Artigos Acadêmicos

O espectador no movimento neoconcreto brasileiro

Esse artigo tem o objetivo de analisar a dimensão do espectador e da obra aberta no movimento neoconcreto, tendo como recorte a poética de dois dos maiores expoentes do movimento, Lygia Clark e Hélio Oiticica. As obras analisadas da artista X Lygia Clark foram a série “Bichos”, de 1960 a 1964 e “Respire Comigo”, de 1966. Já do artista Hélio Oiticica, foram analisados o Parangolé, criado no final da década de 1960 e resultado das experiências de Oiticica com a escola de samba Estação Primeira da Mangueira.

O neoconcretismo foi um movimento artístico brasileiro que surgiu na década de 50 com a publicação do “Manifesto Neoconcreto”, escrito pelo poeta e crítico Ferreira Gullar e assinado pelos também poetas Theon Spanúdis e Reynaldo Jardim, os escultores Amílcar de Castro e Franz Weissmann e as artistas Lygia Clark e Lygia Pape, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil.

Não concebemos a obra de arte nem como uma “máquina” nem como um “objeto”, mas como um “qüasi-corpus”, isto é, um ser cuja realidade não se esgota nas relações exteriores de seus elementos; um ser que, decomponível em partes pela análise, só se dá plenamente à abordagem direta, fenomenológica. […] É porque a obra de arte não se limita a ocupar um lugar no espaço objetivo — mas o transcende ao fundar nele uma significação nova — que as noções objetivas de tempo, espaço, forma, cor, etc., não são suficientes para compreender a obra de arte, para dar conta de sua “realidade”.

(Extraído do Manifesto Neoconcreto. In: Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 22 de março de 1959).

O manifesto, escrito para servir como introdução à 1ª Exposição de Arte Neoconcreta do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ) em 1959, pode ser contextualizado a partir do movimento concretista, que remonta ao início da década de 1950 e aos artistas do Grupo Ruptura, em São Paulo, e do Grupo Frente, do Rio de Janeiro.

O programa concreto brasileiro destacava que na arte não deveria haver espaço para qualquer lirismo ou conotação simbólica, os planos, as estruturas e as cores falariam por si próprios. Essa ideia de autonomia da linguagem pictórica em relação à imagem já era desenvolvida desde o início do século XX, sobretudo com grandes contribuições de artistas como o pintor russo Wassily Kandinsky (com o texto “Ponto, Linha, Plano, publicado em 1926) e o pintor holandês Theo van Doesburg (com o “Manifesto da Arte Concreta” em 1930).

O Brasil dos anos 50 estava envolto por uma aura desenvolvimentista e uma forte crença na indústria e no progresso. Esse lema também vai ser o motor da arte concreta, que aproxima o trabalho artístico do industrial. No entanto, enquanto o grupo artístico paulista Ruptura desenvolvia trabalhos enfatizados na pura visualidade da forma, na objetividade e no dogmatismo geométrico, o grupo carioca Frente tinha alguns pensamentos divergentes.

Para eles, a arte ia além do mero geometrismo puro, não era máquina ou objeto – pelo contrário, tinha sensibilidade, experimentação, subjetividade e, como requisito fundamental de sua concepção, a intuição do artista. Estava aberto então o conflito de ideias e a deixa para a formação de um novo movimento, o neoconcreto.

Contra o racionalismo exacerbado dos concretistas, o movimento neoconcreto defendia a autonomia das possibilidades criadoras do artista e a integração das obras com o espectador, que participa ativamente da concepção das obras, torna-se parte fundamental para a obra ser o que ela é. Obra, artista e receptor tornam-se integrados.

