O pintor maneirista, Domenico Theotocopoulos, conhecido por El Greco (1541-1614) nasceu na região de Creta, que na ocasião pertencia à república de Veneza. Ainda jovem viajou para Veneza onde participou dos movimentos da Escola Veneziana ao lado dos grandes mestres italianos como TICIANO1 (c.1488/90-1576) e TINTORETTO2 (1518-1594)
Por volta de dez anos depois, em Roma:
“El Greco travou conhecimento com a arte de Rafael, Miguel Ângelo e os Maneiristas da Itália Central. Em 1576-77 foi para a Espanha, fixando-se em Toledo para o resto da vida.” (JANSON, 1992, p. 467)
Na Espanha, depois de combinar influências de arte bizantina, renascentista e maneirista, El Greco, em fim, desenvolve um estilo único que reproduz o fervor religioso da Contrarreforma na Espanha.
A obra de El Greco é dramática e expressiva, com composições repletas de figuras alongadas, desprendidas das leis de proporção e equilíbrio com ênfase nas cores, ocasionalmente fantásticas, outras vezes fantasmagóricas.
Entre tantas, O Enterro do Conde de Orgaz é uma das obras mais conhecidas de El Greco e de acordo com Janson (1992) uma das mais resplandecentes, com uma deslumbrante exibição de cor e textura em que todas as formas, em um movimento vertiginoso, convergem para a pequena figura de Cristo ao alto.
A espiritualidade Toledana da época influenciou El Greco recém-chegado de Veneza, onde a influência do secularismo sobre as artes já era evidente. O quadro O Enterro do Conde de Orgaz representa as duas dimensões da existência humana: a terra, a morte, o céu, a vida eterna. (IGLESIA DE SÃO TOMÉ. Tradução nossa3)
Uma das últimas obras de El Greco e igualmente conhecida é Laocoonte, que apresenta um dos personagens envolvidos na guerra entre gregos e troianos.
Nenhum trabalho de El Greco inspirou tanta controvérsia como Laocoonte, que também é a única pintura mitológica do mestre que chegou até hoje. Apesar de ser baseado na história do cavalo de Tróia4, a obra ocupa uma série de temas da Contrarreforma: do martírio cristão aos mais críticos com o clero. (NATIONAL GALLERY OF ART, 2019. Tradução nossa5)
A obra Laocoonte apresenta um cenário carregado de tensão física e emocional em que são empregados tons, formas e figuras exóticas, no estilo de El Greco.
À direita são representados, supostamente, três deuses envolvidos na disputa entre gregos e troianos, mas falta consenso sobre as identidades ou mesmo se seriam inacabados.
À esquerda a jovem figura masculina confronta-se com uma serpente em intensa tensão muscular. A massa escura mais ao canto parece empurrar e enfatizar o esforço do jovem para se libertar da presa mortal.
No centro, no primeiro plano o velho Laocoonte, sem forças, luta com uma imensa serpente, enquanto seu outro filho já está caído e morto atrás dele, sobre as rochas.
El Greco utiliza pincelas rápidas de luz e sombra, que perpassam o corpo já quase desfalecido do velho pai. Um pouco de vermelho é aplicado nos dedos de um dos pés e no rosto em contraste com o tom de cinza frio e cadavérico.
No segundo plano, um cavalo cavalga em direção a um dos portões da cidade, na paisagem recortada por um céu carregado de nuvens. A cidade que se eleva com construções entre montes de verdes, ocres e terra avermelhada é Toledo na Espanha. Existem versões, segundo uma lenda, que o povo de Toledo seria descendente dos troianos.
El Greco, provavelmente, baseou a composição mitológica e surpreendente na escultura helenística, do século I, encontrada em 1506, de Laocoonte e seus dois filhos6, atualmente no acervo do Vaticano, em Roma.
A obra, com os três personagens enrolados nas serpentes, exerceu grande influência em MICHELANGELO (1475-1564) e outros artistas do período. No entanto, o artista pode, também, ter se apoiado, na sua época, diretamente em textos baseados em Virgílio7, Homero8 ou, ainda em Higino9 e Apolodoro10. Os textos são semelhantes e tratam do castigo do sacerdote Laocoonte durante o episódio da queda da cidade troiana.
Muitos anos haviam se passado desde o início do cerco à cidade lendária de Troia, após o sequestro da bela Helena, rainha de Argos, por Páris, filho do rei Príamo. Odisseu e seus companheiros haviam se juntado às tropas gregas sob o comando de vários heróis. Grandes guerreiros já tinham perecido, na longa disputa, inclusive Heitor, filho de Príamo, o maior e justo herói de Troia, pelas mãos de Aquiles, assim, como o próprio guerreiro, o maior de todos os combatentes.
