Os artistas dos Países Baixos, no final do século XV e início do século XVI, inspiraram-se e difundiram os ideais do Renascimento italiano.
O Renascimento italiano começou com GIOTTO (c.1266-1337) quando em sua pintura as formas góticas e bizantinas foram transformadas em figuras reais e naturais de acordo com a visão humanista do mundo. Em seguida passou por MASACCIO (1401-1428/9) e a pintura foi marcada, entre outras, por três categorias: a medida, o desenho e a maniera.
A medida permite calcular a representação exata e harmônica do corpo humano. O desenho, por sua vez, imita a natureza, pelas mãos perfeccionistas dos grandes artistas. A maniera é a forma como cada artista do seu tempo aplica a representação, por meio da prática e da composição, dominando assim, o ideal e o fazer artístico.
O período “lançou as bases à luz das quais se atingiu a perfeição da terceira época, a bella maniera, que se encontra em Leonardo da Vinci, Rafael e culmina com Michelangelo”. (PESTANA, 2004, p. 16)
As realizações dos mestres italianos causaram profundo impacto nos artistas alemães e flamengos, em busca de progresso e novos horizontes em sua arte. No entanto, a região dos Países Baixos “assimilou os elementos italianos mais lentamente do que a Alemanha, mas de uma forma mais segura e sistemática.” (JANSON, 1992, p. 493)
Com a Reforma Protestante1 os assuntos religiosos tradicionais, copiados das pinturas italianas, foram substituídos pela natureza morta, paisagens e cenas de gênero, na tentativa de quebrar as regras clássicas e definir um estilo já aplicado por Robert CAMPIN (ca. 1375-1444), os irmãos: Jan van EYCK (ca.1390-1441) e Hubert van EYCK (1366-1426) e Rogier van DER WEIDEN (ca.1399-1464).
Entre os artistas que atuaram entre o final do século XV e início do século XVI, nos Países Baixos encontram-se: Cornelis ENGELBRECHTSEN (1468-1533); Jacob Cornelisz van OOSTSANEN (1472/77- ca.1533); Jan Jansz MOSTAERT (1475-1555/56), um dos mais importantes artistas da cidade de Haarlem; Jan van SCOREL (1495-1562) e Lucas van LEYDEN (ca. 1489/1494-1533)
Nascido em Leiden, atual província da Holanda do sul, Lucas van Leyden é considerado um dos primeiros grandes nomes da arte da gravura, nos Países Baixos. A data do seu nascimento é incerta, assim como os motivos que levaram à sua morte tão precocemente.
O início da sua produção recebe temas religiosos, mas logo Leyden se afasta do assunto, produzindo inúmeras gravuras com histórias mitológicas, cenas de gênero e caricaturas. No entanto, são poucas as gravuras que restaram, pois, perfeccionista, o artista inutilizava a chapa original, quando insatisfeito.
As gravuras sobre os hábitos e costumes holandeses, com registros de atividades médicas são as mais importantes guardadas entre os acervos e procuradas pelos colecionadores.
A gravura trata da paixão do jovem assírio, Píramo, pela linda Tisbe, descrito e reproduzido por inúmeros poetas e dramaturgos2.
“Píramo e Tisbe, ele, o mais belo dos jovens,
ela, que superava quantas donzelas teve o Oriente,
viviam em casas contíguas, onde se conta que Semíramis3
havia rodeado a sua cidadela de altos muros de adobe”.
(OVÍDIO, IV, 55-58, 2017, p. 219)
Uma estreita fenda na parede que dividia as duas casas facilitou a comunicação entre os jovens que viu com o tempo o amor desabrochar. Impossibilitados de se tocarem, planejaram encontrar-se fora da cidade, próximo a uma bela fonte, protegida pela sombra de uma amoreira branca.
Era uma noite de lua. Tisbe, envolta num véu, chegou primeiro ao encontro combinado. Aí foi atacada por uma leoa que tinha o focinho ensanguentado, e da qual Tisbe fugiu com tamanha precipitação que deixou cair o véu. (COMMELIN, 2008, p. 352)
Escondida em uma gruta, Tisbe, esperou ainda com o coração em disparada. O animal depois de saciar a sede com a água fresca da fonte, virou seus passos, agora lentos e pesados, em direção ao bosque, em busca de repouso. Entretanto, ao avistar o véu caído ao chão, o feroz animal despedaçou-o deixando nos trapos o sangue dos seus dentes.
