única, transformando as cópias das suas cópias em também originais reforçando o pensamento de Walter Benjamin que afirmava ser um absurdo, e contrário à razão encontrar uma cópia veraz, já que todas as cópias também, se caracterizavam como originais, em função de suas próprias originalidades e diferenças formais, pois nenhuma copia é idêntica a outra cópia.
As ampliações e reduções xerográficas de partes menores e detalhes do seu corpo transformam-se em novas imagens e composições, as vezes quase abstratizantes, ressignificando a própria representação imagética do corpo retratado, potencializado apenas e tão somente pelos meios mecânicos realizados pelo artista e tecnológicos comandados pela máquina de Xerox.
Em uma de suas ultimas entrevistas Hudinilson afirmou: “desde o começo o tema do meu trabalho era o corpo. A primeira coisa que fiz foi fotocopiar minha mão, depois meu rosto e depois todo o resto do meu corpo”. Um enlace singular do artista com a máquina copiadora, ideal para multiplicar o seu pensamento e sua ação artística.
No processo de consolidação da Arte Postal no Brasil Hudinilson desenvolveu um papel fundamental atuando ao lado dos mais destacados artistas da Mail Art internacional, que romperam em definitivo com os estatutos e as proposições estáticas, imóveis da arte. Antenados, muito antes da internet, idealizaram, por intermédio da arte, uma Rede de Comunicação via Correio, interligando artistas, críticos, curadores e diretores de museus do mundo inteiro. Ao lado de Paulo Brusky, Daniel Santiago, Julio Plaza, Alex Vallauri, Anna Bella Geiger, Bene Fontelles, Gabriel Borba, Tadeu Jungle, Walter Silveira, Raul Cordula, Ypiranga Filho, Luis Guardia Netto e entre tantos outros, Regina Silveira não temeram a oposição e as limitações impostas pela ditadura militar brasileira daquela época.
A Arte Postal foi uma forma de deslocar a importância das exposições de artes visuais em galerias e museus visitadas por um número não significativo de espectadores, pela circulação de obras via correio para um número ampliado de usufruidores via Mail Art não só no Brasil mas em vários países do mundo.
A sua índole citadina, presente até no seu próprio nome: Hudinilson Urbano Jr., o impulsionou a incorporar em sua produção artística, novas técnicas. A tecnologia permitiu a este criador polivalente realizar uma sequência de obras, hoje consideradas entre as mais significativas séries da arte brasileira dos anos 1980 e 1990.
Sem pudor ou falso moralismo, quase amorosamente, registrou, por intermédio de uma máquina Xerox, parte de seu próprio corpo. Independente de qualquer tipo de conotações e ou censuras, essas obras corporificam-se, sem entraves ou limites a sua doação artística. Registros da humanidade versus tecnologia; do real contra o virtual; do passado e do presente simultaneamente unidos. Um novo porvir.
A incerteza, a ambiguidade, a perplexidade e a surpresa também estão presentes nestas obras. Nada é por acaso. A recorrência estética Kitsch/Camp estabelecida nos anos 1970 e 80, como mais uma opção criadora, permitiu-lhe da mesma forma que os artistas dadaístas, coletar fragmentos urbanos (partes de objetos, de móveis, e ou de edificações) para incorporá-los neodadaisticamente em suas obras. Por isso, detalhes de portas de armários e de outros objetos descartados pelo cidadão comum foram utilizados como suporte inusitado para a sua fase de pintura/graffiti.
Ao lado de Mário Ramiro e Rafael França, Hudinilson participou e foi o mentor intelectual do grupo de intervenção urbana e performance 3NÓS3, que subverteu o circuito de artes plásticas de São Paulo, lacrando galerias de arte, encapuzando estátuas públicas e ocultando/vedando partes da cidade com plásticos pretos ou coloridos.
Nada o intimidou e ou o impediu de acompanhar a evolução das artes visuais nas últimas décadas de sua vida. Nem mesmo as dificuldades inerentes à sua debilitada saúde.
Incansável visitava todas as principais exposições da cidade, para em seguida emitir opiniões pessoais memoráveis, não foi apenas um artista plástico. Oriundo de uma família culta (seu pai era professor da USP e a sua mãe, pesquisadora de cultura popular) sua infância e juventude foram marcadas pela pesquisa iniciada em sua própria casa, patrocinada pelos seus pais que ensinaram o ainda menino Hudinilson Jr. a investigar a enciclopédia Lello Universal, que lhe forneceu referências e imagens presentes em suas futuras obras de arte, em especial nos seus desenhos, gravuras, pinturas, arte postal e graffiti.
