Fragonard e o Rococó francês
Fragonard pintou abertamente os gostos exuberantes e sensuais dos clientes, expressando a sociedade da época.
Com a transferência da corte francesa de Versailles para Paris, no período da Regência[1], os grandes châteaus foram trocados pelas residências conhecidas por hótels, bem menores.
Os hótels exigiam um estilo de decoração interior menos grandioso e pesado que o de Lebrun – um estilo íntimo e flexível, que desse maior oportunidade à fantasia individual liberta dos dogmas classicistas. Em resposta a esta necessidade, os decoradores franceses criaram o Rococó (ou estilo de Luís XV, como frequentemente chamado em França) (JANSON, 1992, p. 556)
A pintura dos pequenos quadros foi adaptada para um estilo mais feminino, delicado e íntimo, com tonalidades claras e luminosas, em que desapareceram os fortes contrastes de luz, satisfazendo o gosto sensual da clientela tanto feminina como masculina, da corte de Luís XV[2] e da Madame de Pompadour[3] favorita do rei, uma das maiores incentivadoras do novo estilo artístico.
Entre os pintores do Rococó francês[4], Jean Antoine WATTEAU (1684-1721) compreendeu desde o início as mudanças no gosto artístico da fina e elegante sociedade parisiense, e soube na época representar em sua obra os anseios de um estilo mais alegre, íntimo, sensual e feminino.
Esses anseios e uma certa profundidade emocional que distingue a arte de Watteau e as pinturas em que François BOUCHER[5], embeleza as curvas e explora a sensualidade feminina, foram sementes para outros artistas do período e compartilhada, principalmente, por outro grande artista do período: Jean-Honoré FRAGONARD (1732-1806)
Obras em Destaque
Jean-Honoré FRAGONARD (1732-1806)
Nascido em Grasse, discípulo de François Boucher e aluno de CHARDIN[6], Fragonard pintou abertamente os gostos exuberantes e sensuais dos clientes, expressando a sociedade da época. “Fragonard pinta com uma fluidez e espontaneidade que lembram os esboços a óleo de RUBENS[7]. As suas figuras movem-se com uma graça flutuante que também o liga a TIEPOLO[8], cuja obra ele admirara na Itália.” (JANSON, 1992, p. 557)
Vencedor do Grand Prix de Roma, patrocinado pelo governo francês, Fragonard observou os templos, jardins, fontes e grutas na cidade italiana. Em 1765, de volta à França, admitido na Académie Royale de Peinture et de Sculpture, passou a produzir para a corte de Luís XV e demais clientes da alta classe parisiense, que apreciavam seu talento em cenas domésticas e íntimas impregnadas de erotismo.
O Balanço[9] e Banhistas[10] são exemplos máximos da obra sensual de Fragonard que soube como nenhum outro representar o gosto francês no período da arte Rococó.
A obra prima de Fragonard, Diana e Endimião, mostra o jovem pastor apoiado nas rochas e seminu, dormindo, ao lado do cão e de suas ovelhas, sobre um chão batido e cercado de arbustos. A deusa desce dos céus na frente de uma iluminada e enorme lua crescente. Impressionada com a beleza de Endimião ela estende a mão prestes a tocar o belo corpo. Eros, representado pelo cupido em rosa, envolto em nuvens, estende a varinha em direção ao seu deleite.
O tema representado trata da história de amor entre Ártemis e Endimião.
Filho de Cálice e Aetlio[11], o formoso Endimião, que alguns dizem ser filho de Zeus, ajudou seu pai no deslocamento dos eólios da Tessália para a cidade de Élis, na Grécia.
Fascinada pela beleza extraordinária do príncipe de Élis, Ártemis se aproximou enquanto ele dormia e com o coração palpitante, quase sufocando, tocou amorosamente seus lábios, enamorando-se por ele. No entanto, Zeus que tudo via, ficou indignado e preocupado, pois prometera manter a virgindade eterna da filha. Aproximando-se do jovem “outorgou-lhe que escolhesse o que quisesse. Ele escolheu dormir eternamente, permanecendo imortal e sem envelhecer.” (APOLODORO, I, 5-6, 2016, p. 63)
Assim, mal a noite caía, com a lua iluminando as primeiras sombras, Ártemis descia dos céus para contemplar e se deliciar com o amado, beijando-o muitas vezes, certa de poder manter-se casta, enquanto ele dormia. Com o dia chegando, muitas vezes ali permanecia a proteger seu rebanho, defendendo-os dos animais selvagens que perambulavam pelo monte Latmos[12].
Carta de Amor é moldada velozmente por Fragonard em tons de marrom e amarelo. A luz à esquerda ilumina a jovem vestida à moda francesa: punhos de renda generosamente franzida e decote atrás com plissado que desaba em pregas soltas. O penteado da época recebe uma leve touca de musselina com laços de cetim rosa. A jovem mulher em seu boudoir – saleta essencialmente feminina e privada – acaba de ler o cartão enviado com o ramalhete de flores. Surpreendida, ela se vira com um sorriso fogoso.
A atmosfera alegre e superficial reflete o estilo Rococó. No ambiente vistoso e desarrumado a garota com a camisa de seda levantada nos quadris levanta as pernas para aproximar seu cãozinho e lhe fazer um carinho. As cortinas do dossel puxadas, a capa no chão, a touca caída no travesseiro, o lençol desgrenhado, a face rosada e alegre sugerem uma velada travessura sensual.