Para os neoconcretistas, a arte não deveria ser confundida com uma mera produção de feitio industrial porque o fazer artístico estava ancorado na experiência definida no tempo e no espaço. Esse pensamento foi fortemente influenciado pelo filósofo fenomenológico francês Merleau-Ponty, cuja base da filosofia era a percepção. O escritor combatia a ideia de uma compreensão do mundo através de dicotomias como corpo versus alma, sujeito versus objeto, vida versus obra, sensação versus racionalidade. Para ele, “compreender é experimentar a harmonia entre o que objetivamos e o que é dado, entre a intenção e a performance – e o corpo é a nossa ancoragem no mundo”. (MERLEAU-PONTY, Maurice. Phenomenology of perception, 2005, p. 167)

No campo da arte, isso se traduzia, entre outros aspectos, no combate à ideia de uma divisão rígida entre artista e espectador, autor e obra e obra e espectador. Baseados nos princípios merleau-pontyanos, os neoconcretistas propunham também esse novo olhar em relação à obra de arte: eles retiraram o conteúdo artístico do seu suporte tradicional (a tela) para que ele pudesse ser experienciado a partir do toque e do contato com o público. A obra tinha seu sentido recriado a partir da percepção do público, em determinado tempo e espaço.

Aqui também podemos traçar um paralelo do movimento neoconcreto com a poética da obra de arte aberta, modelo desenvolvido pelo teórico italiano Umberto Eco no livro “A Obra Aberta”, de 1962. O escritor introduz a ideia da abertura como propriedade intrínseca à obra de arte, no sentido que o objeto artístico possibilita um universo de possibilidades no momento de sua fruição. Todas as obras de arte são abertas, porém, há uma categoria de obras de artes, e aqui podemos que enquadrar algumas obras do movimento neoconcreto, que são determinadas quanto à forma, mas indeterminadas quanto ao conteúdo e por isso o receptor tem maior autonomia para durante a sua fruição fazer determinadas interpretações.

A abertura e o dinamismo de uma obra consistem, pelo contrário, em tornarse disponível para diferentes integrações para complementos de uma vitalidade estrutural que a obra possui, mesmo que não acabada, e que parece válida também em vista de resultados diferentes e múltiplos”. (ECO, Umberto. Obra Aberta, 1989 p. 91).

As obras de arte realizadas por alguns artistas do movimento neoconcreto podem ser consideradas obras em movimento, abertas, que só através de sua recepção pelo espectador compreende-se a sua efetivação: o intérprete completa a obra no momento em que assume a sua mediação.

No entanto, é necessário enfatizar que, essa abertura das obras não é feita de forma infinita ou indeterminada, ela tem um enquadramento. Uma obra de Hélio Oiticica, por exemplo, um dos maiores exponentes do movimento neoconcreto e ao qual retornaremos mais adiante, dá margem a diferentes possibilidades de recepção, mas todas sob um enquadramento do dispositivo escolhido pelo artista. Um músico tem diferentes possibilidades de interpretação de uma partitura, mas ainda tem a partitura, o seu dispositivo limitante.

O ato de criação mantém em aberto um conjunto de possibilidades mas não deixa de ser um enquadramento, é de ordem virtual. A obra em movimento, em resumo, é a possibilidade de uma multiplicidade de intervenções pessoais, mas não é convite amorfo à intervenção indiscriminada: é o convite não necessário nem unívoco à intervenção orientada, para nos inserirmos livremente num mundo que, contudo, é sempre o desejado pelo autor. O autor oferece, em suma, ao fruidor uma obra para acabar”. (Ibid. p. 89)

O espectador em obras de Hélio Oiticica e Lygia Clark

Para compreendermos melhor a dimensão do espectador e da obra aberta no movimento neoconcreto, vejamos algumas obras de dois dos maiores expoentes do movimento, Lygia Clark e Hélio Oiticica. Ambos iniciaram suas carreiras como artistas ligados a uma tendência construtiva abstrata mas romperam com ela ao longo de seus percursos artísticos.

Lygia Clark nasceu em Belo Horizonte em 1920 (na década de alguns movimentos artísticos revolucionários como dadaísmo e do surrealismo na Europa) e em 1947 iniciou aulas com o artista plástico brasileiro Burle Marx no Rio de Janeiro. Participante do Grupo Frente e mais tarde uma das fundadoras do Grupo Neoconcreto, Lygia gradualmente foi trocando o suporte da pintura por objetos tridimensionais. Essa ideia de abandono de estruturas como a tela e o pincel pelo experimentalismo em outros dispositivos era também partilhada entre os artistas do movimento.

