Abraham Palatnik nasceu em Natal, Rio Grande do Norte, em 1928. Seus pais e um tio, judeus-russos, emigraram para o Brasil em 1912. Atuando em oito diferentes segmentos produtivos – da fabricação de móveis e azulejos à produção de açúcar – foram os pioneiros da industrialização do estado nordestino.
Com apenas quatro anos de idade, Abraham Palatnik foi enviado a Palestina, hoje Israel, para realizar seus estudos fundamentais. A seguir, ainda em Telavive, entre 1942 e 1947 fez curso de especialização em motores de explosões – automóveis e tanques – enquanto em aulas noturnas, estudava pintura, desenho, história da arte e estética no Instituo Municipal de Arte.
Retornou ao Brasil em fins de 1947, fixando residência no Rio de Janeiro. Já no ano seguinte, participou com obras figurativas do Salão Nacional de Belas Artes (Divisão Moderna), e conheceu o pintor Almir Mavignier, de quem se tornou grande amigo. Este o levou a conhecer os desenhos e pinturas dos artistas esquizofrênicos do Setor de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico D. Pedro II, fundado por Nise da Silveira, e o apresentou ao crítico de arte Mário Pedrosa. A produção dos artistas do Engenho de Dentro e as conversações com Mário Pedrosa reorientaram definitivamente sua ainda incipiente criatividade plástica. Abandonou não apenas a pintura figurativa, mas todas as convenções pictóricas, mergulhando, nos dois anos seguintes, em pesquisas que o levaram à conclusão de seu primeiro Aparelho Cinecromático, exposto na I Bienal de São Paulo, em 1951. Tal invenção fez dele o fundador da Arte Tecnológica no Brasil e um dos pioneiros mundiais da Arte Cinética. O único coletivo ao qual se vinculou foi o Grupo Frente (1954 – 1956)
Somadas, as mostras individuais realizadas por Palatnik e as coletivas nas quais esteve presente, no Brasil e no exterior, ao longo de mais de seis décadas de atividade ininterrupta, ultrapassam uma centena. Participou das bienais de São Paulo (1951–1955, 1959, 1961, 1965-1969), Veneza (1964), Córdoba (1966) e do MERCOSUL (1997 e 2005), e de importantes exposições internacionais de Arte Cinética, entre as quais podem ser citadas “Mouvement 2”, na Galeria Denise René, de Paris, “Lumière, Mouvement et Optique”, no Palácio de Belas Artes de Bruxelas, em 1965, “Kunst-Licht-Kunst”, Museu de Arte de Eindhoven, Holanda, e “Kinetic Art”, Museu de Arte de San Francisco, USA em 1966, “Lights in Orbit, Galeria Howard Wise, Nova York, 1967, “Arte Programatta e Cinética”, no Pallazo Reale, Milão, Itália, em 1983. Figurou ainda em numerosas mostras de arte latino-americana e brasileira na Europa e nos Estados Unidos, cabendo citar especialmente “Modernidade – Art Brésilien du XXe. Siècle”, Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris (1988), “Art Construtif, Art Cinétique d’Amérique Latine”, Galeria Denise Renè, Paris (1999), “Heterotopias – Médio Siglo Sin Lugar 1918 – 1968”, Museu Reina Sofia, Madrid (2001), “Dimensions of Constructive Art in Brazil”, Museu de Belas Artes de Houston, USA, 2007.
No Brasil, as exposições coletivas mais significativas foram: V Resumo de Arte Jornal do Brasil, RJ (1972), Arte Brasil Hoje – 50 anos Depois, Galeria Collectio, SP, 1972, Projeto Construtivo Brasileiro em Arte – 1950 – 1962,
MAM-RJ e Pinacoteca do Estado, SP (1977), A Nova Dimensão do Objeto, MAC-USP (1986), Panorama de Arte Brasileira Atual, MAM-SP (1986 e 1993), Tridimensionalidade na Arte Brasileira do Século XX, Itáu Cultural, SP (1997), Arte Construtiva no Brasil: coleção Adolpho Leirner MAM SP (1998, Máquinas de Arte, Itaú Cultural, SP 1999), Máquinas Poéticas: Museu Casa do Pontal, RJ (2011).
