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Apolo apaixonado: histórias com Daphne e Jacinto

Veja alguns dos amores do deus grego

Por Fatima Sans Martini - agosto 8, 2019
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Apolo foi apaixonado e muito amado por mortais e imortais, homens e mulheres, porém, essas relações e os frutos gerados dependem das diferentes versões literárias ao longo do tempo.

Aqui, destacam-se apenas duas de suas inúmeras paixões, descritas em versos por Ovídio, em Metamorfoses.


Apolo, Daphne e Cupido

Segundo Ovídio (I, 452-453, 2017, p. 77) “o primeiro amor de Febo foi Daphne, filha de Peneu. Esta paixão não foi obra de um cego acaso, mas do violento rancor de Cupido[1].”

Em uma discussão, Apolo cheio de si por ser exímio flecheiro, involuntariamente ofendeu o menino sobre suas brincadeiras com o arco e flechas. Desgostoso, o filho de Afrodite, cortou o ar com o bater de suas asas, postando-se próximo a uma das árvores do Parnaso.

De sua aljava cheia tira duas setas com funções distintas.
Uma afugenta, a outra faz brotar o amor.
A que o faz nascer é dourada, com uma ponta aguda e brilhante.
A que o afugenta é romba e tem chumbo no coração da cana.
(OVÍDIO, I, 468-471, 2017, p. 77)

Maliciosamente, o erotes do amor acertou uma seta com a ponta de ouro no coração de Apolo e a outra com a ponta de chumbo feriu a ninfa Daphne, filha de Peneu, o deus-rio da Tessália.

Rapidamente, o deus-Sol apaixonou-se pela donzela, no entanto, a ninfa percebeu-se apavorada frente à ideia de amar e ser amada.

O deus, oráculo do mundo todo, não logrou adivinhar seu próprio destino. Apaixonado passou a perseguir a donzela, onde quer que fosse e ela passou a fugir, sem sequer ouvir suas súplicas e explicações de que ele era um deus, que amava o canto e a lira, filho de Júpiter, senhor de Delfos e amado em Delos.

A ninfa seguidora da virgem Ártemis, em resposta ao questionamento do seu pai, que lhe desejava um genro e muitos netos, cobriu-se de vergonha e lançando os braços ao redor do pescoço do pai, suplicou-lhe:

“pai querido, que eu perpetuamente goze de minha virgindade.
Já antes o pai de Diana lhe consentiu o mesmo.”
Ele consentiu, mas não consente a tua elegância que sejas
o que pretendes! Com teu voto contende a tua beleza.
Febo está apaixonado. Ao ver Dafne, quer unir-se a ela.
E o que ele deseja, espera-o. Os próprios oráculos o enganam.
(OVÍDIO, I, 486-491, 2017, p. 79)

Certo dia, impaciente, desprezado e excitado, o jovem deus correu veloz atrás de Daphne, quase alcançando-a. Em pânico a jovem, já quase vencida pelo cansaço, avistou as águas de Tessália, onde o pai sempre repousava. Gritando, suplicou ao deus dos rios que se abrisse a terra para abriga-la ou lhe tirasse a beleza, tão fatal.  Em segundos, seus membros adormeceram; uma casca verdejante cobriu-lhe o peito, as mãos ganharam galhos e folhas.

O pé tão veloz ainda agora, fica preso qual forte raiz.
A sua cabeça é copa de árvore. Só o brilho nela se mantém.
E Febo ainda a ama. Pousando-lhe no tronco a mão,
sente ainda o palpitar do coração sob a nova casca.
E, abraçando os ramos no lugar dos membros,
beija a madeira. Mas ao beijo, a árvore retrai-se.
(OVÍDIO, I, 551-556, 2017, p. 83)

Desconsolado, certo de que jamais a bela jovem seria sua mulher, o deus jurou para sempre que as folhas do loureiro seriam suas preferidas, continuamente verdes, para enfeitar a lira e sua cabeça, assim como para coroar as frontes dos heróis, nos cortejos triunfais.

Giovanni Battista TIEPOLO (1696-1770) Apolo perseguindo Daphne, ca. 1755-1760
Giovanni Battista TIEPOLO (1696-1770). Apolo perseguindo Daphne, ca. 1755/1760. Óleo sobre tela, 68,5×87. Acervo: National Gallery of Art, Washington D.C., EUA.