Porém, ainda restavam muitos homens corajosos em ambos os lados, indicando que a guerra ainda continuaria por muitos anos.
Frente ao impasse, cansado dos anos de luta, Odisseu, respeitado e conhecido pela ousadia e astúcia, explicou aos colegas combatentes como poderia ser a invasão, por meio de um cavalo oco, onde ele se esconderia acompanhado, segundo Apolodoro (Biblioteca mitológica, Epit. 14, p. 244) “dos mais valentes” homens armados.
Na cidade sitiada de Príamo mais um dia amanhece. Mas naquele dia os troianos percebem que o acampamento dos inimigos está deserto e os navios já não são vistos. Os gregos partiram!
As portas são abertas e todos saem para aproveitar a liberdade. Um enorme cavalo de madeira é objeto de curiosidade.
Ei-lo na praça; a redor se cruzavam diversas propostas,
desencontradas. Mas três agradaram, por fim, no conselho:
ou desfazer o cavalo madeiro com bronze impiedoso,
ou conduzi-lo para o alto da rocha e no abismo atirá-lo,
ou, qual imagem propícia, esperar que os divinos placasse,
tal como logo depois decidiram que assim fosse feito,
pois o Destino assentara que fosse assolada a cidade
(HOMERO, Odisseia, VIII, 505-511, 2015, p. 147)
No entanto, Laocoonte, ex-sacerdote de Apolo11, temeroso daquele presente adverte os cidadãos troianos sobre o perigo de se introduzir na cidade o grande cavalo de madeira que supostamente seria uma oferta a Atena, a deusa guerreira. Em pânico Laocoonte “com braço válido hasta ingente arroja: pregada está tremendo, e ao rijo encontro longo geme e retumba a atra caverna.” (VIRGÍLIO, Eneida, II, 56-59, 2011, p. 84)
Mas, nenhum mortal poderia alterar o Destino determinado para Troia.
À parte, desacreditado, o sacerdote imola a Poseidon12, um imenso touro, junto à costa.
De acordo com Higino (Fábulas, 2008), aproveitando a ocasião, Apolo envia duas serpentes pelas ondas do mar para matarem os filhos do sacerdote pagão: Antifantes e Timbreo.
As serpentes, sulcam o mar tranquilo e se curvam engrossando o imenso dorso sobre a planície deserta. Com olhos vermelhos e línguas sibilantes aterrorizam a todos.
Tudo exangue se espalha. O par medonho
Marchando a Laocoon, primeiro os corpos
Dos dois filhinhos seus abrange e enreda,
Morde-os e come as descosidas carnes:
E ao pai que armado ocorre, ei-las saltando,
Atam-no em largas voltas; e enroscadas
Duas vezes à cintura, ao colo duas,
O enlaçam todo os escamosos dorsos
(VIRGÍLIO, Eneida, II, 217-224, 2011, p. 89-90)
O sangue vermelho se mistura ao negro veneno. Laocoonte chora aos céus a sua fortuna.
Os troianos acreditam que o triste acontecimento indica o desprazer dos deuses pelo comportamento do sacerdote. Assim, seguindo a ordem de Príamo, os homens descerram as portas da cidade, introduzindo o cavalo, em consagração a Atena, selando a ruína da bela cidade.
À noite13, os inimigos descem do interior do grande cavalo e abrem as portas para os soldados escondidos, que por caminhos diversos pilham a cidade, “sepulta em sono e vinho.” (VIRGÍLIO, Eneida, II, 274, 2011, p. 92)
APOLODORO. Biblioteca Mitológica. Tradução Julia García Moreno. Madrid, Espanha: Alianza Editorial, 2016. 340 p.
HIGINO, C. J. Fábulas e Astronomia. Tradução Guadalupe Morcillo Exposito. Madrid, Espanha: Ediciones Akal, 2008. 359 p.
HOMERO. Odisseia. Tradução Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. 424 p.
IGLESIA DE SÃO TOMÉ, Toledo, Espanha. Disponível em: http://santotome.org/el-greco Acesso em 09 set. 2019.
JANSON H. W. História da Arte. Tradução J.A. Ferreira de Almeida; Maria Manuela Rocheta Santos. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 823 p.
LESSING, G. E. Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia: com esclarecimentos ocasionais sobre diferentes pontos da história da arte antiga. Introdução, tradução e notas de Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 2011. 317p.
MARTINI, Fátima R. S. A Pintura Renascentista e Maneirista nos Museus. In Curso de Extensão/UNIMES virtual. Santos/SP: UNIMES, 2016. 57 p.