Principais mostras individuais: Hochschule Museum, Saint Galen, Suiça e Galeria Studio E, Ulm, Alemanha, em 1964, Galeria I Howard Wise, NY e Petite Galerie, RJ, em 1965, Galeria Barcinski, RJ em 1971, Galeria Bonino, RJ, 1977, Instituto dos Arquitetos do Brasil-RJ, em 1981, Museu de Arte Contemporânea de Niterói, retrospectiva, 1999, Galeria Nara Roesler, SP, 2005, Galeria Anita Schwartz, RJ, em 2009, Denise René, Paris, 2012.
Entre 1949 e 1950, constrói seus dois primeiros aparelhos cinecromáticos. Azul e roxo em primeiro movimento, exposto na I Bienal de São Paulo (1951), tinha 600 metros de fios elétricos, servindo a 101 lâmpadas de voltagens variadas, que movimentavam, em velocidades desiguais, alguns cilindros.
Para o crítico Mário Pedrosa, que cunhou o termo cinecromático, era a primeira tentativa, no Brasil, de realizar a utopia artística de Moholy-Nagy, que consistiria na criação de “afrescos de luz destinados a animar edifícios ou paredes com o dinamismo plástico da luz, segundo a vontade e a inspiração criadora do artista”.
Até 1983 Palatnik realizara 33 aparelhos cinecromáticos, expostos em sete edições da Bienal de São Paulo, entre 1951 e 1963, e nas bienais de Veneza (1964) e Córdoba (1966), e em mostras individuais e coletivas na Europa e nos Estados Unidos. O oitavo aparelho, uma sequência de imagens verde-laranja que durava quatro minutos, exposto no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1960, apresentava uma série de inovações técnicas, como a miniaturização do centro de controle automático, a redução da fiação elétrica para 60 metros e o número de lâmpadas para 51, além da introdução de uma central de controle automático.
Com seus aparelhos cinecromáticos, Palatnik não só se antecipa à vertente construtiva, que eclode com os grupos Ruptura (São Paulo, 1952) e Frente (Rio de Janeiro, 1954) para se consolidar com o Concretismo (1956) e o Neoconcretismo (1969), mas também funda a vertente tecnológica da arte brasileira.
Vistos na Bienal de Veneza, foram apontados como obras pioneiras no âmbito da arte cinética internacional, no que diz respeito ao binômio luz-movimento. O crítico Jürgen Morschel, comentando a exposição de Palatnik no Museu Saint Gallen, Suíça, em 1965, escreveu que ele “não executa objetos, encena acontecimentos”, definindo-o como um “regisseur”. Frank Popper, apresentando a mostra Kunst-Licht-Kunst, realizada em 1966 no Museu de Arte de Eindhoven, Holanda, refere-se aos “móbiles luminosos” de Palatnik, destacando a “veia poética” de suas pesquisas. No ano seguinte, confirmaria o pioneirismo de Palatnik no campo das pesquisas de luz e movimento, em quadro sinótico estampado no seu livro Naissance de l’Art Cinetique. Pierre Cabanne e Pierre Restany também reafirmaram, no livro L’Avant-Garde au XXe Siècle (1969), as antecipações de Palatnik tanto em relação aos “lumidynes” de Frank Malina, quanto às pesquisas de dinamismo espacial de Nicolas Schöffer. Tomás Maldonado, líder dos concretos-invencionistas argentinos, saudou seu colega brasileiro como “o mais importante precursor do último retorno à estética da luz e do movimento”. Mari Carmen Ramírez, curadora da monumental exposição Heterotopias – Medio Siglo Sin-Lugar 1918-1968, realizada no Museu Reina Sofía, Madri, em 2001, foi a última figura exemplar da crítica da arte a reafirmar o feito de Palatnik.