Nas obras da artista é clara a importância do espectador, não como meramente complementar a obra, mas como parte fundamental como sua constituição. Uma das primeiras obras em que ela rompe com a tendência construtiva abstrata foi em “Bichos”, de 1960 a 1964, em que a artista cria obras constituídas de placas de metal que são unidas por dobradiças e o espectador pode manipulá-las e dá-las novas configurações. A obra só é efetivada a partir da participação do seu fruidor, ele e a obra estabelecem uma integração total. No entanto, aqui podemos enfatizar a ideia de enquadramento: há um direcionamento da artista e um número limitado de combinações que o espectador pode fazer.

Vejamos agora a obra “Respire Comigo”, de 1966, de sua fase “Nostalgia do corpo”. Se fôssemos tentar descrevê-la pelo seu suporte, poderíamos dizer que é um tubo preto de borracha, em que a artista interliga as duas pontas, formando uma espécie de anel. Porém como vimos, apenas falar do suporte não é suficiente para descrever as obras do neoconcreto e em especial de Lygia Clark. O que importa aqui é a significação da obra em contato com o espectador, que no seu ato de interação compartilha a criação da obra. Como o próprio título da obra diz, “Respire Comigo” necessita da presença do espectador para dar-lhe significação, é como se ela só existisse como entidade viva a partir da presença do espectador.

Nesse exemplo, o fruidor é convidado a comprimir e estender o objeto repetitivamente, combinando seu ritmo com o ritmo do outro. Cada participante tem a sua experiência própria de respiração. Podemos relacionar a obra à luz da poética da obra aberta: o objeto artístico só se efetiva no momento de sua recepção, com a fruição do espectador. Porém essa participação do espectador está limitada a uma dimensão dispositiva, as possibilidades de fruição estão dentro de um enquadramento.

Por meio de seus trabalhos, a artista atua como uma propositora de experiências a serem vividas e faz isso através da não-representação e superação do suporte. Sua obra vai se atualizando e ressignificando a partir da experiência de cada participante.

Fotos:Reprodução/MoMA.

Hélio Oiticica e os Parangolés

Agora vamos à análise da obra de Hélio Oiticica, e especificamente os parangolés. Artista performático, pintor e escultor, Oiticica nasceu no Rio de Janeiro e é lá que começa a fazer aulas com pintor, desenhista e gravador Ivan Serpa. Assim como Lygia Clark, Oiticica rompe com a noção de um suporte de arte tradicionalmente definido pelas artes plásticas. Ele abandona os trabalhos bidimensionais e cria relevos espaciais, bólides, capas, estandartes, tendas e etc. Também do Grupo Frente, o artista passa a fazer parte do grupo Neoconcreto em 1959. Com obras de grande renome nacional e internacional, Oiticica hoje é considerado um dos maiores nomes da arte contemporânea brasileira.

O Parangolé foi criado no final da década de 1960 e foi resultado das experiências de Oiticica com a escola de samba Estação Primeira da Mangueira. A criação artística se dá a partir da participação do fruidor com tecidos coloridos, como capas, e de estandartes: a obra se efetiva pela fusão das estruturas, cores, palavra, música e corpos a partir da dança. Sem o movimento, não existe a obra.