Na pintura Apolo perseguindo Daphne, Giovanni Battista TIEPOLO (1696-1770) substitui a arte pesada e dramática do Barroco, em meados do século XVIII, por um novo estilo artístico, chamado de Rococó.  

Veneziano de nascimento e formação, o domínio da luz e da cor e a graça da pincelada, levaram a fama de Tiepolo além da terra natal. Os afrescos por ele pintados junto aos palácios da Alemanha e Espanha, exibem nas cores alegres e suntuosas, o seu gosto peculiar.

Na arte Rococó existe um prazer e uma alegria que não se observa em outro estilo. Os artistas renegam o formalismo e o tédio com a criação de um edílico mundo de lazer e alegorias.

As formas vigorosas e angustiadas do Barroco se transformam em gavinhas encaracoladas que se movimentam em delicada sensualidade. Os elementos rebuscados e decorativos atraem a aristocracia, que descobre nas figuras alegóricas a própria existência elegante e vazia.

O artista serve-se de consideráveis linhas inclinadas, todas em movimento, para evidenciar o forte impacto dramático e emocional da cena.

À direita o jovem Apolo, com o manto amarelo, avança em direção às figuras, da jovem mulher, do idoso pai e do menino, agrupadas à esquerda, descentralizando a composição pictórica.

O espaço entre os dois lados é formado por uma forte linha inclinada, que se adianta até o solo à direita. O corpo feminino que parece oscilar sobre o vaso inclinado se contrapõe à verticalidade de uma só perna fincada no solo, da figura masculina. O braço estendido à direita une os personagens e aponta o destino irreversível. Daphne está a ponto de se transformar em árvore, de onde brotarão folhas de loureiro. Na parte inferior, partindo da direita um remo se inclina sobre uma das pernas do velho Peneu, indicando a posição de Cupido, que sorrateiro, se esconde próximo à queda d’água, nas rochas.


Apolo e Jacinto

Apolo era apaixonado pelo jovem Jacinto, segundo Apolodoro (III, 10, 3, 2016, p. 185), filho de Amiclas[2] e Diomede.

Verdade seja dita, que Jacinto era amado por muitos, graças a sua beleza e juventude, e um espírito sempre generoso e cortês para com todos.

Nas brincadeiras ao ar livre, Zéfiro, o vento oeste, sempre estava por perto, a soprar favoravelmente, na esperança de dividir a atenção do menino, escoltado continuamente por Apolo.

O imortal arqueiro, por sua vez, acompanhava o menino em todos as atividades, fossem de trabalho, de diversão ou de caça. Nunca se tinha visto um deus segurando as rédeas de um cão ou um mortal lhe pregando peças. Quando junto ao amigo, Apolo esquecia das armas, do Parnaso e das Musas.

Certo final da tarde, ambos se divertiam junto ao promontório desprovido de árvores, nas proximidades de Esparta, quando resolveram lançar o amplo disco que carregavam.

Foi Febo quem, balançando-o, primeiro o arremessou
para o alto, rasgando, com o peso, as nuvens
que encontrou pela frente. Bom tempo depois, de novo
cai a pesada massa na terra dura, deixando entrever
a perícia aliada à força. Logo, movido pela paixão
do jogo, o imprudente jovem de Tênero
se precipita a apanhar o disco, mas a dura terra, Jacinto,
repelindo o peso, projeta-o contra o teu rosto. Empalidece
o deus da mesma forma que o jovem e recolhe o corpo caído.
(OVÍDIO, X, 178-186, 2017, p. 539-540)

O deus das previsões e da cura tudo faz para salvar a vida do amigo, mas em vão. O frágil e delicado corpo se inclina, a cabeça de Jacinto dobra-se sobre o ombro, tal como um lírio se dobra sobre à terra quando a haste se quebra.