Píramo, logo depois, chega ao local de encontro e encontra o véu da amada com sangue. Sobressaltado, com sentimento de culpa, acreditando que Tisbe fora devorada pelo animal, o jovem desesperado e choroso, beija o tecido impregnado ainda com o cheiro da amada, e grita para o alto:
“Recebe agora também o hausto do meu sangue!”
E cravou nas entranhas o ferro que trazia cingido.
Moribundo, arranca-o, em seguida, da ferida ainda quente.
Ao ficar estendido de costas no chão, o sangue repuxa com força,
como quando, no chumbo corroído, se abre uma fissura
e por essa estridente passagem arremessa ao longe
finos esguichos de água que cortam o ar com seus golpes.
Os frutos da árvore assumem aparência escura,
pela aspersão do sangue, e, pelo sangue regada,
a raiz tinge de cor púrpura as amoras pendentes.
(OVIDIO, IV, 118-127, 2017, p. 223)
Nesse meio tempo, Tisbe, sai do lugar em que está escondida, voltando ao ponto de encontro cuja terra banhada em sangue apresenta um corpo quase sem vida, arquejante. Tão logo reconhece o amado, a jovem aperta seu corpo entre os braços, enquanto em pranto, verte lágrimas que se misturam ao sangue. Ao ser beijado, o jovem ainda ergue os olhos, agora já marcados pela sombra da morte iminente.
Só então a bela Tisbe reconhece ao lado a longa espada ensanguentada, compreendendo o gesto infeliz. Rogando aos céus que possam seus infelizes pais unirem os dois no mesmo túmulo, Tisbe se lança contra a ponta férrea, ainda quente, transpassando seu peito ainda tão jovem e macio. Contra o destino cruel, os corpos finalmente se encontram no abraço da morte.
Quando os pais dos fugitivos chegam ao local, cada qual abraçando um filho, é impossível também eles não se abraçarem.
Resta aos tristes pais dos desventurados amantes, olhar para o alto da sombra onde descansa uma amoreira. Assim, percebem surpresos, que absorvido pelas raízes da antiga árvore, o sangue de ambos os filhos, tingem de vermelho os frutos, outrora brancos.
COMMELIN, P. M. Mitologia grega e romana. Tradução Eduardo Brandão. 4. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. 440 p.
JANSON H. W. História da Arte. Tradução J.A. Ferreira de Almeida; Maria Manuela Rocheta Santos. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 823 p.
MARTINI, Fátima R. S. A Pintura Renascentista e Maneirista nos Museus. In Curso de Extensão/UNIMES virtual. Santos/SP: UNIMES, 2016. 57 p.
OVIDIO. Metamorfoses. Tradução Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34, 2017. 909 p.
PESTANA, Maria Isabel da Câmara S. C. Gomes. Das coisas visíveis às invisíveis. Tese (Doutorado em História da Arte da Época Moderna) Universidade da Madeira, Funchal, Portugal, 2004. 328 p.
RIJKSMUSEUM,Amsterdam, Holanda. Disponível em: http://hdl.handle.net/10934/RM0001.COLLECT.519997 Acesso em: 19 ago. 2019.
THE METROPOLITAN MUSEUM OF ART, Nova York, EUA. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/360210 Acesso em: 19 ago. 2019.
THE METROPOLITAN MUSEUM OF ART, Nova York, EUA. Disponível em: https://images.metmuseum.org/CRDImages/dp/original/DP819061.jpg Acesso em: 19 ago. 2019.
1 O Movimento, em princípio a revolta contra a venda de indulgências, pela igreja católica por parte de Martinho Lutero evoluiu para a Reforma Protestante, por volta de 1517.
2 Em Decameron, de Giovanni Boccaccio, um dos contos é similar à história dos amantes. Luigi Da Porto (1485-1529), historiador veneziano escreve uma novela com o trágico casal, no início do século XVI. William Shakespeare apresenta o drama semelhante em Romeo Montecchi e Giulietta Capuleti, tragédia escrita entre 1591 e 1595; e na comédia, Sonhos de uma noite de Verão, ele entrelaça diversos personagens análogos aos textos antigos. O mito do casal também se encontra em uma das fábulas de Jean de La Fontaine (1621-1695).
3 Conta-se que Semíramis reinou, na Antiguidade, sobre a Pérsia, Assíria, Armênia, Arábia e Egito por várias décadas. E poderia ser a responsável pela construção dos Jardins da Babilônia.
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