Iconoclasta como seu amigo pessoal Leon Ferrari (com quem dividia notáveis e surpreendentes bate papos e reflexões sobre arte contemporânea) jamais se subordinou aos ditames impostos pelo mercado de arte. Segundo depoimento do próprio Leon Ferrari, eles foram tão próximos que Hudinilson e Regina Silveira eram seus principais interlocutores e amigos durante a sua estada no Brasil, como refugiado do regime militar argentino.
Hudinilson entendeu com singularidade o binômio Arte/Vida. Intuiu que em arte o cotidiano, o ordinário poderiam pelo pensamento e ação criativa serem transformados em extraordinários, inusitados. Por isso os objetos e detritos industriais rejeitados, abandonados pela cidade influenciaram a criação de formas e a própria estruturação compositiva de suas obras. Nos últimos anos, as radiografias de partes de seu próprio corpo, também foram incorporadas.
Para Tobi Maier:
“Além de pioneiro da arte de Xerox e de intervenções urbanas, as colagens com temas homoeróticos de Hudinilson são tão radicais que nunca tinham sido assimiladas pelo mercado ou instituições”. [7]
Atualmente, além de colecionadores, importantes museus e ou grandes mostras o destacaram e o incluíram em seus acervos, como o Festival Internacional de Glasgow, na Escócia, Museu Reina Sofia de Madri, MoMa – Museu de Arte Moderna de Nova York, Malba – Museu de Arte Latinoamericano de Buenos Aires.
O Museu de Arte Contemporânea da USP e as bienais internacionais de São Paulo e de Taipei na China também lhe dedicaram exposições e salas especiais. Sheila Leirner , no artigo “Arte, golpe e ditadura: da censura às bienais, a reação dos artistas” incluiu Hudinilson Jr. entre os artistas que realizaram “obras fortemente contestadoras” como Cildo Meirelles, Antonio Dias, Ivan Serpa, Helio Oiticica, Antonio Henrique Amaral, Arthur Barrio, Nelson Leirner, Tomoshige Kusuno, e entre outros Lygia Pape.
A morte prematura de Hudinilson Urbano Jr. em 2013, não impedirá as futuras gerações de críticos de arte, historiadores e diretores de museus e ou colecionadores a reconhecer e valorizar a fundamentação estética e a ousadia criadora deste incansável iconoclasta, que jamais se submeteu aos padrões consagrados de fácil aceitação e consumo.
“Hudinilson que protestava contra a arte institucional, hoje é disputado por colecionadores e museus estrangeiros.” [8]
A Associação Brasileira dos Críticos de Arte durante a solenidade de premiação dos Melhores do Ano – 2014 se uniu às celebrações prestadas a Hudinilson Urbano Jr. no Brasil e no exterior, homenageando-o postumamente ao lado dos também falecidos Tomie Ohtake e Antonio Henrique do Amaral. A ABCA reforçou assim, mais uma vez, a contribuição deste instigante artista para a arte brasileira.
O artista dissipou o distanciamento imposto pela sociedade ao contato e a visualização do corpo humano. Hedonisticamente, em suas múltiplas manifestações plásticas, definitivamente o ressignificou. Hudinilson Urbano Jr inúmeras vezes em sua carreira artística deu saltos solitários, quase sem volta. Ousadamente mergulhou nas profundas ondas da arte, em embates só alcançados pelos verdadeiros artistas.
Veja também
Fontes
[1]. Olívio Tavares de Araújo. As caixinhas do mistério, Revista Isto É. São Paulo, 5 de agosto de 1984.
[2]. Idem, ibidem
[3]. O Erotismo Sutil de Hudinilson Jr. Folha de São Paulo, 21 de agosto de 1984
[4] Ars Gratia Artis. Revista Interview. 1984
[5] Entrevista para o Jornal de Brasília publicada no dia 3 de março de 1982
[6] Borgaud Berbard in: Frederico de Morais. Panorama das Artes Plásticas – séculos XIX e XX. Itaú Cultural. São Paulo. 1991 p. 33 e 34
[7]. Fabio Cypriano. Museus querem expor obras de Hudinilson. Folha de São Paulo – Ilustrada, 12 de dezembro de 2013.
[8]. Antonio Gonçalves Filho. A redescoberta de um narciso rebelde. O Estado de São Paulo – Caderno 2, 19 de janeiro de 2014.