Em 1953, Palatnik participa da I Exposição Nacional de Arte Abstrata, no Hotel Quitandinha, em Petrópolis, com pinturas realizadas sobre vidro, associadas a incisões feitas com estiletes sobre matéria pintada. Feixes de linhas precisas, mesmo quando ondulantes, gravitam sobre a superfície ou se superpõem, numa sucessão horizontal de faixas, num caso e noutro sem afetar o caráter planar da obra.
Ou como na obra Sequência com intervalos, de 1954, buscando um diálogo mais sensível entre cor e linha, criando profundidades insuspeitadas. Palatnik integrou algumas dessas pinturas sobre vidro à parte traseira de poltronas de jacarandá, espuma e tecido por ele projetadas e expostas em três das quatro mostras realizadas pelo Grupo Frente, em 1954 e 1955.
Palatnik não integrou o Neoconcretismo, mas absorveu alguns de seus postulados, como a participação do espectador no desenvolvimento da obra criada pelo artista. Assim, aos aparelhos cinecromáticos seguiram-se, em 1959, alguns trabalhos nos quais explora as possibilidades estéticas dos campos magnéticos, que incluem, em alguns casos, a participação lúdica do espectador. Em um desses trabalhos, Mobilidade IV, bolinhas de madeira são movimentadas, silenciosamente acionadas por eletroímã.
Em 1962, Palatnik projetou e patenteou o jogo que ele denominou Quadrado perfeito, exposto pela primeira vez na Galeria Barcinski, no Rio de Janeiro, e, nove anos depois, na mostra Arte Programatta e Cinética, realizada em Milão. Trata-se de um jogo baseado no deslocamento de peças sobre um tabuleiro semelhante ao que se usa no xadrez. No entanto, dele difere na medida em que não existem peças a serem capturadas ou xeque-mate, tampouco uma posição inicial rígida. Seu jogo pede mais percepção que raciocínio.
O jogo domina de ponta a ponta a obra de Abraham Palatnik, adquirindo formas variadas em função dos programas preestabelecidos. Nos aparelhos cinecromáticos, é o infindável fazer/desfazer dos movimentos, o manchar/desmanchar das cores. Nos objetos cinéticos, um jogo de simetrias e assimetrias prolongando movimentos silenciosos. No objeto lúdico, o ganho do jogador é o resgate da forma geométrica original. No jogo acima comentado, o ganho é a percepção do quadrado perfeito. Um artista como Palatnik é a perfeita ilustração do homo ludens de que fala Huizinga.
Ainda em 1962, deu início à primeira de uma série de “relevos progressivos”, cada uma delas identificada por uma matéria-prima. A primeira escolhida foi a madeira.
Visitando uma marcenaria, Palatnik observou que os fragmentos de troncos de madeira espalhados pelo chão, abertos longitudinalmente, constituíam uma informação espontânea da natureza. A progressão de nós constitui um registro inevitável de situações de crescimento. Vale dizer, a própria natureza cria, no interior da madeira, padrões visuais: tonalidades, grafismos, manchas. Decide, então, disciplinar esteticamente essas formas ou padrões naturais, pretendendo, com isso, “atingir os sentidos do homem, ativando sua percepção”.
Essa questão é retomada por Palatnik, em entrevista que me concedeu (“Palatnik, artista e inventor: A arte não deve transmitir mensagens, mas ter vida própria”, O Globo, 1981), na qual afirma: “Minha função como artista é disciplinar o caos em nível da informação. As informações no universo estão geralmente ocultas, disfarçadas em meio à desordem. É necessário um mecanismo de percepção e da intuição para que estas se manifestem. É a esta ‘surpresa’ que tenho colocado meu interesse. Inicia-se o processo de permuta e, por meio da tecnologia adequada, procuro disciplinar as informações”.
Nos primeiros trabalhos, a preocupação dominante era enfatizar a ideia de progressão do ritmo horizontal-ondulatório que, cobrindo todo o plano bidimensional, sugere uma expansão virtual para além das bordas do quadro. Vieram, mais tarde, trabalhos nos quais a progressão é parcialmente substituída, ou melhor, ela surge acoplada à ideia de simetria, na medida em que as lâminas da madeira formam determinados núcleos ou áreas/manchas que se opõem simetricamente.
