Artigos Acadêmicos

Claude Lorrain e o Classicismo Barroco

Ele se acostumou a memorizar e muitas vezes registrar em esboços à pena os lugares que por horas ficava a observar.

Por Fatima Sans Martini - agosto 5, 2024
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Claude Lorrain (ca. 1600/5-1682) viveu quase toda a vida ao redor da Campagna, na região do Lácio, em torno de Roma, cuja beleza pastoral inspirava os artistas paisagistas.

Tal como Nicolas POUSSIN (1594-1665) que usou a literatura, para criar de forma metódica e racional paisagens idealizadas dentro do que se determinou como Classicismo barroco, Lorrain se acostumou a guardar na memória e muitas vezes registrar em esboços à pena os lugares que por horas ficava a observar, para depois, na calma do atelier, compor com pincéis e tintas panoramas embargados de fantasia e devaneios.

Nas clássicas paisagens com estrutura cenográfica atuam estradas sinuosas, cachoeiras, margens de rio, árvores, rochas, templos em ruínas, estilhaços de colunas, céu e nuvens, distribuídos entre diferentes planos. A idealização e a união entre os planos e as linhas horizontais, verticais e inclinadas tão ao gosto da arte barroca, são aplicadas na paisagem atemporal em grande escala, com equilíbrio, serenidade e harmonia.

Nas composições de Lorrain, as pequenas figuras agem e se movem distribuídas ao longo dos diversos níveis, raramente conectados. Um convite para que o observador aprecie e penetre a natureza em direção a amplidão fartamente iluminada ao fundo ou campos à luz do sol.

Sua obra constitui um trabalho primoroso, que justifica a fama angariada na História da Arte. De acordo com Gombrich (2000) os viajantes só julgavam perfeito e belo um trecho de paisagem real de acordo com os padrões fixados nas telas de Lorrain.

Franceses e ingleses, por exemplo, atravessaram os séculos XVIII e XIX, transformando seus jardins em conformidade com os sonhos de beleza do artista.

No período em que a pintura de paisagens era considerada um gênero pouco favorável, Lorrain lançou, simultaneamente com Poussin, as bases para a Poética do Pitoresco2, que viria a dominar a pintura alemã, francesa e inglesa, em que as paisagens se associam às ruínas e antigas construções, às frondosas árvores que cortam o céu azul com sublimes nuvens e às estradas sinuosas que abrigam pequenos caminhantes.

Claude LORRAIN (ca. 1600/5-1682) Hagar e Ismael no deserto3, 1668. Óleo sobre tela, 106,4x140. Alte Pinakothek, Munique, Alemanha.
Claude LORRAIN (ca. 1600/5-1682) Hagar e Ismael no deserto3, 1668. Óleo sobre tela, 106,4×140. Alte Pinakothek, Munique, Alemanha.

Na ampla paisagem, Lorrain representa no primeiro plano, à direita, as figuras do anjo, Ismael e Hagar.

Grande sombra permeia o primeiro plano, escondendo até mesmo o riacho que recebe da nascente o tênue fluxo d’água. Pequenos animais perambulam pela paisagem. O plano intermediário recebe rasgos de luz na ausência das brancas nuvens. As árvores e antigas ruínas cortam a luminosa atmosfera ao fundo e “o espaço expande-se serenamente.” (JANSON, 1992, p. 541)

Hagar, de origem egípcia, servia Sara, esposa de Abraão, na terra de Canaã. Com idade avançada e sem filhos, Hagar foi oferecida a Abraão e da união nasceu Ismael. Ciumenta, Sara expulsou Hagar, que fugiu para o deserto ao lado do filho. No entanto, um anjo os levou de volta.

Passados alguns anos, Sara também gerou um filho, que do mesmo modo se incomodou com Ismael. Abraão deu aos dois pão e água enviando-os em direção ao deserto. Perdidos, com sede, Hagar rogou a Deus que salvasse seu filho, que já estava morrendo. Um anjo foi enviado e rapidamente apontou uma fonte de água cristalina ali perto, salvando os dois. Adulto, Ismael fundou a dinastia dos ismaelitas.

Claude LORRAIN (ca. 1600/5-1682) Paisagem pastoral com um moinho, 1634. Óleo sobre tela, 59.06×82.87. Los Angeles County Museum of Art, Los Angeles, EUA.
Claude LORRAIN (ca. 1600/5-1682) Paisagem pastoral com um moinho, 1634. Óleo sobre tela, 59.06×82.87. Los Angeles County Museum of Art, Los Angeles, EUA.

A pintura lembra os desenhos que Claude Lorrain fez dos arredores de Roma. A vista é ampla e luminosa ao fundo, para onde se encaminham pequenas figuras. O contraste, entre a luz intensa no fundo e as grandes sombras em primeiro plano, é uma das características marcantes das paisagens de Claude Lorrain.

De acordo com Janson (1992) paira um ar de nostalgia nas paisagens de Lorrain, simples saudades de certa experiência já vivida.


Veja também


Referências

ALTE PINAKOTHEK, Munique, Alemanha. Disponível em: https://www.sammlung.pinakothek.de/en/bookmark/artwork/k2xn00vgGP Acesso em: 26 dez. 2019.

GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2000. 714 p.

JANSON H. W. História da Arte. Tradução J.A. Ferreira de Almeida; Maria Manuela Rocheta Santos. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 823 p.

LOS ANGELES COUNTY MUSEUM OF ART, Los Angeles, EUA. Disponível em: https://collections.lacma.org/node/252426 Acesso em: 26 dez. 2019.

THE METROPOLITAN MUSEUM OF ART,Nova York, EUA. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/435909 Acesso em 20 jan. 2020.


1 O edifício, que ainda fica nos arredores de Roma, foi uma fortaleza medieval transformada em uma casa de campo, que no século XVII pertencia à família aristocrática Crescenzi. A pintura é única na medida em que representa com precisão um edifício existente e não extraída da imaginação do artista. The building, which still stands in the outskirts of Rome, was a medieval fortress transformed into a country house, which in the seventeenth century belonged to the aristocratic Crescenzi family. The painting is unique in that it accurately represents an existing building and is not drawn from the artist’s imagination. The Metropolitan Museum of Art, Nova York, EUA. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/435909 Acesso em 20 jan. 2020. Tradução nossa.

2 No século XVIII, os italianos chamaram de pittoresco, o modo de pintar castelos, torres e ruínas clássicas envoltas em jardins idealizados. Os jardineiros e arquitetos aplicaram esse princípio na criação de jardins e parques. Onde não houvesse edifícios históricos numa paisagem que atraíssem o olhar, estes eram projetados e construídos, onde não ocorresse água, abriam-se canais, erguiam-se colinas e escavavam-se vales. A geometria das grandes alamedas e dos canteiros de flores era quebrada de forma acidental, mas, na verdade cuidadosamente planejada. Árvores e gramados imitavam a natureza. Esse romantismo estava de acordo com os ideais iluministas em que a natureza é de certa forma arrumada para se adaptar aos sentimentos humanos e à vida social.

3 A história de Hagar e Ismael está contada no Livro de Gênesis 16 a 21 e 25.

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adilson_informativos@yahoo.es
4 anos atrás

Sensacional!
Leitura agradável, leve e repleta de informações históricas de grande importância.
Nos remete e nos faz entender muito de/sobre como nosso olhar é direcionado na sociedade o que nos faz pensar na importância inegável da arte na vida das pessoas.