Arte é o exercício do supérfluo, do dispensável, do desnecessário, do absolutamente inútil. Toda a importância da arte vem da sua absoluta e total inutilidade. Se fosse útil não seria arte.
Inclusive, a “arte por encomenda”, que incluiria desde as esculturas de Fídias à Capela Sistina de Michelangelo, à Santa Ceia de Leonardo, ao Réquiem de Mozart, e tantas outras obras-primas, pois mesmo encomendadas para decorar um ambiente ou expressar musicalmente algum sentimento, elas em si não servem para nada. Se não tivessem sido criadas, ninguém perceberia!
A arte não muda o mundo, ela apenas o reflete através de seus artesãos. Não existe uma linha clara e definida que separe o que consideramos “arte” daquilo que consideramos meramente “artístico” ou “decorativo.”
Todo artesanato é “artístico.” Assim como toda e qualquer ilustração, enfeite, “design” ou “gingle” de anúncio. Nenhuma arte tem “valor intrínseco.” Uma escultura de Rodin ou Moore tem como valor intrínseco apenas o valor momentâneo e circunstancial do metal em que foi fundida.
Qual é a “essencialidade” de um móbile de Calder, da Guernica de Picasso, ou da 9a. Sinfonia de Beethoven?
Afinal, é tudo meramente “apreciação”. Nós apreciamos uma obre de arte como apreciamos um garoto que dá cambalhotas ou faz algum truque de mágica numa festa, pois dizemos “este garoto é um artista.”
Por que ele está fazendo “arte,” não é? E isto se dá em qualquer idioma e em qualquer cultura. O fascinante é que o homem, mesmo antes de aprender a falar já mostra este impulso de modificar, de formar, de enfeitar, e diríamos “criar”; e isto ocorreu em todos os povos que já existiram em qualquer canto deste planeta tão diverso!
Eu sempre quis saber quem tinha sido aquele primeiro “artista” que “poliu” a pedra lascada antes de qualquer outro, por mero senso estético…e depois teria sido copiado por todos os outros…Mas na verdade não foi bem assim!
Chamamos a Idade da Pedra Lascada de Paleolítico (25.000 a 12.000 anos a.C.) e depois vem o Neolítico, que seria o da Pedra Polida…, mas esta provavelmente foi polida apenas porque foram encontradas pedras mais maleáveis!
Muito antes o homem já tinha deixado suas marcas de “artista” nas cavernas de Lascaux, Altamira, e muitos outros lugares, e já enfeitava o corpo com as tintas que fabricava, e criava uma infinidade de objetos “artísticos” totalmente inúteis! Mas quando falamos numa peça de teatro ou tocar um instrumento falamos em “to play”, “spielen”, ou “jouer” uma peça…como pregar uma peça!
Afinal, arte é lazer, e esta é a sua única importância! Lazer!
E esta importância não vem da qualidade da representação em si, mas daquilo que pode estar oculto nesta representação. Não existe nela um objetivo declarado de criar o “belo” ou qualquer outra intenção, além da de simplesmente emocionar!
Afinal, nós não dizemos “arts & entertainment”? E é exatamente isto que a arte é: entretenimento. Mas o ser humano, em toda sua pretensão, precisa criar outras intenções, que a arte na verdade não tem.
Elucubramos sobre o “espírito criativo”, o “impulso artístico”, “a arte como meio de comunicação com o mundo”, como “meio de perpetuação da personalidade”, como meio de “identificação do indivíduo”, de superação da solidão!
Existe certamente um senso estético que é revelado em todas as artes, seja poesia, romance, pintura, escultura ou música, mas o estético não é o essencial. O estético, o belo, etc. são absolutamente relativos, dependentes das culturas que o originaram. Arte europeia, arte oriental, arte africana, todas as linguagens muito diversas do mesmo impulso!
A arte se torna maior quando passa a representar atitudes metafísicas diante da vida. Ela registra a dúvida essencial: por que estamos aqui? Desde que o ser humano se reconheceu diferenciado da natureza ele luta para responder a esta questão. Por que ele está só, irremediavelmente só, e a arte nada mais é do que um reflexo desta solidão.
A solidão de ser diferenciado e racional num mundo irracional e de ser imaginativo dentro da monotonia da natureza é o que leva à criação de mitos e deuses. Este é o “pecado original” revelado pela Bíblia judaica. E ele é encontrado em diferentes versões em todos os textos místicos que surgem nos primórdios das civilizações.
A incerteza do ser humano perante o universo está refletida nos Vedas hindus, no Gilgamesh sumério, nos ritos egípcios ao deus Hórus, nos deuses do Olimpo grego, em Zaratustra, em Confúcio, no Buda e em todas as religiões tribais mundo afora. Ela está em Homero, em Dante, no Dom Quixote, no Dr. Fausto, em Dostoievski, na Montanha Mágica, em Beckett, Kafka, Camus, Joyce, Proust, Pinter… e ela está em todas as artes, mais ou menos explicitamente. Hoje ela reflete mais claramente o declínio das crenças religiosas.