E Apolo, incapaz de lutar com o destino, culpando-se por tanto amar, desabafa: “Pudesse eu dar minha vida em vez da tua ou dar a vida contigo! Visto que, pela lei do destino, sou neste ponto impedido, hás de sempre estar comigo, hei de sempre ter-te na minha boca” (OVÍDIO, X, 202-204, 2017, p. 541)

No mesmo instante em que a dor no peito parece romper as entranhas de Apolo, o sangue que escorre de Jacinto mancha uma erva ali plantada, da qual nasce uma flor. Um lírio, antes branco, cor de prata, mas agora, cor de púrpura.

Uma linda flor que sempre brota quando a primavera retorna, renovando a lembrança do grande amor de Apolo por Jacinto.

Dizem que Zéfiro se arrependeu de ter ventado mais forte naquela tarde, e que ele também se lembra de Jacinto. Quando os campos se tingem de púrpura, ele passa, quente e delicado, afagando as pequenas pétalas. 

Nicolas-René JOLLAIN (1732-1804) Jacinto se transformando em flor, ca.1769
Nicolas-René JOLLAIN (1732-1804) Jacinto se transformando em flor, ca.1769. Óleo sobre tela, 95×130. Imagem autorizada em 20 fev. 2018.Photo: © Château de Versailles, Dist. RMN / © Jean-Marc Manaï. Acervo: PETIT TRIANON, Versailles, França.

O estilo Rococó está presente na representação do tema de Jacinto se transformando em flor, pintura executada por volta de 1769, por Nicolas-René JOLLAIN (1732-1804)

O artista francês usa da sensualidade, leveza e graciosidade para definir o documento visual intimista do estilo reconhecido na França com o nome de Luis XV[3]. Um estilo, que atingiu o auge na primeira metade do século XVIII, no edílico mundo de lazer e alegorias, principalmente junto às cortes francesa e alemã.

Jollain produziu uma série de pinturas para a corte francesa. Sua obra esteve presente no Château de Bellevue[4], decorado para a Marquesa de Pompadour e nas paredes doChâteau Petit Trianon, em Versailles.

A composição apresenta os dois personagens entrecruzados, em que os membros se posicionam em linhas inclinadas e paralelas, acentuando o assunto dramático, sobre um fundo decorativo, representado pela delicadeza das flores e da vegetação. Estas em contraste com os tons de vermelho e dourado, cores presentes, praticamente em todas as pinturas no estilo das cortes reais do período.


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Referências

APOLODORO. Biblioteca Mitológica. Tradução Julia García Moreno. Madrid, Espanha: Alianza Editorial, 2016. 340 p.

MARTINI, F. R. Sans. Belo Apolo: apaixonado e vingativo. Interfaces da Educação., Paranaíba, v.9, n.25, p. 423-451, 2018.

NATIONAL GALLERY OF ART, Washington D.C., EUA. Disponível em: https://www.nga.gov/collection/art-object-page.41693.html Acesso em: 12 fev. 2019.

OVIDIO. Metamorfoses. Tradução Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34, 2017. 909 p.

PETIT TRIANON, Versailles, França. Imagem autorizada em 20 fev. 2018. Disponível Photo: © Château de Versailles, Dist. RMN / © Jean-Marc Manaï. em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Nicolas-Ren%C3%A9_Jollain Acesso em 12 fev. 2019.


[1] Chamado de Eros pelos gregos.

[2] Filho de Lacedemón, fundador da capital da Lacônia, Esparta.

[3]    Neto de Luís XIV, rei da França no período de 1715 a 1774, Luís XV (1710-1774) assumiu o governo em 1723, quando atingiu a maioridade, das mãos do tio, Filipe II, duque de Orléans. Durante seu reinado Luís XV manteve, entre as amantes, a Marquesa de Pompadour, Jeanne Antoinette Poison (1721-1764), uma mulher inteligentíssima e moderna, responsável por patrocinar os artistas do estilo Rococó junto à corte francesa.

[4]    Demolido no início do século XIX, o palácio de Bellevue foi construído com vista para o Sena, em Meudon (Hauts-de-Siene)

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ANDERSON Eduardo de Souza
ANDERSON Eduardo de Souza
5 anos atrás

Excelente.
Muito bom.

Telma Da Camara
Telma Da Camara
5 anos atrás

Linda história. Ótimo artigo!

Euclides
Euclides
5 anos atrás

É a mitologia grega bem explicada, com redação clara.

melissa
melissa
5 anos atrás

História linda de amor ❤️