Palatnik constrói seus primeiros Objetos cinéticos, constituídos por hastes ou fios metálicos, tendo em suas extremidades discos de madeira, pintados de várias cores, e placas que se movimentam lenta e silenciosamente, acionados por motores e, em alguns casos, por eletroímãs. Neles só existe movimento; os objetos cinéticos encontram-se mais próximos da escultura e do desenho; os aparelhos cinecromáticos, mais próximos da pintura e do cinema. Nos aparelhos, a engrenagem mecânica e elétrica é invisível, reforçando a sensação de animação pictórica. Nos objetos cinéticos, ela ganha visibilidade, integra o campo visual, indicando que Palatnik procura dar à própria mecânica uma dimensão estética. Nos aparelhos, a metamorfose contínua de formas e cores – dinamismo plástico – provoca efeitos de cinestesia. Nos objetos, o movimento provoca encantamento.
Aparelhos e objetos são máquinas de criar arte e foram construídos com o mesmo rigor e espírito lógico, mas os primeiros sugerem maior ordenação e controle. Os objetos parecem mais espontâneos, como se, neles, o acaso interviesse. É certo que os objetos cinéticos se movimentam com a ajuda de motores ou eletroímãs, mas o espírito que os anima é o do móbile, que é também máquina, mas acionado por uma fonte de energia natural que lhe confere frescor, leveza e lirismo.
Em 1965, Palatnik retoma a pesquisa com campos magnéticos, criando um objeto lúdico, que consiste na colocação sobre uma base circular, de vidro, de formas geométricas de cores diferentes, acionadas diretamente pelo espectador, através de um bastão magnetizado. Vale dizer, Palatnik usa os polos positivo e negativo dos ímãs para atrair ou repulsar as formas geométricas que constituem fragmentos de uma estrutura maior a ser armada pelo espectador-participante. Trata-se, no limite da interpretação, de um jogo.
A partir de 1968, Palatnik passa a empregar, na construção de seus relevos progressivos, o cartão dúplex. Mas, em vez de usar a superfície do papel, superpõe várias folhas, criando um aglomerado que, em seguida, é fatiado pelo topo. Nessa tarefa, emprega um mecanismo de facas duplas. Seus relevos, em diferentes profundidades, resultam em estruturas óticas, em cujos interstícios a luz perpassa, criando áreas mais ou menos iluminadas ou que parecem fechar-se ou abrir-se em função do próprio deslocamento do espectador. Palatnik explora, em seus relevos, o excesso e o fausto visual, evitando o vazio, como nas igrejas setecentistas do barroco universal. Emerge algo de sacral nesses relevos, e isso fica mais evidente quando substitui o cartão pelo metal dourado.
Em 1975, Palatnik inventou o que chamou de Objeto rotativo – uma peça de resina de poliéster, medindo 12 x 2,5 x 0,8 centímetros, que, em função de uma pequena distorção num dos lados da parte inferior, inverte sua rotação. Impulsionada pelo usuário sobre uma superfície horizontal, lisa e dura, a peça, depois de um arranque no sentido horário, reage, fazendo o movimento contrário.
Nas décadas subsequentes, Palatnik empregaria sucessivamente três novos materiais: nos anos 1970, a resina de poliéster; nos anos 1980, cordões sobre telas; nos anos 1990, um composto de gesso e cola. Com esta última, levada à tela com ajuda de uma bisnaga cujo bocal serve de pincel, inunda o espaço com um grafismo vibrátil e colorido, mas ainda de caráter progressivo. Nas progressões com resina de poliéster, explora, antes de tudo, a transparência do material.