A secularização que se alastra pela Europa a partir da Renascença abre novas dúvidas existenciais, e com isto abre também novos caminhos para as artes e para a filosofia.
O reflexo desta evolução será encontrado na música de Bach, Mozart, Beethoven, Brahms e Wagner, e talvez seja ainda mais evidente nos compositores do Século 20, como Mahler, Strauss, Schostakovitch e Schnittke.
Um dos grandes equívocos sobre a pintura é que ela alguma vez tenha sido essencialmente “retratista”, e que se ocupasse em “reproduzir a realidade”. Nada mais falso.
Isto nem mesmo o artista fotógrafo pretende. A força da arte está em seu autor interpretar ou mesmo transfigurar a realidade conforme sua visão, impondo suas próprias idéias àquilo que retrata. É o que o nosso contemporâneo Francis Bacon declara em suas entrevistas: a realidade deve ser falseada e distorcida a ponto de não ser reconhecida para que possa comover!
A pintura sai do seu “classicismo” através de Cézanne e do impressionismo que levaria irremediavelmente ao abstracionismo. Kandinsky, Picasso, Bracque, os americanos Rothko, Still e Motherwell, e depois o irlandês Bacon abriram novos caminhos para as artes plásticas, acabando por abstrair inteiramente a figura humana. A escultura altamente emotiva de Rodin vai encontrar em Moore e Chadwyck novos intérpretes da condição humana.
Hoje assistimos a crescentes críticas ao materialismo dos nossos tempos, ao consumismo, ao “ter” em vez de “ser”, como se realmente em outros tempos as aspirações humanas teriam sido muito diferentes. Fala-se muito na “ausência de valores”, como se os valores de outras épocas tivessem sido muito diversos. Nunca foram.
É óbvio que as progressivas urbanização e secularização tenham seu preço em termos de insegurança existencial, nosso “pecado original”. Somos seres divididos entre o racional e o emocional, entre o “bem” e o “mal”, direita e esquerda, conservadores e reformistas, material e divino, entre corpo e alma, yin e yang, e esta dicotomia está presente em todas as nossas atividades.
A força desta ambivalência é o que nos leva à busca do onírico e explica a confissão do artista plástico Cildo Meirelles de que “a arte é uma inutilidade indispensável”! Afinal, o que são a “arte conceitual” e suas “instalações” senão a prova concreta desta ambiguidade?
Quem descreveu esta condição de forma bastante original foi o maestro e compositor Leonard Bernstein em suas palestras na Universidade de Harvard nos anos 70, demonstrando por que a dissonância é essencial para entendermos a nossa própria ambiguidade. O título das palestras era “the question without answer”, a pergunta sem resposta, inspirada na composição homônima de Charles Ives nos anos 20. Este é o “pecado original”: a grande dúvida existencial, que jamais será esclarecida!
Mas então vem a pergunta: qual é a força que nos conduz à manifestação artística, a declamar, cantar, dançar, compor, pintar, interpretar, etc Sobre isto já se escreveram muitos livros e ensaios, mas poucos realmente identificam esta força. Fala-se muito no “impulso criativo” do ser humano, a um instinto pela harmonia, equilíbrio e ritmo, no desejo de expressar emoções, de experimentar o mistério.
Seria o medo primal da existência, que nos leva ao desejo de imortalizar-nos. Aristóteles talvez tenha sido o primeiro filósofo a identificar uma raiz da arte simplesmente no prazer de produzir e apreciar uma manifestação artística.
Mas foi Epicuro quem transformou nossa busca pelo prazerem credo filosófico, ao identificar nosso inato hedonismo. Esta ideia é reelaborada por Schiller: o impulso para a arte está no instinto lúdico, o instinto de brincar que é comum a tantas espécies de mamíferos. Chimpanzés, ursos, cães e gatos que brincam desde a infância até a idade adulta.
É este instinto lúdico que Schiller descreve como fenômeno harmonioso que une nossos dois mundos, e que Spencer entende como extravaso de excesso de energia!
Lazarus atribui este impulso a uma tentativa de recuperação da fadiga do mundo real, Groos como exercício preparativo para este mundo, e Wundt ao seu efeito prazeroso.
Isto é, o impulso à arte vem simplesmente do prazer em fazer e apreciar seja qual for a manifestação. A notória tendência do ser humano em elaborar as mais complexas elucubrações para explicar as coisas mais simples impede que isto seja reconhecido. Nós precisamos “buscar o belo”, criar objetos de “comunicação”, transmitir emoções, etc., mas nada disso realmente explica o impulso artístico. Este é simplesmente a busca do prazer, da alegria, da satisfação estética ou sonora, literária e poética!