A primeira aparição pública dos Parangolés foi no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), na abertura da exposição Opinião 65. O artista convidou os passistas da Mangueira a experimentarem os objetos ao ritmo do samba, dentro do museu. Por causa do barulho eles foram expulsos do espaço, sua obra entrava em conflito com as ideias mais tradicionais de apreciação de obras em museu, envolvendo silêncio e contemplação passiva. De acordo com Hélio Oiticica em “Anotações sobre o ‘Parangolé’”, de novembro de 1964,

a ideia da ‘capa’, posterior à do estandarte, já consolida mais esse ponto de vista: o espectador ‘veste’ a capa, que se constitui de camadas de panos de cor que se revelam à medida em que este se movimenta correndo ou dançando”. A obra requer aí a participação corporal direta, na qual a ação é a pura manifestação expressiva, uma “transmutação expressivo-corporal do espectador, característica primordial da dança, sua primeira condição. (OITICICA, H. Catalogue Raisonné, p.1. )

É importante salientar que os Parangolés não pressupunham a experiência do fruidor de uma forma individual. A obra é de manifestação da cor no espaço ambiental e apenas podia se dar com uma dimensão coletiva, com os espectadores em comunhão. A partir do movimento, a obra tomava dimensões espaciais diferentes, criando continuamente o próprio espaço e as próprias dimensões. O espaço, a forma e a cor surgiam e refaziam-se a cada experiência.

Comparado com as obras “Bichos” e “Respire Comigo”, de Lygia Clark, em Parangolé a proposta de criação não é tão delimitada. A experiência surge a partir do movimento e da dança criada em contato com corpo, palavra e cor, com um menor enquadramento por parte do autor. Aqui, o próprio fruidor, ao vestir e movimentar-se, é obra, ao mesmo tempo que é também artista.

Nesse sentido, Hélio Oiticica é apenas o incentivador e possibilitador dessa experiência. Como podemos ver no ensaio “O Ato Criador”, publicado pelo pintor francês Duchamp em 1965, o artista age como um medium e só através do encontro do ato criador com a recepção é que a obra vai emergir. A noção do artista como “gênio”, que recebe uma inspiração que não pode ser traduzida ou explicada em auto-análise, também está inclusa em seu ensaio. No movimento neoconcreto, apesar da noção de gênio não estar presente, está o sentido de intuição, que foi uma das pautas principais de discordância entre os artistas neoconcretos e concretos.

Hélio Oiticica, Parangolés, 1967. Disponível em http://sobrevivenciadasideias2013.blogspot.com.br/2013/10/lucas-botelho-referencias.html

“Em suma, o ato criativo não é realizado apenas pelo artista; o espectador traz o trabalho em contato com o mundo externo, decifrando e interpretando sua qualificação interna e, assim, acrescenta sua contribuição ao ato criativo. Isso se torna ainda mais óbvio quando a posteridade dá um veredicto final e às vezes reabilita artistas esquecidos”. (DUCHAMP, M.“The Creative Act”, 1957).

Sobre a Isadora Maria Figueiredo Vitti

A autora foi orientada por Prof. Drª Maria Teresa Cruz neste trabalho. Ela é formada em jornalismo pela Universidade de São Paulo (USP), com intercâmbio voltado à arte e museologia na Universidade Nova de Lisboa. Sua experiência profissional e interesse em pesquisa são voltados ao jornalismo cultural, artes visuais, curadoria e educação em museus.

Referências Bibliográficas

  • DUCHAMP, Marcel – The Creative Act. In Art News (Summer 1957), New York, 1957.
  • ECO, Umberto – Obra Aberta. Lisboa: Diffel, 1989.
  • DONADEL, Beatriz D.’Agostin – Hélio Oiticica e o sentido da participação do público na arte brasileira dos anos 60: da Obra Aberta ao Exercício Experimental da Liberdade. Florianópolis: UFSC, 2010.
  • OITICICA, Hélio. Catalogue Raisonné. Projeto Hélio Oiticica. Rio de Janeiro, 2007.
  • DE CARVALHO, Dirce Helena Benevides. O corpo na poética de Lygia Clark e a participação do espectador. João Pessoa: Moringa, 2011.
  • FURLAN, Annie Simões R.; FURLAN, Reinaldo. Arte, linguagem e expressão na filosofia de Merleau-Ponty. São Paulo: Ars, v. 3, n. 5, p. 30-49, 2005.
  • MERLEAU-PONTY, Maurice. Phenomenology of perception. Taylor and Francis e-Library, 2005.

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