Em 1981, por ocasião da primeira exposição das progressões realizadas com cordas sobre telas pintadas com tinta acrílica, Palatnik dizia tratar-se de “uma tentativa de organizar a superfície de uma maneira diferente dos procedimentos normais, introduzindo uma dinâmica através da cor”. Eu acrescentaria: uma dinâmica através da cor e da linha. Com efeito, alguns trabalhos da série estão compostos apenas de cordões cobertos pelo mesmo branco que serve de base às demais pinturas. E, fazendo uso apenas do branco, Palatnik reforça a estrutura linear que tensiona os ritmos ótico-cinéticos, que é a constante de toda sua obra. Contudo, diferentemente das progressões construídas com lâminas de jacarandá, que tendem a uma expansão horizontal, como se fossem um Muybridge abstrato, nas progressões com cordões, o impulso é para o alto, como se ele quisesse expressar, ao mesmo tempo, a sonoridade cromática do teclado luminoso de Scriabin e o ímpeto ascensional das colunas que crescem como florestas no interior das catedrais góticas.
Sempre fugindo do pincel e dos pigmentos, Palatnik realizou, em 1988, uma série de dez pinturas a duco sobre cartão, que é, a seguir, colado sobre chapa de fibra de madeira. Essa tinta industrial já fora usada por alguns integrantes do Grupo Frente, como Ivan Serpa, porque ela atende melhor às exigências de uma pintura geométrica, de cores puras e lisas. Uma pintura não contaminada pela subjetividade do pintor. As dez pinturas da série, todas medindo 37,5 x 37,5 cm, foram reunidas em uma caixa de madeira, como se fora uma coleção ou museu portátil. Se as progressões são um momento de expansão barroca do artista, esta série pode ser vista como um interregno de pintura concreta.
Em 1988 coordenei, a pedido da Secretaria de Turismo do Rio de Janeiro, um concurso fechado para a criação e implantação de uma escultura subaquática para o mar de Angra dos Reis. Convidei Abraham Palatnik a participar. Acostumado desde muito jovem a enfrentar os mais diferentes desafios, aceitou, com entusiasmo, o convite inusitado, projetando uma escultura que não deveria ser simplesmente mergulhada no mar, mas a proposta de um “encontro flutuante” do mergulhador com a obra. Acompanhando a própria dinâmica da escultura, o mergulhador percorrê-la-ia por dentro e por fora, extraindo do percurso uma vivência ao mesmo tempo sensorial e lúdica. A obra, que foi projetada para ser construída com chapas de aço naval, portanto, ecologicamente inócua, conviveria com a fauna e flora subaquáticas. Associando a forma geométrica em espiral de sua escultura ao caracol e à craca, que com o tempo iria fatalmente se colar à superfície da obra, Palatnik denominou-a Cracol. Nenhum dos cinco projetos apresentados, inclusive o premiado pelo júri, logrou ser executado. Uma pena.
Por volta de 2004, Abraham Palatnik deu início a uma nova série denominada simplesmente W. À primeira vista, trata-se de mais um desdobramento de seus relevos progressivos. E é. Mas vai além, ao propor uma discussão sobre a ativação do suporte, sua materialidade, diante da ocupação abstrata e/ou figurativa da superfície.
Nara Roesler foi a primeira galerista a expor trabalhos dessa nova série, que eu analisei em texto para o catálogo da mostra realizada entre dezembro de 2004 e janeiro de 2005. Já afirmei, mais de uma vez, que Palatnik é um artista de tipo novo, que não se contenta em amassar, sem inovar, o mesmo pão da história da arte. E continuou sendo, mesmo quando, em leituras apressadas, muitos viram, já nos primeiros trabalhos da série de relevos progressivos, um retorno à velha pintura. Esta ele já abandonara, definitivamente, após ver os trabalhos geniais realizados pelos artistas esquizofrênicos do Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro. Ao iniciar a série de relevos progressivos, em 1962, ele afirmou que retomou a bidimensionalidade do plano para realizar o que definiu como uma “disciplina de superfície”. Descartou, então, não apenas a figura, mas tudo aquilo que tradicionalmente se identifica com a prática da pintura: cavalete, pincéis, bisnagas, desenhos preparatórios etc.