No deserto do Marrocos foi encontrada uma figura humana esculpida em pedra há mais de cem mil anos, quando nem “sapiens” ainda éramos. Há trinta mil nossos ancestrais criaram pinturas em paredes de cavernas em Lascaux e em Altamira. A“Madonna de Willendorf” foi esculpida há uns vinte mil anos.
É preciso muita “imaginação” para acreditar que estes “artistas” estavam tentando equilibrar seus problemas existenciais, buscando a imortalidade, ou procurando comunicar-se com o mundo…Eles estavam simplesmente dando vazão ao seu instinto lúdico… se divertindo, como fazem escultores de barro nordestinos e índios marajoaras!
O que estava fazendo Bach quando compunha as variações Goldberg ou as suítes para cello solo, ou as partitas, cantatas, e por aí afora. Acaso teria havido alguém mais brincalhão do que Mozart: tudo o que ele compôs foi simplesmente pelo prazer de compor com prazer.
E assim tenho certeza que até o sério Beethoven sentiu enorme prazer ao compor suas sonatas, quartetos e concertos. Alegria maior do que a revelada na ode final da 9ª. Sinfonia ele talvez só tenha encontrado em suas constantes visitas aos bordéis!
Tudo na arte tem que ser prazer, vir do prazer, para o prazer. Ele está nas elegias de Rilke, no Homem e o Mar de Hemingway, na queda de Camus, na Metamorfose de Kafka, no Homem sem Qualidades de Musil, até no Idiota de Dostoyevski, no Ferdidurke de Gombrowitz, ou no conto da vaca de Willém Fluesser. Epicuro encontrou a filosofia do prazer e dela fez a razão do impulso para a vida. O triste evento do cristianismo tentou proibir todo e qualquer prazer para submeter-nos ao seu poder, e conseguiu subjugar a civilização ocidental durante séculos.
A secularização que se sucedeu ao renascimento do mundo europeu para as artes e a filosofia encerrou esta era.
As artes estão confusas, a música muitas vezes inaudível, pintura e escultura se transformaram em instalações incompreensíveis para os não iniciados.
Os puristas dirão que existem diferentes “níveis” de arte:
A “arte maior”, “hohe Kunst”, “grand art”… e com certeza Mozart é mais valioso que os Beatles ou Michel Teló, mas o impulso é o mesmo. Afinal o que é o jazz senão brincar com música?!
O importante é que ao apreciarmos qualquer manifestação artística tenhamos em mente que a sua motivação é o nosso inato instinto ao prazer. Ela será certamente mais…prazerosa!
Afinal…todas as nossas atividades são apenas a melhor maneira que encontramos para fugir à realidade!
Texto de Roberto Hollnagel ref. “Art and Artist”- Creative urge and personality development Otto Rank, 1932 rollnagel@terra.com.br
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Excelente reflexão sobre o papel da arte em nossos dias. Parabens ao Roberto Hollnagel, que sempre se ocupou da arte em toda as suas expressões especialmente à musica.!!!!
O assunto "arte" está longe de se encontrar esvaziado por ser bem plural; são muitíssimas as artes e até as diferentes artes dentro da mesma arte. Daí que qualquer reflexão que se faça sobre ela é passível de encontrar pertinência, e adesão - ou figadal discordância. Geralmente.
O mencionado caráter não utilitário da arte por exemplo, é evidente, mas bem como noutros casos o caráter utilitário também o é. Assim, a grosso modo arte pode ser tudo e/ou qualquer coisa que consigamos fazer (ao menos e principalmente se conseguirmos transferir isso para um suporte qualquer que permita a reflexão, a contemplação - ou "theoria") (e isso aliás já é um critério - assim como às vezes uma impossibilidade), ou ainda, tudo aquilo que queiramos ou recusarmos. Em seu "A Necessidade da Arte" Ernest Fischer deriva o fazer artístico já do polegar opositor da espécie. Já nosso Ferreira Gullar lembrava que a arte existe porque a realidade não basta. E nossa Cecilia: Eu canto porque o instante existe / E a minha vida está completa / Não sou alegre nem sou triste / Sou poeta". E ainda, de Picasso, temos que "a arte é uma mentira. Mas que nos ensina a compreender a verdade". Mas a natureza da arte e sua existência me parecem bem menos biologicamente acidentais - ao menos enquanto fenômeno, não como linguagem. Porém, transcendência ou imanência, melhor é não abdicarmos de nenhuma faceta, e acentuarmos em nossa apreciação e consumo artísticos tudo que daí puder advir e possamos absorver, inclusive o prazer lembrado pelo sr. Hollnagel. Arte é o que nos toca.