REFERÊNCIAS
ALTE PINAKOTHEK, Munique, Alemanha. Disponível em: https://www.sammlung.pinakothek.de/en/bookmark/artwork/anxgB3OP4E Acesso em 21 mar. 2020.
APOLODORO. Biblioteca Mitológica. Tradução Julia García Moreno. Madrid, Espanha: Alianza Editorial, 2016. 340 p.
JANSON H. W. História da Arte. Tradução J.A. Ferreira de Almeida; Maria Manuela Rocheta Santos. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 823 p.
MARTINI, F. R. Sans. Virgem Ártemis: protetora e implacável. Revista Interdisciplinar. Art&Sensorium, Curitiba, v.5, n.2, p. 073 – 092 Jul. – Dez. 2018. Disponível em: http://periodicos.unespar.edu.br/index.php/sensorium/article/view/2340/1673 Acesso em 22 mar. 2020.
MUSÉE DU LOUVRE, Paris, França. Disponível em: http://cartelfr.louvre.fr/cartelfr/visite?srv=car_not_frame&idNotice=10881&langue=fr Acesso em 21 mar. 2020.
NATIONAL GALLERY OF ART, Washington D.C., EUA. Disponível em https://www.nga.gov/collection/art-object-page.46026.html Acesso em 21 mar. 2020.
THE METROPOLITAN MUSEUM OF ART, Nova York, EUA. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/436322 Acesso em 20 mar. 2020.
THE METROPOLITAN MUSEUM OF ART, Nova York, EUA. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/436325 Acesso em 20 mar. 2020.
THE WALLACE COLLECTION, Hertford House, Londres, Inglaterra. Disponível em: https://www.wallacecollection.org/collection/les-hazards-heureux-de-lescarpolette-swing/ Acesso em 21 mar. 2020.
[1] O Duque de Orléans, Filipe Charles II (1674-1723), sobrinho de Luís XIV, foi Regente da França de 1715 a 1723, durante a menoridade de Luís XV (1715-1774) bisneto de Luís XIV (1638-1715).
[2] Rei da França no período de 1715 a 1774, Luís XV (1710-1774) assumiu o governo em 1723, quando atingiu a maioridade, das mãos do tio avô, Filipe II, duque de Orléans. Durante seu reinado manteve, entre as amantes, a Madame de Pompadour.
[3] Com encanto e inteligência, Jeanne Antoinette Poison (1721-1764), conhecida como Madame de Pompadour, ganhou imenso poder na corte francesa e foi responsável por patrocinar, junto à corte francesa, os artistas do estilo Rococó.
[4] Entre os pintores do Rococó francês encontram-se: Jean Antoine WATTEAU (1684-1721), Jean-Baptiste-Joseph PATER[4] (1695-1736); Nicolas LANCRET (1690-1743); Jean-Baptiste Siméon CHARDIN (1699-1779); François BOUCHER (1703-1770); Jean-Honoré FRAGONARD (1732-1806); Jean-Marc NATTIER (1685-1766) preferido das filhas de Luís XV, Jean Baptiste GREUZE[4] (1725-1805) e Maurice Quentin de LA TOUR (1704-1788). Entre os escultores franceses: Jean-Louis LEMOYNE[4] (1666-1755); JEAN-BAPTISTE II Lemoyne (1704-1778); Étienne-Maurice FALCONET (1716-1791) e Guillaume COUSTOU, o Jovem (1716-1777)
[5] Bem-sucedido, com uma grande produção de pinturas pastorais e temas mitológicos no estilo Rococó, François BOUCHER (1703 -1770) foi nomeado pintor oficial de Luís XV (1710-1774)
[6] Aluno de Antoine COYPEL (1661-1722) o artista Jean-Baptiste Siméon CHARDIN[6] (1699-1779) pintou naturezas-mortas e cenas de gênero, em especial cenas da burguesia francesa, semelhantes às cenas representadas por artistas holandeses do século XVII. Considerado um dos artistas mais notáveis do Rococó francês,
[7] Peter Paul RUBENS (1577-1640) sabia como ninguém distribuir as figuras em grande escala, impregnadas de força e paixão, aliadas aos volumes, luzes, cores e dinamismo. Mais de Rubens em: https://arteref.com/artigos-academicos/peter-paul-rubens/
[8] Veneziano de nascimento e formação, as obras de Giovanni Battista TIEPOLO (1696-1770) anteriormente executadas dentro da herança clássico-Barroca se tornaram ao longo do tempo impregnadas de graça e elegância, próprias do novo estilo francês – o Rococó da corte de Luís XV. Mais de Tiepolo em https://arteref.com/artigos-academicos/tiepolo-entre-o-barroco-final-e-o-rococo/
[9] Jean-Honoré FRAGONARD (1732-1806) O Balanço (Swing), ca. 1767-1768. Óleo sobre tela, 81×64.2. The Wallace Collection, Hertford House, Londres, Inglaterra.
[10] Jean-Honoré FRAGONARD (1732-1806) Banhistas (Les baigneuses), 1763-1764. Óleo sobre tela, 64×80. Musée du Louvre, Paris, França.
[11] Depois de ajudar os eólios da Tessália a se deslocarem em direção à Grécia, Aetlio, filho de Zeus e Protogênia, tornou-se o primeiro governante da cidade de Élis ou Élida, fundada por ele com a ajuda do filho Endimião. Anos mais tarde Élida foi saqueada por Héracles, Hércules para os romanos.
[12] Na região próxima à antiga Cária, onde chegaram os jônios, dórios e eólios durante a colonização da Grécia antiga.