Gente de Arte

Reflexões sobre o “Cubo Branco”

Por Equipe Editorial - dezembro 19, 2013
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Labirindo, de Michelangello Pistoletto

A obra de Brian O’Doherty consiste em uma série de apontamentos críticos que nos ajudam a entender mais profundamente todas as relações visíveis e intrínsecas presentes dentro dos espaços expositivos e mais, entender paralelamente o contexto em que as obras de arte, a partir do modernismo, desejam-se inserir.

O autor investiga a sintaxe das linguagens tradicionais da arte com um certo tom de ironia, pensada  tanto teoricamente  – em seus quatro ensaios “No interior do cubo branco” publicados na revista Art Forum em 70 e 80 – como plasticamente. Portanto nestes ensaios, os paradigmas do espaço expositivo são explorados de forma crítica por um “usuário” deste meio, um produtor, um artista. Ele aponta para as contradições a partir de sua experiência paradoxal entre produzir uma obra e inseri-la neste espaço de arte normativo. A arte está contida dentro de uma série de complexas tramas onde as instâncias que a ela pertencem – artista, espectador, colecionador, curador e críticos – são inclinadas a fazer parte deste jogo que é regido por nada mais que os espaços denominados Cubos Brancos: Galerias, museus, espaços expositivos institucionalizados, ou os que dizem ser “alternativos” (apesar de que mesmo estes se tornaram peças deste jogo). Não há artista que não se defronte, em um determinado momento de sua carreira, com a vontade ou a inclinação de inserir seu trabalho neste espaço – pois para se “viver” de arte, devemos ser aceitos e consagrados pelos olhos destes senhores brancos, precisamos nos institucionalizar.  Conseqüentemente a este desejo de pertencimento, a produção artística corre o risco de ser induzida e conduzida a coexistir através de códigos referentes e aceitos nestes espaços. Boa parte dos trabalhos que foram produzidos no século passado foram idealizados de antemão para serem expostos neste ambiente sacralizado e distanciado da realidade do mundo, pensamento que se estendeu e se intensificou até a contemporaneidade.

O’Dorethy começa seu ensaio comparando o espaço da galeria moderna como “construído segundo preceitos tão rigorosos quanto os da construção de uma igreja medieval” onde o fiel se vê diante de um espaço isolado do mundo exterior e diante de uma arquitetura que leva-o a sentir-se ínfero comparado à sua magistralidade arquitetônica. A fé é o link que permite que o fiel sinta-se, por mais diminuto que pareça, conectado àquele espaço. Já na galeria de arte, o espectador e a própria obra atuam influenciados sobre este ambiente espaço. Como espectadores mudamos a postura para sentirmo-nos aceitos neste lugar, assim como a obra de arte, que se condiciona para ser aceita neste sistema. O contexto deste espaço se apodera do objeto artístico, tornando-se ele próprio.

O’Dorethy pensa que o ambiente expositivo pouco se difere do propósito de construções religiosas que antecederam às igrejas medievais. As catacumbas egípcias, por exemplo, foram idealizadas para quebrar com a consciência do mundo exterior, onde a ilusão de uma presença eterna – indiciada pela múmia e todos os objetos da vida material que a cercam – devia ser conservada pela passagem do tempo. Ainda o autor vai mais além: nas cavernas pintadas no período Paleolítico na França e na Espanha encontramos uma série de produções e registros estéticos de uma época mantidos num ambiente deliberadamente separado do mundo exterior e ainda, de difícil acesso. Para chegarmos aos salões onde estas pinturas foram realizadas, devemos passar por uma série de obstáculos e dominar certas técnicas de exploração deste local. Uma metáfora pode ser construída a partir da ideia do domínio de determinadas “técnicas” ou códigos presentes também no contexto das artes plásticas: para nos relacionarmos com muitas das obras que são produzidas na contemporaneidade, devemos ter domínio de alguns códigos, eruditos ou não.

“A galeria ideal subtrai da obra de arte todos os indícios que interfiram no fato de que ela é ‘arte’. A obra isolada de tudo o que possa prejudicar sua apreciação de si mesma. Isso dá ao recinto uma presença característica de outros espaços onde as convenções são preservadas pela repetição de um sistema fechado de valores”[1]

A obra portanto é tida como objeto descontextualizado dentro do cubo branco, pela neutralidade do espaço que subtrai qualquer outro tipo de informação visual que possa interferir em sua leitura. Mas há também trabalhos que, ao invés de atuarem na subtração do espaço, atuam na soma. Ao invés de serem subordinados ao espaço, é o espaço que subordina-se ao trabalho. A arte contemporânea consegue usar seus artifícios para através de sua própria existência questionar ou exaltar alguma questão particularmente ao seu próprio status-cuo.

A arte contemporânea, apesar de conter muitas vezes um alto nível de codificação em suas obras, tem por excelência um diálogo maior com outros campos do conhecimento e da vida – tanto no sentido técnico (novas linguagens, técnicas e materiais explorados) quanto em seus desdobramentos com a realidade – que o modernismo ou obras precedentes a ele traziam. Alguns artistas contemporâneos conseguem trazer à tona esta relação da obra e o cubo branco explicitamente, como é o caso da obra de Ricardo Carioba “0=3” onde o artista usa dos códigos e estruturas presentes no espaço expositivo como parte integrante da obra. Nesta instalação Carioba usa nada mais que o próprio espaço branco da galeria e um tríptico luminoso com fachos de luz vermelha, verde e azul – red, green e blue, daí o RGB, cores básicas para a criação da imagem pixel no computador. Por isso não deixa de parecer contraditório, à primeira vista, que o artista use justamente o próprio cubo branco como única materialidade da obra. A princípio, uma galeria que parece apresentar nada mais que o vazio – pois a sobreposição destas três fontes luminosas resultam em luz branca – na realidade atua sobre a soma de elementos.

Ricardocarioba

Instalação “0=3” de Ricardo Carioba na Galeria Vermelho

Esta soma de elementos só é percebida com a presença física de um corpo no espaço. O espectador, assim como a obra, colaboram com as características positivas do cubo branco sejam potencializadas. A obra está ai totalmente em diálogo com o espaço, e ele em sua funcionalidade pura.

Penso que a problematização deste espaço é essencial para entendermos como uma série de valores são mantidos dentro do sistema de arte na contemporaneidade. Entender este espaço é também entender arte contemporânea, mesmo que ela ainda se desdobra em outros espaços, outros campos. Os artistas, curadores e educadores devem cada vez mais problematizar este ambiente, apontar para ações que possibilitam que esta estrutura rígida se torne mais penetrável pelo público e o público por ela também.

 Por Clarissa Ximenes


[1] O´DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do Espaço da Arte. São Paulo, Martins Fontes, 2002, p. 3.

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