NATIONAL GALLERY OF ART, Washington, EUA. Disponível em: https://images.nga.gov/en/page/openaccess.html Acesso em: 10 set. 2019.
NATIONAL GALLERY OF ART, Washington, EUA. Disponível em: https://www.nga.gov/press/exh/3582/espanol.html Acesso em: 10 set. 2019.
VIRGÍLIO. Eneida. Tradução Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Martin Claret Ltda, 2011. 451 p.
1 O artista dominou a pintura veneziana no período denominado de Renascimento tardio e atravessou o estilo maneirista, com uma qualidade insuperável. TICIANO (c.1488/90-1576), também conhecido por TIZIANO Vecellio, Titian ou Titien é um dos grandes retratistas do período.
2 Veneziano e maneirista, Jacopo Comin, conhecido por TINTORETTO (1518-1594) empregou as cores brilhantes e fortes, típicas dos artistas da região, aplicadas com uma pincelada rápida e audaciosa. Seus quadros são impregnados de emoção e profundamente cativantes.
3 La espiritualidad toledana de la época influyó en un Greco que provenía de Venecia, donde la influencia del laicismo en las artes era ya algo patente. Este cuadro representa las dos dimensiones de la existencia humana: abajo la Tierra, la muerte, arriba el Cielo, la vida eterna (Iglesia de São Tomé)
4 História contada em Odisseia sobre um episódio ocorrido durante a queda de Tróia, narrada em Ilíada de HOMERO (ca. IX-VIII a.C.) Os dois poemas heroicos datam em torno do século IX a.C. e relatam as aventuras dos heróis Aquiles e Odisseu, chamado de Ulisses pelos romanos.
5 Ninguna obra de El Greco ha inspirado tanta controversia como El Laocoonte, la cual es además la única pintura mitológica del maestro que ha llegado hasta nuestros días. A pesar de estar basada en la historia del caballo de Troya que Virgilio narra en su Eneida, el Laocoonte de El Greco retoma un buen número de temas de la Contrarreforma: desde el martirio cristiano, hasta aquellos más críticos con el clero. (National Gallery of Art)
6 A escultura é mencionada na História Natural, de Plínio, o Velho (23-79) na qual é relatado que se encontrava, originalmente, na residência do Imperador romano Tito Flávio Vespasiano Augusto (39-81). Plínio atribui sua autoria aos escultores Hagesandro, Atenodoro e Polidoro, da ilha de Rodes. Atualmente, acredita-se, porém, que a escultura, no acervo do Vaticano, na Itália, possa ser uma cópia romana do original grego. A obra foi descrita por diferentes críticos ao longo do tempo. O mais conhecido dos livros é Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia, escrito por G.E. LESSING (1729-1781)
7 Públio VIRGÍLIO Marão (70 a.C.-19 a.C.) um dos maiores poetas romanos. A obra Eneida trata da idealização das virtudes romanas, por meio das aventuras do herói Enéias, sobrevivente do incêndio de Tróia, que cumpre o seu destino chegando às margens de Itália, uma figura fundamental na fundação de Roma e primeiro ancestral do povo romano. A história do cavalo e a queda de Troia é narrada em VIRGÍLIO (Eneida, II, 15-274, 2011, p. 82-92)
8 A queda de Tróia é narrada em: HOMERO (Odisseia, IV, 270-280, 2015, p. 80-81) e (Odisseia, VIII, 492-519, 2015, p. 146-147)
9 Caio Júlio HIGINO (64 a.C. – 17 d.C.) escritor da Roma Antiga. Segundo autores, da Província Ibérica, provavelmente de Valência, na atual Espanha. A história sobre Laooconte é descrita em HIGINO (Fábulas, CXXXV, 2008, p. 131)
10 APOLODORO (século I a.C. ou I d.C.) As evidências são inconclusivas sobre a data e sobre seu nome, chamado por alguns pesquisadores de Pseudo Apolodoro. A história sobre a queda de Troia e de Laocoonte é descrita em APOLODORO (Biblioteca mitológica, Epit. 5, 14-20, 2016, p. 244-245)
11 Laocoonte teria atraído a cólera de Apolo, porque havia se unido com sua esposa em frente a uma estátua do deus, o que constituía um sacrilégio (HIGINO, Fábulas, CXXXV, 2008, p. 131)
12 Irmão de Zeus, chamado de Netuno pelos romanos, Poseidon, em Odisseia, é o maior inimigo de Odisseu.
13 Dissimulado, o grego Sinón, que se faz passar por desertor para enganar os troianos, ajuda os soldados a descer do interior do cavalo de madeira.
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