Transcrevo a seguir o que escrevi sobre mais essa invenção de Palatnik. A obsessão pelo conteúdo foi um dos motivos principais das críticas dirigidas à iconologia, definida por Erwin Panofsky como um braço da história da arte que se ocupa do tema por oposição à forma. Ora, um quadro é composto por duas realidades interligadas. Um suporte material e uma superfície que o pintor ocupa com figuras, paisagens, objetos ou formas. Ao longo dos séculos, apenas a superfície, enquanto receptáculo da imagem, foi motivo de valorização e de estudos. Eis que alguns artistas contemporâneos passaram a trabalhar no sentido da decomposição dos elementos materiais do quadro, o que determinou o que foi chamado de “ruína da imagem”, com a destruição do espaço ilusório. Em outras palavras, a intenção desses artistas era substituir a iconologia por uma materiologia. Ou, no dizer de Jean Clair, “o quadro desaparece como lugar de uma encenação, para renascer em sua fisicalidade de suporte e de superfície. A obra não mais encarada como objeto de um saber, mas como objeto para um saber”.
A prática desenvolvida por Palatnik na realização de seus novos trabalhos tangencia a de alguns integrantes do grupo francês Support/Surface, mas visa alcançar outros objetivos, convergentes com o conjunto de sua obra. De fato, ele começa espraiando a tinta acrílica sobre a madeira, criando diferentes áreas de cor. Em seguida, o suporte entintado é fatiado a laser e, com as tiras resultantes do corte, cria novas estruturas visuais. As linhas nascidas da junção das tiras de madeira reativam a cor, dinamizando a superfície como um todo. Um programa previamente definido associa progressão horizontal e deslocamento vertical. Com os objetos cinéticos, Palatnik trouxe a primeiro plano a materialidade da mecânica da obra, que se iguala em beleza aos efeitos visuais. Com a série W, suporte e superfície constituem uma unidade indissolúvel.
Palatnik inventou e patenteou diversos mecanismos industriais e os dois jogos já referidos. Um problema vital para a economia de certas regiões do Nordeste era como quebrar o coco do babaçu, para dele extrair a semente, que será transformada industrialmente em óleo. Em 1952, depois de seis meses pesquisando, conseguiu produzir uma máquina que quebrava o coco sem comprometer a integridade da semente. Em 1968, projetou dispositivos para agilizar a alimentação das máquinas de produção de farinha de peixe. No mesmo ano, encontrou uma solução econômica e menos poluente para a reembalagem de um pó especial para obturação de dentes. Durante muitos anos, dividiu seu talento entre a criação e a fabricação de objetos decorativos (bichinhos de poliéster), exportados para catorze países da Europa e Ásia, e sua arte. “Todas as minhas invenções industriais foram posteriores à invenção do aparelho cinecromático”, disse-me na mesma entrevista. Em um dos seus raros textos escritos, Palatnik sustenta que “Para inventar alguma coisa, é preciso possuir um comportamento anticonvencional. Eu acho que as indústrias deveriam convocar artistas plásticos, porque eles possuem um potencial perceptivo que pode resolver inúmeros problemas”.
Em algum texto, cujos título e localização me escapam, Mário Pedrosa escreveu: “Os artistas revolucionários de nossos dias serão inventores, ou não o serão, mas inventores como os arcaicos, que, locados da ingenuidade das crianças, criam, destruindo seus brinquedos, e nutridos de pura imaginação, de si mesmos se esquecem, à eterna procura da pedra filosofal, nos equívocos alambiques onde ciência e magia hoje se confundem”.
Seu ateliê, incrustado em dois cômodos apertados de seu apartamento na Urca, não prima pela assepsia dos ambientes tecnológicos modernos, nele não se encontram computadores e outros sofisticados aparelhos eletrônicos, mas uma parafernália de caixas e recipientes com parafusos, porcas, engrenagens, furadeiras, serras circulantes, lupas, lixadeiras, soldadores, alicates, pequenos tornos. Nesse ambiente de baixa tecnologia ele é, verdadeiramente, um artista-artesão, mas capaz de fazer milagres com seu equipamento rudimentar. E de nos emocionar com suas obras.
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